(da Redação)
É absolutamente impressionante a inconsciência com que o repórter do jornal O Estado de S. Paulo, Christian Carvalho Cruz, trata a vida das chinchilas cruelmente exploradas pelo mercado de casacos de peles no Brasil.
A reportagem fala “maravilhas” da produção de um argentino radicado no país. A violência dessa indústria é patente e o comércio de produtos feitos com peles de animais está em declínio em todo o mundo, como a própria matéria revela, não por falta de dinheiro, mas pela crescente onda de esclarecimento e consciência de uma imensa parte da sociedade.
Desprovido de ética, esse setor é cruel, brega e violento.
Reportagem publicada no Estado de S. Paulo na íntegra
Luxo abaixo de zero
Sr. Carlos Perez é um argentino com quase 40 anos de Brasil com tudo o que um argentino com quase 40 anos de Brasil tem direito: esbelto, elegante, bigode e cavanhaque grisalhos sobre o rosto jovial, mullets (ah, sempre os mullets) e uma conversa agradavelmente milongueira. Vez ou outra o sr. Perez, que tem 64 anos, se dá o direito de abrilhantar o colóquio com uma gíria ou um palavrão bem brasileiros, mas encharcados de sotaque portenho. É o jeito dele. O sr. Perez fez a vida por aqui criando chinchilas, um roedor de meio quilo e 35 centímetros, originário dos Andes, com alta cotação no mercado de casacos de pele – e, por conseguinte, nos closets da alta roda mundial. Vestindo um guarda-pó branco adornado no bolso com o brasão de sua empresa, a Master Chinchila, o sr. Perez sai da cabana de onde toca o negócio, numa chácara em Itapecerica da Serra, Grande São Paulo, e se adianta: “Os ativistas pelos direitos dos animais dizem que eu mato chinchila para madame se proteger do frio. E é isso mesmo que eu faço. Mas faço com todas as autorizações e licenças ambientais, e chinchila minha não sofre. Nem na vida nem na morte. Elas têm do bom e do melhor, isso eu posso lhe assegurar”.
Pois a madame talvez até gostasse de visitar as instalações do sr. Perez, apesar do barro formado pelas infatigáveis chuvas estivais e do cheiro de amônia produzido pela urina de 4 mil chinchilas reunidas. Os animais do sr. Perez têm gaiola individual à disposição, ambiente climatizado por equipamentos de ar condicionado, ração especial à base de cereais, água filtrada e renovada e, uma vez por semana, direito a banho de bicarbonato de sódio. As porcarias que as chinchilas do sr. Perez fazem são absorvidas por uma cobertura de lascas secas de pinho (um produto denominado maravalha), trocadas diariamente. Tirante a amônia, o recinto não cheira mal. De súbito o sr. Perez estanca diante de uma das gaiolas. Ele abre a portinha, retira uma chinchila acinzentada lá de dentro e, com sincera preocupação na voz, lamenta: “Ela está com a orelhinha caidinha… Precisamos ver isso, pode ser uma infecçãozinha”. O sr. Perez costuma se referir às partes das suas chinchilas no diminutivo. É assim também quando ele pega uma pele já pronta para virar casaco, esticadinha, fofinha e limpinha, e explica o que são aqueles buraquinhos. “Aqui são os olhinhos, aqui as orelhinhas e aqui as patinhas.” Outrossim, quando explica como efetua o abate (e nesse caso, apesar de todo o conforto disponível, a madame talvez não quisesse ser uma chinchila do sr. Perez): “Tem criador que primeiro a adormece com éter. Eu confesso que não tenho tempo, porque chego a abater 200 num único dia. Seguro a chinchila pelo rabo, deixando-a cabeça para baixo. Então, pego o pescocinho dela e o viro para cima, num ângulo de 90 graus. Aí dou um tranco, uma esticadinha. Com isso, secciono a medula de forma rápida e indolor, ela morre instantaneamente. O barulho é o de um palito de dente quebrando”. Para onde vai a carne depois que a pele é retirada? Os criadores do sul do País fazem churrasco. O sr. Perez, que diz preferir uma boa picanha, enterra. Suas chinchilas vivem exatos 360 dias.
Churrasco. O sr. Perez diz que a pele de chinchila não é a mais cara do mundo, porém o casaco feito dela o é. Uma pele de chinchila de altíssimo padrão (graúda, pelos longos, sem falhas, pretíssimos no dorso e branquíssimos na barriga) vale 80 dólares americanos. Uma pele do afamado vison com qualidade equivalente é 25% mais cara. A diferença: um casaco de chinchilas na altura do joelho consome 200 chinchilas; um de vison, 60 visons; e um de dálmatas, 101 dálmatas – mas essa é outra questão, a madame haverá de convir. Não por outro motivo, o sr. Perez, que preside a Associação Brasileira dos Criadores de Chinchila Lanífera (Achila), gosta de puxar brasa para a sua chinchila. “Hoje, um casaco de vison é classe média. Se ele carregar a etiqueta de um estilista famoso, muito famoso, pode custar uns US$ 15 mil.” Chinchila, não. Chinchila é o must. “Tem casaco de chinchila de US$ 70 mil”, garante o sr. Perez. E esse foi um patamar alcançado graças aos criadores, que foram se aperfeiçoando, e também aos estilistas, com sua mania de exclusividade. O sr. Perez lembra que certa feita o saudoso Clodovil Hernandes quis lançar uma linha de sandálias de tiras de pele de chinchila em parceria com um grande magazine. “Consultei a Versace, sempre um farol no mundo das peles, e me lembro até hoje da resposta que me chegou por fax: ‘Quando a empregada doméstica tiver uma sandália de chinchilas, a patroa vai deixar de desejar o casaco’.”
Mas a chinchila não faz exatamente a cabeça do sr. Luiz Mori, dono de uma empresa fundada pelo pai dele que há mais de 60 anos reforma, conserta e armazena adequadamente os casacos de pele da high society brasileira, particularmente a paulistana, embora ele também tenha clientes nas aprazíveis Salvador, Recife, Fortaleza e Brasília. O sr. Mori possui até câmaras frias a 12 graus centígrados, livres de poeira, umidade e luz do sol, para conservar os casacos em seu pleno esplendor. “Tenho peças com mais de 50 anos de idade aqui”, ele diz, orgulhoso. Mas, em questão de moda, explica o sr. Mori que casaco de chinchila, sempre tricolor (preto, cinza e branco), é marcante por demais. Não dá para ir a dois casamentos seguidos com ele. O que vão dizer? Que madame só tem um casaco de pele. “Enquanto um bom vison preto, mesmo que tingido, ou um castor marrom-escuro são mais neutros. É luxo sem espalhafato.” Logo se vê que o sr. Perez é fã de um pretinho de peles básico, uma peça mais curinga, por assim dizer.
O famoso gângster americano Frank Lucas aprendeu isso da pior maneira. Em 1971, ele cobriu-se de chinchilas para assistir à luta de Mohamed Ali e Joe Frazier no Madison Square Garden, em Nova York. Seu casaco, tão longo que lambia o chão, tinha custado US$ 100 mil. E o chapéu, igualmente de chinchilas, US$ 25 mil. “Foi um erro”, admitiu o sr. Lucas, hoje com 80 anos, em sua autobiografia. As chinchilas derrubaram o sr. Lucas do trono do qual ele movimentava US$ 1 milhão por dia comercializando heroína no Harlem e adjacências porque, naquela noite da luta, o sr. Lucas, vestido de madame, chamou exageradamente a atenção dos policiais presentes. Obviamente, eles quiseram saber quem era o crioulo repleto de peles da cabeça aos pés que tinha um lugar muito melhor que o do Frank Sinatra. Tivesse o sr. Lucas optado pela raposa prateada da Sibéria ou pela nútria (o nosso bom e velho ratão-do-banhado) ou até pelo simplório coelho (a carne de vaca das peles), estaria ele ainda traficando por aí.
Enfim, imputa-se ao preço ligeiramente alto e à necessidade de certa parcimônia no usar a explicação para não haver casacos de chinchila prontos no mercado. Se madame quiser, tem de encomendar. O trade funciona da seguinte maneira: madame pede a seu estilista de confiança a feitura de um memorável casaco de chinchilas; ele vai solicitar as peles a um mercador do ramo, que sairá pelo mundo em busca delas; provavelmente esse mercador passará pela Argentina e pelo Brasil, os dois maiores produtores mundiais de peles de chinchila na atualidade. Não é tão simples quanto parece. As chinchilas diferem muito entre si – há grandes, médias, pequenas, cinzas, pretas, beges e uma infinita variedade de meios-tons entre essas cores. O bom gosto de madame requererá 200 chinchilas minimamente parecidas, para que o casaco resulte uma peça uniforme – afinal isso aqui não é roupa de festa junina. Ao mercador, portanto, caberá encontrar essas 200 peles semelhantes entre os mais de 5 mil fornecedores espalhados pelo mundo.
O 420 criadores brasileiros associados à Achila promovem quatro vendas públicas de peles por ano. Na mais recente, em dezembro, um mercador canadense veio para comprar 27 mil peles, mas só encontrou 8 mil que preenchiam suas necessidades, pagando US$ 45 dólares, em média, cada. Madame está coberta de razão: 27 mil peles significam 135 casacos lindos de morrer. Mas onde estarão todos esses chinchilosos, raramente vistos na Champs-Elysées, na Via Montenapoleone, na Fifth Avenue ou na Calle Serrano? “Na China”, resume o sr. Perez. “Os chineses compram 95% de nossa produção.”
E são as chinesas também que garantem a alta do mercado de peles mesmo nesta desgraceira de crise, em que os ricos europeus e americanos se veem impelidos ao sacrifício de comprar menos. O sr. Perez faz uma conta célere e pouco científica para madame ter noção da ordem de grandeza. A China contém 1,4 bilhão de chineses. Se metade for mulher, temos 700 milhões de chinesas. Imaginemos que haja 10 milhões de milionárias. Finalmente, se 0,1% das milionárias quiser um casaco de pele, serão necessários mil casacos. E, se a preferência for pelas chinchilas, precisar-se-á de 200 mil animais. A Argentina produz 100 mil peles de chinchila por ano, o Brasil, 70 mil e os outros países, juntos, 30 mil. Ou seja, a produção anual só seria suficiente para abastecer a China, não houvéssemos trabalhado com esses números soltos, exemplos subdimensionados. “Na realidade, falta pele na China”, regozija-se o sr. Perez.
Coincidência ou não, é da China que vem a maior inspiração para os ativistas da International Anti-Fur Coalition (IAFC), ou Coalizão Antipele Internacional, uma ONG israelense que almeja banir o hábito da madame de se aquecer mediante o sacrifício de bichinhos. Eles dizem que os criadores chineses são os mais cruéis, esfolam animais ainda vivos e valem-se, inclusive, de peles de cães e gatos para fazer brinquedos de pelúcia. “Usar casaco de pele animal em pleno século 21, com o tanto de tecnologia que temos disponível para a criação de tecidos sintéticos, é uma atitude imoral”, diz o sr. Fábio Paiva, da ONG Holocausto Animal, braço verde-amarelo da IAFC. “Essa conversa de que os animais criados em cativeiro para esse fim não sofrem é balela. Animais não são propriedade do ser humano. Apropriar-se indevidamente deles e matá-los já é sinônimo de sofrimento. Não importa se é indolor ou não, morte é morte. E matar bicho para preencher sei lá que tipo de vazio existencial de alguém não é coisa que se faça.”
Passar bem, madame. Volte sempre.
link da matéria: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,luxo-abaixo-de-zero,666639,0.htm