Por Marcio de Almeida Bueno e Ellen Augusta Valer de Freitas
“Estou profundamente convicto de que uma civilização e uma sociedade que é contra a pena de morte para os homens, mas que segue matando todas as outras espécies para se alimentar, para vender seus chifres, seus dentes, sua pele, sua banha, seus hormônios etc., é uma civilização e uma sociedade narcisista, chauvinista e hipócrita que, cedo ou tarde (mais cedo do que tarde), destroçar-se-á e comerá a si própria”. A frase é do psicólogo Ezio Flavio Bazzo, em seu livro ‘Toaletes e Guilhotinas: uma epistemologia da merda e da vingança’. O autor já lançou quase 30 obras, desconhecidas do grande público, mas com um fiel séquito de leitores, aficcionados pela verborragia contundente, politicamente desconfortável e boca-suja. Temas espinhosos como pedofilia, zoofilia, miséria humana, prostituição, seca no Nordeste, morte, sexo, religião e escatologia são tratados com o mesmo fôlego. Em meio a tudo isso, aparecem os animais não-humanos, em sua sina de serem presos e arrebentados. Bazzo não poupa o leitor, que muitas vezes sente-se como um idiota reprimido e repressor. Haja fôlego, haja estômago.
ANDA – Seu livro ‘Ecce Bestia – Libertinagem Com Animais’, aborda de maneira inédita essa abjeta exploração animal, a zoofilia. “Fazem tanta questão de colocar-se bem acima das bestas, inconscientemente, e na intimidade precisam buscar lá no estábulo ou lá no galinheiro a sua autoestima, o seu gozo e a realização dos seus desejos”, diz um trecho. Por que a zoofilia ainda persiste, e adquiriu a aura de tabu?
Ezio – Todas as críticas que comumente faço à exploração dos homens sobre os animais são baseadas muito mais num certo idealismo, numa certa ideia de como deveria ser, do que na esperança de que as coisas venham a ser diferentes. Não somos uma espécie saudável. As relações entre nós mesmos não deixam dúvidas. Se não precisássemos comer, talvez nossas transações com os outros animais até fossem mais tranquilas. Mas o que se pode esperar de um ser que precisa comer quatro vezes por dia? De uma sociedade ou de uma civilização que para manter-se viva precisa matar milhares de vacas, de galinhas, porcos, coelhos e etc, cotidianamente? Nada! E como viemos assim pelos séculos afora, sem mudanças, ou até piorando, não há chances de que venhamos a ser diferentes. Uns veganos aqui, uns vegetarianos ali, uns abstêmios acolá, mas isso não significa nada diante da imensa horda de carnívoros que mobilizam os açougues e os matadouros todos os dias. Nossa tirania (e também a da grande maioria dos outros animais) começa no estômago. A existência é uma comilança sem fim. E, sinceramente, não acho menos patético e menos absurdo que um tigre, para seguir existindo, precise comer um jacaré, que um gavião devore um sabiá, que uma serpente engula um rato e etc. Toda essa guerra interminável e maliciosa é terrível, sintoma de um projeto de mundo que não tem sentido algum. A zoofilia, diante da barbaridade da matança, não é nada, apenas mais uma das exóticas variáveis do conflito sexual que nos caracteriza…
ANDA – Em um livro seu, menciona uma visita a um canil, repleto de “adotados, adestrados, amados, rejeitados, abusados, escravizados, enjaulados, acorrentados, feitos de cobaia e por fim encaminhados ao matadouro”. O egoísmo humano contabiliza esses ‘depósitos’ de vidas sencientes?
Ezio – Esse cenário é quase diário pelo mundo afora. Como entre nós já somos quase oito bilhões, entre os cães também não há controle de natalidade. Eles também são traídos pelo próprio instinto e engravidam, e se reproduzem, e se arrastam famintos e mendigos pelas cidades até serem eliminados. Sem falar do mais ou menos recente incremento dos mercados pet, filhotes com intenções mercantilistas. Mais ou menos como uma fábrica ficar doando impressoras para ter como vender cartuchos e papel. A cidade está repleta de animais. Cada solitário e cada velhinha(o) se dá o direito de ter um com o pretexto de que ele amenizará sua solidão. E uma indústria mafiosa de medicamentos, comidas, brinquedos, hormônios e etc, tudo com preços superfaturados, cresce vertiginosamente ao lado desse grande zôo que são as casas e as cidades. Que fazer? Quando tudo é mascarado e confundido com gestos de amor?
ANDA – Em nota de rodapé, em uma de suas obras, recomenda o documentário ‘A Carne é Fraca’. Triturar vivos os filhotes de outras espécies – como denunciado neste filme – atesta o que, a respeito desta sociedade?
Ezio – O documentário mostra o horror e a carnificina que acontece diariamente na esquina de nossas casas e nos arredores de nossas cidades, com nosso consentimento, nosso silêncio, nossa cumplicidade e nossa impotência, e deixa bem claro que nossas tripas comandam nossa vida bem mais que nosso cérebro. E o pior é que, apesar de nossa arcada dentária e de outros argumentos dos teóricos do vegetarianismo, o pior é que suspeito que na origem, nos primórdios, tenhamos sido carnívoros como os esquimós e todas as tribos das quais temos notícias. A doença seria incurável e o absurdo vem de longe! A única diferença entre nós e os outros animais (razão de nossa culpa e de nosso sofrimento) é que nós temos consciência desse absurdo e dessa sangueira…
ANDA – “De minhas lembranças infantis, lembro com horror dos dias em que imolavam um porco. Seus gritos, seus dentes e seus olhos em desespero. Alguém enfiando-lhe uma faca na direção do coração, o primeiro jato de sangue jorrando a distância e o restante recolhido num balde”. Essa vivência enquanto criança ajudou a moldar sua visão de mundo?
Ezio – Evidentemente. Apesar de sempre compartilhar dos banquetes e dos festins, apesar de não rejeitar os torresmos, os salames, as chuletas e etc., acho que secretamente fazia cumplicidade com os porcos! Aqueles animaizinhos pelos quais os próprios matadores pareciam ter afeto. Lembro que os outros porcos faziam um silêncio quase sepulcral depois dos gritos e do sacrifício. E nada poderia ser mais terrível para aquela criança do que a morte. Duas horas antes estava lá, duas horas depois já não existia. Que diferenças significativas poderia haver entre os homens e os porcos? E nas paredes, às vezes até ao lado do animal esquartejado, sempre um crucifixo. Por coincidência, nele também havia um ser sangrando. Um Deus! Um deus e um porco ensanguentados! As labaredas sob o tacho, tragos de graspa, e de uma antiga radiola alguém, indiferente, cantando ‘Torna Sorriento’.
ANDA – “Lembro-me perfeitamente bem das mãos grotescas do homem que enfiava a lâmina na direção do coração dos porcos, e que eu estava sempre do lado dos suínos, torcendo para que eles, num último ataque de desespero, conseguissem devorar a mão ou pelo menos o joelho dos matadores”, trecho de Toalete e Guilhotinas.
Ezio – Algo parecido aconteceu numa cidade do Nepal, onde assisti o sacrifício de um búfalo para uma divindade daquela gente. O homem da faca arrancou-lhe a carótida, ainda vivo, e com ela esguichou todo o seu sangue sobre uma estátua da divindade que estava sendo homenageada… Sem nenhuma demagogia, tive mais empatia com aquele animal do que com todas as populações ao redor do Himalaia.
ANDA – “Vou me dando conta de como é impressionante o estágio de indiferença em que nos encontramos. Como é possível viver no meio de uma chacina e de um genocídio animal desses, sem desesperar-se? Frangos, porcos, vacas, peixes, patos, rãs, camarões, coelhos, faisões, ovelhas, nenhuma espécie escapa da fome sanguinária dos homens, desses barrigudos inúteis que saem dos restaurantes de Montmartre palitando os dentes e arrotando”. Toaletes e Guilhotinas.
Ezio – Sem falar do foie gras. Os gansos e os patos usados como fabricas de fígados. Mas não adianta lamentar-se. Esse é o que se chama conflito existencial. Ter consciência do absurdo que é estar aqui, ter que ser cúmplice de todas essas barbaridades e sem saber para quê e por quê. Como dizia um escritor argentino, “nascer é um pacto monstruoso, mas estar vivo é a única maravilha possível”. A monstruosidade que fazemos com os animais fazemos, mais sutilmente, também com os de nossa própria espécie. Uma grande parte das pessoas do continente africano, ou aqui da periferia de Brasília, por exemplo, está morrendo à mingua, sem que isso nos abale para nada. Nossa indiferença é quase assustadora. E é quase uma sandice querer que os animais sejam tratados por esses mesmos personagens de maneira que não conseguimos tratar nem nossas crianças…
ANDA – Você já esteve na Índia, e presenciou o sacrifício de um touro a Vishnu. “Quem é que ainda consegue entregar-se de um filet mignon? Os olhos do animal sacrificado eram mais puros que os de seus verdugos e inclusive que o dos deuses a quem estava sendo oferecido, mas assim mesmo a plateia se acotovelada para ver as mãos dos dois matadores”.
Ezio – Isso foi no Nepal. Todo mundo queria presenciar o sangue daquele animal desesperado sendo lançado sobre a estátua… Um capricho, um sadismo, uma nostalgia da ferocidade que hiberna por dentro de nossos ossos? Não podemos esquecer que muitos de nossa espécie foram até canibais. E em termos de inconsciente, isto foi ontem. Dois, três, cinco mil anos não querem dizer nada neste particular. Alguns anos fora dos ‘protocolos civilizatórios’ e pronto: voltamos a nos despedaçar outra vez com os dentes…
ANDA – “Ah, criadorzinho de vacas que derrubas uma floresta secular para plantar soja ou para criar rebanhos! … É sintomático que no teu país haja mais vacas de que gente. E que tua nação seja um imenso e cruel matadouro. Tu que acreditas piamente num céu após a morte, podes estar certo de que quando chegares lá darás de cara com milhões de vacas, em fila, todas esperando avidamente para enfiar-te os cornos no rabo”. Manifesto Aberto a Estupidez Humana.
Ezio – É curioso que mesmo os religiosos mais fanáticos, de toda e qualquer religião, não se abalam com a matança de animais, com o sangue e a traição que essa mortandade representa para com o outro, seja ele um homem ou um cão. Aliás, algumas religiões até sacrificam animais em seus rituais, outras simbolizam o sangue de seu deus durante a missa e etc. Haverá maior perversão do que esta? Em quase todos os livros ‘sagrados’ há autorização explicita para explorar, matar e comer os outros animais, dando pistas de que o tal deus, também era chegado num sadismo e num churrasco!
ANDA – Em seu livro ‘Mendigos: Párias ou Heróis da Cultura?’, você apresenta Caim como o primeiro vegetariano da história, e o primeiro a usar métodos substitutivos ao sacrifício de animais. E Abel como quem inaugurava os futuros malefícios dos grandes rebanhos, da reprodução planejada de animais para a carnificina dos açougues, para a comilança de carne e para a sangueira que é hoje o mundo”. Quem defende os animais por Ética precisa, necessariamente, enfrentar o mundo e ser condenado por ele?
Ezio – Aproveitei a fábula de Caim e Abel para brincar com a ideia de que aquele que ofereceu raízes e ervas a Deus (um naturista) foi rejeitado, induzido ao assassinato, expulso da família, amaldiçoado e condenado, ao contrário daquele que não se comoveu em assassinar um filhote de ovelha para o mesmo fim. A fábula deixa claro que Deus preferiu a carne.
Quanto à defesa dos animais, será sempre uma luta frustrante, individual, romântica e solitária já que, na verdade, não tem muito sentido salvar uma vaca, quando sabemos que milhões delas estão sendo sacrificadas no mesmo dia nos matadouros da esquina e sem que se possa fazer nada para impedi-lo. É difícil contentar-se com a defesa de uma galinha que ia ser sacrificada numa macumba, quando no abatedouro dos fundos, só na mesma noite, foram degoladas duas, três mil. Massacre que não se pode interditar. Por que defender um gato e massacrar os ratos? Com que argumentos pisoteamos as baratas, as pulgas, os pernilongos e queremos defender um beija-flor? E depois, os corpos, os dentes, os estômagos e as tripas das pessoas estão viciadas na carne e no sangue, mais ou menos como as veias dos alcoólicos estão viciadas no álcool. Além de asqueroso, é triste o papel devorador que nos foi atribuído na existência. Um criador minimamente sensível e inteligente, teria nos feito movidos a energia solar.