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Poética Animal

12 de novembro de 2014
12 min. de leitura
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Tradução: Ligia Cunha
1. De quem estamos falando?
Longe de ser um pequeno problema- daqueles que participam e se beneficiam com a exploração animal justamente para se fazerem livres de culpa – a questão animal é, sem dúvida, o grande dilema ético do século que acaba de começar.
Na Argentina, há anos o tema é apresentado em termos majoritários, acerca dos animais de companhia. No melhor dos casos, há o esforço para evitar o extermínio dos animais nos Centros de Zoonoses municipais. Salvo algumas pessoas que embarcaram na luta por todos os seres sencientes, o assunto foi absorvido pela dicotomia “protetores da eutanásia vs protetores da não eutanásia”. Mais além do eufemismo, pois se trata de assassinatos, os protetores da não eutanásia, como a ecologia antropocêntrica prevalecente não deram sua voz contra a escravidão animal, opondo-se à mesma. Historicamente, as associações protetoras de animais que surgiram para proteger TODOS os animais se limitaram a proteção de cães e gatos ao aceitar o apoio econômico daqueles comprometidos com as principais explorações animais: pesquisas e setor alimentício. Justamente, a maior parte do sofrimento e morte dos animais, uns 98% se concentram nessas duas áreas. E casualmente, dessas fontes derivam muitos problemas de saúde básicos dos quais os humanos padecem.
Quem são esses bilhões de seres torturados e massacrados no que foi comparado ao holocausto nazista em seu eterno retorno? Digo, eterno retorno porque os fazem nascer para continuar o extermínio ad infinitum. Quem são estes animais que sofrem diariamente e morrem em nome da pseudo ciência para que alguns possam comer um assado? Quem são estes seres torturados e assassinados a título de arte ou esportes?
Não temos contato direto com eles, são anônimos. Porque obviamente, quem os come não os coloca em minúsculos bolsões de isolamento, paradoxalmente entre milhares de congêneres, não tira suas crias, não corta seus bicos e testículos sem anestesia, não os encarcera em jaulas ou minúsculos espaços no solo cimentado, entre barras impedindo todo seu movimento, nem os transporta superlotados- quase sempre sedentos e/ou famintos- por enormes distâncias, em um caminhão. Não olham em seus olhos ao cortar-lhes o pescoço. Não se envolvem com o indivíduo sofredor e por não tê-lo por perto não é capaz de compadecer-se dele. O veterinário Victor Mendoza, de quem roubaram e mataram sua querida Aberdeen Angus, disse que era uma vaca a qual toda a família AMAVA e que jamais concordaram que terminasse em um matadouro. No filme Lugares Co2 munes, Federico Luppi precisa nomear um executor, uma outra pessoa para matar uma galinha por ele, porque ele não pode; o que será comido adquire então individualidade a partir do nome: Diego.
Os veterinários partidários do bem-estar animal querem que outros sem título matem, porque matar “faz mal”. Que tipo de ser humano precisa ser um humano, ao assassinato, para ser um carrasco? A primeira coisa que fazem nos campos de concentração é tirar a individualidade. Números no lugar de nomes. Objetos no lugar de pessoas. Justamente, transformá-los em coisas, levá-los de sua condição de ALGUÉM à ALGO, um objeto, escraviza-los para o uso dispensável dos humanos, é a condição necessária para atingir a sensibilidade anestesiada. A sociedade carnívora não se mancha com os modernos métodos de produção de carne. Sociedade paradoxal: o animal de companhia integrado ao grupo familiar, torna-se cada vez mais consumidor, supercoisa.
Estes campos de tortura não são produto de uma mente irracional. Tampouco de uma castástrofe natural. Por isso os remendos do bem-estar animal aplicados há mais de dois séculos, são ajudas ineficazes, desperdiçadas. Respondem a uma ideologia configurada para tratar o animal como recurso para fins de outros como objeto-coisa-máquina. Reconhecendo inclusive que se trata de um ser senciente, mas sem que sua dor ou morte importem quando se trata de números. O sagaz filósofo René Descartes já havia enterrado a sensibilidade animal em uma suposta ausência de consciência. Descartes não sabida nada sobre consciência animal, mas sim da humana, a qual quis evitar sentimentos de culpa. Suas ideias, de acordo com o que escreveu na carta enviada a Henry More em 5 de fevereiro de 1649 “… não são tão cruéis com os animais como indulgentes com os humanos.. dado que os absolvem da suspeita de crime quando os comem ou os matam” (Philosophical Letters. Oxford U. Press.)
O núcleo do dilema é ético, não econômico. Logicamente, o econômico pesa em seu lugar dentro do quadro que hoje subjuga os animais. Mas o núcleo se enraíza numa escala de valores antropocêntrica, egoísta e tirana da natureza, na qual a violência institucionalizada é exercida sem questionamentos. Não é questão de “liberdade” individual. Não há liberdade para comer carne humana. A sociedade elegeu de antemão que isto é imoral. Outra vez relembro dos campos de concentração nas palavras de Theodor W. Adorno: “Auchwitz começa quando alguém em frente a um matadouro exclama “são apenas animais”; Racismo, especismo. Na ideologia: discriminação. Uso da matéria, do corpo o animal, o humano e o não humano, como recurso para outros.
II. Direitos animais, obrigações humanas
A aproximação sensível é talvez a maneira de começar a experimentar as consequências das escolhas diárias em sua plenitude. Mas a compaixão não alcança.
Por isso a aproximação do tema em âmbito jurídico-filosófico, onde a teoria dos Direitos Animais, surgida no final dos anos 70, desenvolve com uma lógica implacável a necessidade de outorgar direitos básicos a todos os seres sencientes, além do emocional, subjetivo e compassivo, mas absolutamente parcial e relativo para a análise racional do tema. Compaixão e razão juntas, porque tampouco acredito na dicotomia entre ambas, como base de uma revolução ética e uma revolução nos corações.
No Ocidente, a preocupação pelos animais se desenvolveu moldada nos limites do chamado bem-estar animal. Essa postura surge para ADMINISTRAR a exploração do animal não humano, ratificando seu lugar de meios para fins e interesses humanos. As chamadas normas “anti-crueldade” do bem-estarismo legal ( Welfarism Legal) sancionam as condutas humanas na medida em que impliquem um “sofrimento necessário”. Porém o sofrimento que se considera necessário – e aqui a medida é relacionada aos interesses dessa indústria de exploração-, passa a ser uma violência institucionalizada. Um cão estaria protegido da tortura sempre desde que seu dono não seja um viviseccionista. Porque o cão não tem direitos, é uma COISA, e as coisas seguem a sorte de seus PROPRIETÁRIOS, que são pessoas. Somente as pessoas – no sentido jurídico do termo- podem ter direitos na ordem positiva atual.
Por outro lado, de acordo com sua postura filosófica, o bem-estarismo legal bloqueia as portas de acesso ( legitimação ativa ou standing) a possibilidade direta de fazer valer legalmente as poucas obrigações que acorda a favor dos animais não humanos. A teoria dos direitos animais, fundada no valor intrínseco, per se, do indivíduo, visa estabelecer legalmente obrigações diretas dos humanos para com os animais não humanos, a quem não considera objetos, meios para fins, livrando-os de todas as experimentações antiespecistas. “Os objetos tornam-se sujeitos”, na terminologia de Michel Serres.
 
Como abordar a noção de direitos, uma construção social humana, para os animais? Partindo do ponto de que um direito protege um interesse, de que interesses característicos da vida animal estamos falando? O filosofo Henry Shue reforça a noção de direitos básicos. Um direito é quando “qualquer intenção de desfrutar de qualquer outro direito sacrificando o direito básico, seria, de maneira literal, completamente autodestrutivo, como cortar a grama que se assenta.” Basicamente, se trata do direito a segurança física: não estar sujeito ao assassinato, à tortura, à mutilação criminosa, ao abuso, ao assalto (agressão). Sem a prerrogativa dos direitos básicos, qualquer outro direito outorgado a esse ser se converte em mera abstração. Do que serve a livre circulação concedida a uma pessoa pelo governo do país, se ela não tem o direito a segurança física e pode ser arrastada, violentada ou abusada fisicamente à vontade… Estes direitos estão na esfera dos direitos humanos. Os escravos não possuíam esses direitos ainda que lhes fossem concedidas proteções leves, para melhorar seu bem-estar. O dono tinha propriedade de seu corpo e o direito de violar sua integridade física. Não é igual ao que ocorre hoje com os animais? De que proteção podemos falar quando se permite prendê-los, causar-lhes sofrimento e matá-los apenas pelo direito de satisfazer o paladar?
Se não concedermos direitos básicos de forma progressiva aos animais, seguiremos deixando-os fora de nossas considerações éticas. Seu estatuto jurídico seguirá atuando para que continuem sendo usados como coisas, mercadorias, sem atenção a seus interesses, usando-os de acordo com os interesses de seus proprietários e costumes locais. Justamente a postura híbrida do neo-bem-estarismo, integrada por quem acredita que as melhoras bem-estaristas são possíveis a curto prazo, mesmo que no futuro se possa reivindicar reformas pró-direitos, confundem o caminho ao somar-se aos bem-estaristas, quem jamais imaginaram que as jaulas sejam esvaziadas, reforçando por outro lado, na opinião popular, a ideia de que explorá-los é eticamente aceitável. Se a violação é uma ação eticamente condenável, buscaremos pensar severamente no ato, não lutar por uma violação mais humanitária ou que se pratique sem que haja sofrimento desnecessário. É comum também o erro de acreditar que todo projeto legal ou acordo não-bem-estarista é abolicionista.
Isto não é assim, porque ao contrário não seria factível a sanção da norma ou o acordo em uma grande maioria de casos. Um projeto pró-direitos é bem diferente a um bem-estarista, mas pode ser ou não abolicionista. Se uma pessoa sensível vê uma vaca sedenta, ainda viva em um matadouro, lhe dará água. Mas essa mesma pessoa, como ativista pelos direitos animais, não está lutando para que deem àgua às vacas que, em alguns momentos, serão penduradas por uma pata e degoladas em um círculo de morte. O movimento não está lutando para isso. Não precisa de gente que negocie o que não será cumprido na prática, porque terá que destinar pessoas para formar um corpo de policia que “custodie” os matadouros. As campanhas de pressão para encerrar a atividade de exploração são muito diferentes das destinadas a obter melhorias dirigidas a exploração regular. A História demonstra que estas melhorias trazem pouco ou nenhum beneficio para os animais, ao manter a propriedade intacta para transformar os meios em fins para outros. A aquisição de direitos é um caminho árduo, não uma utopia. Implica o descondicionamento de séculos. Apenas chegará na medida em que haja uma profunda mudança nas escolhas humanas em favor daquelas que não signifiquem o uso da força e o poder sobre toda a natureza.
III- Porcas. Um exemplo de manipulação pela linguagem
Com que termos se redefine a crueldade e a injustiça para desestimulá-las? A manipulação pela linguagem por parte dos exploradores de animais é vasta e estrategicamente impecável. Vou contar-lhes como é, segundo seus donos, a vida das porcas utilizadas para abastecer a indústria da carne de leitõezinhos. Em um “alojamento individual”, os animais se encontram “satisfeitos em seu meio ambiente”. O “alojamento individual” é o espaço com barras de ferro e piso de cimento onde a porca só pode ficar encostada ou deitada. Se a jaula está aberta por trás, o animal é preso ao piso por correntes pelo pescoço ou com um arreio. Chutam, gemem e se sacodem por horas. Mordem as correntes e gritam. As vezes se batem contra as barras antes de colapsar. Esgotadas pelo esforço inútil para escapar, se imobilizam jogando o focinho por baixo das barras.
Quase enforcadas, quando sentam permanecem com os olhos vazios ou fechados. Os promotores da “agricultura animal” – termo que preferem ao invés de confinamento intensivo- referem que as porcas se encontram “satisfeitas em seu meio ambiente”.
Privadas de todo movimento, como os porcos machos utilizados para a reprodução, tornam-se facilmente obesas. A indústria não precisa que se alimentem mais que o necessário para que possam se reproduzir, assim restringem sua comida alimentando-as a cada dois ou três dias. Privá-las da comida é chamado de “alimentação controlada”.
As porcas tem seus filhotes no que chamam “unidade de maternidade moderna”, um lugar menor ainda que aquele onde ficam durante a gravidez. Restritas ao solo, normalmente com feridas devido a fricção contra a jaula e com os mamilos rasgados por tentar coçá-los. Os filhotes muito pequenos são sustentados por suas patas traseiras e sacudidos para bater sua cabeça fortemente contra o piso.
Geralmente estão conscientes logo no primeiro ataque. Isso se chama “eutanásia”.
No livro de Kathy e Bob Kellog, Raising Pigs Successfully, lemos que os apoiadores não veem a castração ou o corte de cauda “particularmente dolorosos”. Se gritam, como especulava Descartes, não é porque sentem dor. Arrancados precocemente do lado de sua mãe, eles vão para a “pediatria”, onde os colocam em prisões que não permitem mais de uns 19 cm² de solo para cada um. Quando chegam aos dois meses têm a sua disposição a “sala de porcos”, onde centenas serão aprisionadas em currais com piso de cimento e de onde sairão somente rumo ao matadouro. Nem todos sobrevivem. O amoníaco proveniente do acúmulo de seus dejetos pode causar pneumonia. O Livro de Bolso da Suinocultura mudou o termo “confinamento de alta intensidade” que denota os animais, para “sistemas controlados de meio ambiente”, onde se evita fazer uma alusão direta aos porcos. O resultado é de uma incoerência desesperadora, mas muito rentável.
IV- Por uma poética animal
O célebre explorador inglês Stanley, disse ter encontrado uma pequena aldeia na África (Lili), cujos habitantes se alimentavam de legumes e apesar de contar com vacas e cavalos, utilizavam-nos nas tarefas de agricultura sem que jamais tivessem concebido a ideia de matá-los para comer. “Se não comêssemos carne, matando a torto e a direito para nos alimentarmos, seriamos como os habitantes de Lili, onde a crueldade é completamente desconhecida” , deduz Stanley ao estudar as características dos aldeãos. É possível defender o veganismo a partir de mais de um posicionamento filosófico.
Mas também é possível fazê-lo deduzindo esta postura de crenças muito simples que sustenta a maioria das pessoas. Deixo esta argumentação por agora, para concluir: Levar uma vida vegana- e não estou falando de dieta, e sim de não participar e/ou sustentar direta ou indiretamente uma exploração de animais sencientes, qualquer que seja, é a única maneira que podemos obter uma cura: a cura do vínculo que nos une aos animais para tratá-los como o que são. “Não são nossos irmãos mais novos, são nossos súditos; são outro povo – dizia Henry Boston- preso conosco na rede da vida e do tempo; prisioneiros, como nós, da magnificência e da dor que convivem em nossa Terra”.

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