Marly Winckler é uma das maiores e mais ativas vozes do vegetarianismo no Brasil. Incansável, ela já realizou grandes eventos, entre feiras, congressos e seminários, para difundir o tema no país. Ela é, sem dúvida, um nome indispensável quando o assunto é vegetarianismo. Socióloga e tradutora (traduziu mais de 50 livros, entre os quais Libertação Animal, de Peter Singer), coordena a IVU – União Vegetariana Internacional para a América Latina e o Caribe. É presidente da SVB – Sociedade Vegetariana Brasileira, além de moderar as listas de discussão sobre vegetarianismo veg-brasil e veg-latina. Incentivadora de várias ações de divulgação do vegetarianismo, Marly coordena, atualmente, a organização do Festival Vegano Internacional, que será realizado no Rio de Janeiro, entre os dias 22 e 25 de julho de 2009 – é a primeira vez que um país da América Latina sedia o Festival. Autora dos livros Vegetarianismo – Elementos para uma Conversa Sobre e Fundamentos do Vegetarianismo, Marly fala com exclusividade à jornalista da ANDA Cynthia Schneider sobre vegetarianismo, veganismo e os novos projetos.
ANDA – Em julho acontecerá no Rio de Janeiro o Festival Vegano Internacional, do qual você é uma das organizadoras. Qual a proposta geral do evento?
Marly Winckler – O evento tenciona ser um grande momento de reunião de veganos, vegetarianos e simpatizantes de todas as partes do mundo, com um cunho mais festivo do que acadêmico. Queremos transmitir nossa mensagem séria e bem fundamentada dos benefícios do veganismo, num clima descontraído, festivo, alegre, vivencial. Teremos muitas atividades com comida, palestras, encontros, oficinas etc. A seis meses do evento já temos mais de vinte palestrantes confirmados, entre os quais o show-man Aris La Tham, da Jamaica. Quem quiser acompanhar as novidades acesse www.svb.org.br/12veganfestival .
ANDA – Quais são as expectativas em termos de promoção e divulgação do veganismo com o Festival Internacional Vegano?
Marly Winckler – As melhores possíveis, pois se trata de uma oportunidade de divulgar junto à grande mídia e o grande público o que grandes expoentes do pensamento vegano – que estarão reunidos na PUC-Rio – têm a dizer sobre os benefícios do veganismo e que pensamos ser um estilo de vida revolucionário: que vai muito além de uma opção alimentar.
ANDA – Você representa a IVU – União Vegetariana Internacional para a América Latina e já percorreu vários países do mundo em eventos científicos sobre veganismo. Poderia indicar os rumos do veganismo no mundo hoje?
Marly Winckler – Como nunca antes o veganismo ganhou seu espaço – apesar de ainda ter que galgar muitos degraus para chegar ao mainstream. Hoje cada vez menos precisamos nos explicar, e é o contrário que acontece. Ou seja, cada vez mais pessoas com acesso a informações estão percebendo que o estilo de vida que exclui todos os produtos de origem animal não é um capricho de um bando de malucos, mas tem um arrazoado extremamente coerente, com implicações importantíssimas para a saúde das pessoas, para os animais e para a preservação do meio ambiente, entrando em pauta até a própria sobrevivência do planeta. Muitas das mazelas de nossa época de consumo desenfreado e valores individualistas poderiam ser resolvidas com a adoção do um estilo de vida proposto pelo veganismo. No mundo todo o veganismo chegou ou está chegando para ficar. Grupos de diversas tendências se organizam e se fortalecem difundindo o veganismo. A palavra que foi cunhada há pouco mais de 60 anos já está consagrada nos dicionários e na vida de milhares de pessoas.
ANDA – Como está o veganismo no Brasil em comparação a outros países? Qual a identidade, a prioridade do discurso vegano e a abrangência do debate no País?
Marly Winckler – Não estamos muito defasados não. A facilidade dos meios de comunicação faculta que o que seja produzido nos EUA ou Europa e no resto do mundo chegue aqui – e vice-versa – praticamente instantaneamente. Depois de anos de labuta temos hoje no Brasil um movimento que – mesmo incipiente – é reflexivo e conta com a contribuição de muitos pensadores próprios. Mas agora que conseguimos criar um certo movimento temos que jogá-lo para fora o mais amplamente possível. Não queremos ficar só convertendo convertidos. Nossa mensagem precisa alcançar os formadores de opinião e as massas para ter a eficácia que pretendemos que tenha. Eventos como esse que estamos organizando para julho servem para isso. O Rio é o tambor do Brasil – tudo o que lá acontece é repercutido pelo país afora. E os cariocas gostam de novidade. Então nossa festa será muito bacana. Tudo promete.
ANDA – Como você definiria o movimento de defesa dos direitos dos animais no Brasil? Há bons resultados em comparação com outros países ou ainda estamos completamente cegos e repetindo as mesmas barbáries contra os animais?
Marly Winckler – Como em todos os movimentos nada nasce pronto – são anos de construção para chegar-se a um certo amadurecimento, penetração e debate por uma parcela substancial da população. No Brasil estamos iniciando esse debate, o que é muito bom – pois saímos da fase em que trabalhávamos atomizados, cada qual refletindo e procurando fazer algo apenas no seu ambiente mais próximo. Para que esse debate avance temos que abranger um âmbito muito maior, produzir materiais, escrever e traduzir livros, fazer eventos, enfim, temos que criar um ambiente propício para que os argumentos defendidos pelo movimento possam circular. Só assim, com um movimento forte, articulado e propositivo, nossa voz poderá ser ouvida. A situação dos animais no Brasil ainda é calamitosa.
ANDA – Você preside a SVB – Sociedade Vegetariana Brasileira, entidade que já está presente em 26 cidades, em 10 estados do País. Em termos quantitativos, que informações temos sobre o crescimento do vegetarianismo e do veganismo?
Marly Winckler – Acho que vamos muito bem em termos de movimento e também quanto ao número de pessoas que cada vez mais se tornam vegetarianas e veganas. Mas é bom lembrar que é bastante comparativamente ao que se tinha poucos anos atrás, mas ainda é muito pouco relativamente, em comparação à população como um todo. Nossa tarefa ainda se encontra na fase de conseguirmos transmitir os conhecimentos que temos, que tanto nos empolgam e que serviriam para transformar a sociedade, tamanho o impacto que teria a transformação em massa das pessoas em vegetarianas e veganas. A SVB, em seus poucos anos de vida, está com uma teia armada, mesmo funcionando apenas com trabalho voluntário. Precisamos superar essa fase e profissionalizarmos a organização, sobretudo a parte administrativa. Mas os números, apesar das dificuldades enfrentadas, são impressionantes. O site da SVB recebe em média 3 a 4 mil visitas por dia. Atendemos centenas de pessoas em busca de informações. Nossos eventos repercutem e servem para acender a chama dos ativistas que passam o ano todo em suas ações locais, tentando vencer os obstáculos.
Temos uma estatística fornecida pelo Instituto Ipsos que é muito promissora, segundo a qual 28% dos brasileiros “têm procurado comer menos carne”. É o segundo maior índice mundial, próximo ao canadense e maior que o britânico. Fica atrás apenas do registrado nos Estados Unidos, onde os hambúrgueres são uma das maiores fontes de doenças cardiovasculares, obesidade, vários tipos de câncer etc. Outro indicador de que há crescente interesse é que duas das maiores indústrias de carne abriram linhas vegetarianas – com esse nome: vegetarianas. Certamente essas empresas fizeram pesquisas para lançar sua linha vegetariana e devem ter constatado que é um nicho a explorar.
Em 2000, o Sítio Vegetariano (www.vegetarianismo.com.br) – site que coordeno – lançado em 1999, recebia cerca de 4 mil visitas por mês e contava com cerca de 300 sócios. A lista de discussão sobre vegetarianismo, veg-brasil, tinha cerca de 90 membros de todo o país e alguns de fora. Hoje o Sítio Vegetariano recebe quatro a 5 mil visitas por dia e um milhão de hits (cliques dentro do site) mensais. A lista veg-brasil tem em média 2 mil membros permanentemente. Logo após o Congresso Vegetariano Mundial, realizado em 2004 em Florianópolis, todas as listas de discussão dobraram de tamanho. E também proliferaram sites sobre o tema na Internet e nas comunidades do Orkut. Depois disso já realizamos dois grandes Congressos muito bem-sucedidos e o Salão Vegetariano, onde circularam 20 mil pessoas.
A tendência mundial é de crescimento do vegetarianismo – na Inglaterra, onde existem surveys, 47% da população se autodenominou vegetariana, mas, checadas as respostas, verificou-se que, na verdade, boa parte deste número comia peixe e frango – carnes brancas – e se considerava vegetariana, mas não era. Mas isso indica uma tendência: a ‘vontade de ser vegetarian’. No Brasil essa tendência é crescente – assim como o interesse por ‘alimentação saudável’, onde o vegetarianismo se encaixa muito bem. Também é sinal da existência de um público consumidor considerável a oferta cada vez maior de produtos próprios para o consumo de vegetarianos na grande maioria dos supermercados do país – aliás, este é um dos únicos setores que estão em expansão no momento, juntamente com o de produtos orgânicos, também consumidos por vegetarianos, segundo a associação de supermercadistas de São Paulo. Pode-se observar isso em praticamente todos os supermercados, onde as gôndolas destinadas a produtos naturais, integrais e orgânicos aumentam cada vez mais. E até em mercados menores os produtos ‘saudáveis’ estão sendo ofertados.
Também cresce o número de restaurantes vegetarianos no Brasil. Hoje praticamente não tem cidade de porte médio que não tenha restaurante vegetariano. Começa a se reverter a era do “nutricionismo”, em que a indústria de alimentos sintetizou todos os alimentos, recheando produtos artificiais de vitaminas, aminoácidos, ômega isso ou aquilo. A tendência agora é a volta ao natural, ao orgânico, ao perto de casa.
ANDA – Já é possível perceber o crescimento do vegetarianismo e do veganismo nos comportamentos de consumo? A demanda por alimentos orgânicos, produtos de origem vegetal e sem crueldade é representativa no Brasil?
Marly Winckler – O setor de orgânicos é o que mais cresce nos supermercados. Também os alimentos saudáveis, integrais etc. Nessa esteira entram os produtos sem ingredientes de origem animal. O aumento de produtos disponíveis é visível e esses produtos estão se diversificando. Inclusive em mercadinhos de bairro hoje se encontram esses produtos cada vez mais. Isso reflete uma consciência que vem se desenvolvendo nessa direção, percebendo que produtos orgânicos, perto de casa, frescos – e sem ingredientes de origem animal – são muito benéficos. A era da qualidade está começando. Não queremos só quantidade. Queremos qualidade, harmonia, um meio ambiente preservado, animais livres e saúde. Sem saúde a vida perde a graça. Hoje temos no Brasil duas grandes feiras de produtos orgânicos. A SVB está presente em ambas, todos os anos. Na Bio Brasil Fair inclusive ocupamos um espaço enorme no ano passado com o Salão Vegetariano – e o sucesso foi tão grande que se tornou anual e em julho repetiremos a dose, com uma feira de produtos sem nada de origem animal, uma cozinha top de linha montada pela Electrolux, e um seminário onde a parte conceitual é abordada. A Cozinha Vegetariana foi o chamariz do Salão – milhares de pessoas se aglomeraram para aprender e degustar os pratos veganos ensinados por chefs de diversas linhas.
Também como sinal do crescimento do vegetarianismo temos empresas certificando seus produtos com o selo da SVB de produto isento de ingredientes de origem animal, como é o caso da Samurai Tofu e outras empresas que estão estudando a certificação.
ANDA – A mídia tem um papel bastante reconhecido na formação ou deformação de opiniões. Como você vê a postura geral da mídia de massa quanto ao veganismo?
Marly Winckler – A mídia gosta de cobrir o que dá ibope. E, na medida em que o movimento crescer – e está crescendo –, inevitavelmente ela terá de acompanhar o processo. Mas não podemos nos queixar. A cobertura tem sido cada vez maior. O fato é que não dá mais para ignorar as implicações que advêm de uma mudança para uma alimentação não centrada na carne. O próprio ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, declarou recentemente que 80% da destruição da Floresta Amazônica se deve à criação de bovinos e estão caçando boi pirata. Sinal dos tempos. Os ambientalistas também estão com os dias contados para ignorarem a contraparte “carne” na equação da destruição dos recursos naturais. Aliás, a SVB legendou o DVD que pretende ser uma resposta ao de Al Gore, que omitiu a parte da criação de animais no aquecimento global. Lançamos esse DVD em Fortaleza com a presença da sua apresentadora, Marianne Thieme, presidente do Partido Animal da Holanda.
ANDA – Um dos caminhos do debate sobre o veganismo é a ética. Como você percebe a pesquisa e as ações de grupos independentes no Brasil hoje sobre veganismo e ética?
Marly Winckler – A ética está presente em todas as nossas ações e subjaz também todas as vertentes do veganismo: os aspectos da saúde, da preservação ambiental – além do clássico aspecto do respeito pelos animais. Pois é ético propor uma alimentação e modo de vida que é responsável pelas principais doenças que levam ao óbito nas sociedades industriais? É ético propor uma alimentação e modo de vida que destroem sem dó nem piedade os recursos naturais já tão devastados? O debate sobre o que estamos fazendo com os animais também avança e é importantíssimo que se aprofunde cada vez mais – pois, como já foi dito, a maneira como tratamos os animais espelha o tipo de civilização que construímos. Não há civilização quando tratamos os animais como produtos de uma linha de montagem, confinados, impedidos de seus instintos mais básicos, em situações penosas e insalubres, para depois serem abatidos em condições também terríveis. Isso é barbárie.
ANDA – O governo tem demonstrado algum esforço, em termos de políticas públicas, educação popular ou investimento econômico no agronegócio que possa ser considerado positivo para o veganismo – e em consequência para a saúde das pessoas e para promoção de respeito aos direitos dos animais?
Marly Winckler – Tudo muito incipiente. Aqui e ali uma voz reconhecendo o problema, mas não passam ainda de iniciativas isoladas. Esse é um problema importantíssimo e o governo precisa acordar para ele. Acredito que, na medida em que avance o movimento, de maneira séria e consequente, haverá mais espaço para que políticas públicas sejam implementadas nessa direção. Mas cravamos uma estaca nessa direção: um sócio da SVB acaba de ser eleito prefeito de uma cidade do interior paulista e está disposto a implementar ações na direção do vegetarianismo.
ANDA – Que outros projetos você está desenvolvendo para 2009?
Marly Winckler – Em 2009 temos como dois momentos importantes o 2o Salão Vegetariano e o 12o Festival Vegano Internacional. A SVB tem crescido e se consolidado, e em 2009 não será diferente. Em Curitiba teremos uma Feira Gastronômica Vegana semanal, com apoio da prefeitura. As edições passadas foram muito bem-sucedidas e esse ano promete para a consolidação dessa iniciativa do grupo local da SVB em Curitiba. Este ano também completam dez anos de atividades as listas de discussão sobre vegetarianismo veg-brasil e veg-latina (agora ivu-latina) e o Sítio Vegetariano, primeiro sítio na língua portuguesa do mundo e ainda o mais visitado, com cerca de 5 mil visitas diárias. Vamos comemorar devolvendo ao internauta mais qualidade, interatividade e até alguns brindes que serão sorteados durante o ano todo.
ANDA – Poderia deixar uma mensagem sobre o papel do veganismo na sociedade contemporânea?
Marly Winckler – Não conheço quem esteja satisfeito com o mundo do jeito que ele está. Todos querem mudar, querem um mundo melhor. O veganismo tem uma contribuição importantíssima a dar para o mundo melhor que todos queremos. E o que é muito bom é que essa mudança está ao alcance de cada um de nós. Começa com cada um de nós. Não depende dos políticos lá de Brasília ou de qualquer ação externa. Nós mesmos podemos tomar as rédeas da nossa vida em nossas mãos e promover a mudança que afetará muitos departamentos da nossa vida para melhor. Há muitos mitos em torno do vegetarianismo/veganismo, como, por exemplo, de que comemos apenas alface. E é exatamente o contrário. O vegano se abre para novas culinárias. Quase todos aprendem a cozinhar – e, portanto, a ter controle sobre o que consomem e a ter consciência sobre a procedência dos produtos que consome, e isso é muito bom. É parte integral do novo ser e da nova era que respeita os animais, convive em harmonia com seus semelhantes e preserva os recursos naturais.