Há poucos meses, cerca de 200 países aprovaram um acordo histórico que pretende proteger as terras e os oceanos, para evitar a extinção em massa de espécies devido à ação do homem no planeta. O pacto entre as nações, chamado de Acordo de Kunmig-Montreal, estabelece a meta de proteger 30% do globo até 2030 e foi assinado em dezembro de 2022, durante a Convenção sobre Biodiversidade da ONU. Os termos do acordo foram descritos como o equivalente para a biodiversidade à meta de limitar o aquecimento global a 1,5ºC, incluído no Acordo de Paris. Apesar de a iniciativa ter sido comemorada, uma pergunta ainda está sem resposta: será que vai dar tempo?
A forma como as mudanças climáticas impactam animais e plantas é tema de estudo em diversas partes do globo, mas muitas lacunas ainda precisam ser preenchidas no entendimento sobre como tais alterações afetam as populações, as características visuais das espécies e sua composição genética. Ter tais dados em mãos é fundamental para melhor proteger a biodiversidade do planeta e, assim, atingir a meta proposta pelos países-membros da ONU.
Vários anos antes da assinatura do acordo de Kunmig-Montreal, pesquisadores de diferentes países começaram a se reunir em uma iniciativa pioneira que pode ajudar em muito no cumprimento da meta assumida no Canadá.
Atualmente com mais de 300 membros de 23 nações, a rede interdisciplinar de cientistas é formada por ecólogos, biólogos moleculares, biólogos populacionais e de outras áreas de pesquisa, comprometidos com o desenvolvimento de modelos para compreender os principais processos que acontecem em diferentes níveis de organização biológica, a partir das mudanças no clima e outras alterações ambientais causadas pelo homem.
Eles fazem parte da Rede de coordenação de pesquisa g2p2pop (RCN g2p2pop), um projeto da Northern Arizona University (NAU), financiado pela National Science Foundation americana.
“Está muito além da capacidade de um indivíduo ou mesmo de uma única disciplina científica enfrentar o desafio de entender as relações funcionais que vão desde os genomas até os fenomas e as populações. Isso em si é um grande empreendimento, mesmo sem levar em consideração as mudanças climáticas. Durante anos, a ampla comunidade científica articulou a necessidade de colaborações interdisciplinares que integrassem e sintetizassem informações quantitativamente. Em resposta a essa necessidade, o RCN- g2p2pop serve como uma plataforma para construir colaborações interdisciplinares e multinacionais e fornecer treinamento para cientistas empíricos e de modelagem”, explicou a ((o))eco Loren Buck, pesquisador-sênior da NAU e idealizador da Rede.
Em meados de março de 2023, parte deste grupo se reuniu para apresentar suas pesquisas sobre o tema e, de quebra, conhecer o local de maior biodiversidade do planeta: a floresta amazônica. ((o))eco acompanhou este encontro, realizado em Manaus e cidades ao longo do Rio Negro, e traz algumas das informações apresentadas. Confira:
Biodiversidade em declínio
A Organização das Nações Unidas classifica a biodiversidade como “a mais forte defesa natural contra as mudanças climáticas”. A Terra e os oceanos servem como sumidouros naturais de carbono, absorvendo grandes quantidades de emissões de gases de efeito estufa. Conservar e restaurar os espaços naturais e a biodiversidade que eles contêm é essencial para limitar as emissões e ajudar a nós, humanos, na adaptação aos impactos climáticos.
Um exemplo: a absorção de poluentes pelos 22% de florestas protegidas em Territórios Indígenas na Amazônia evitaram, em 2022, que 15 milhões de brasileiros que vivem na região ficassem doentes por doenças respiratórias e cardiovasculares na época de seca. Esse serviço ecossistêmico – que conta não só com o trabalho das plantas na absorção de CO2, mas também dos animais, na polinização e dispersão de sementes – gerou economia de US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões) em um ano para cidades inseridas no bioma.
Mas as mudanças climáticas têm desempenhando um papel cada vez mais importante no declínio da biodiversidade, segundo a ONU. As alterações no clima já afetaram os ecossistemas marinhos, terrestres e de água doce em todo o mundo. Isso causou a perda de espécies locais, aumentou as doenças e levou à mortalidade em massa de plantas e animais, resultando nas primeiras extinções causadas pelo clima.
“Atualmente, estamos enfrentando grandes mudanças nos padrões climáticos que podem comprometer a reprodução e persistência populacional. Muitas espécies já estão, de fato, fortemente impactadas e estamos testemunhando consequências que vão desde mudanças em suas distribuições espaciais e fenologia às extinções locais. Para ser capaz de prever como os sistemas podem mudar e projetar planos de gestão eficazes, primeiro precisamos entender completamente como a mudança ambiental afeta os sistemas biológicos”, explica Loren Buck, que passou vários meses no Brasil entre 2022 e 2023, por meio de uma bolsa do programa americano Fullbright, para desenvolver suas pesquisas.
Em terra, as temperaturas mais altas têm forçado animais e plantas a se deslocarem para altitudes mais altas ou latitudes mais altas, muitos se movendo em direção aos polos da Terra, com consequências de longo alcance para os ecossistemas, diz a organização.
Isso foi o que mostrou o biólogo francês Xavier Glaudas, especialista em serpentes, durante o encontro da RCN-g2p2pop na Amazônia. Segundo ele, que atualmente desenvolve pesquisa na Universidade de São Paulo (USP), as populações de serpentes têm apresentado declínio alarmante ao redor do globo.
Sangue frio
Como animais ectotérmicos, que ajustam a temperatura corpórea de acordo com a temperatura ambiente, as serpentes têm apresentado variações em sua fisiologia, comportamento e performance com as alterações climáticas. Isto é, o aumento das temperaturas ambientais têm alterado os padrões de atividades desses animais, limitando o número de horas que elas podem sair em busca de alimentos, se reproduzir ou deslocar, debilitando as populações.
As espécies tropicais de serpentes tendem a ser mais negativamente afetadas pelas mudanças climáticas, com declínio no número de indivíduos. “Serpentes adaptadas ao frio, principalmente as de zonas temperadas e vivendo em montanhas, estão particularmente vulneráveis ao risco de extinção”, diz Glauda. Chegará um momento em que elas não terão para onde subir, em busca de climas mais amenos.
Não fossem suficientes os problemas causados a esses répteis, as mudanças climáticas também podem causar problemas na interação deles com as pessoas. “Sabemos que enchentes e secas extremas fazem as serpentes se deslocarem, aumentando as chances de humanos serem picados por elas”, explica.
Além do deslocamento forçado, o aumento de temperatura tem outro efeito em certas espécies de répteis: a predominância no nascimento de fêmeas. Espécies de tartarugas, como as marinhas, ou jacarés, como o jacaré-do-pantanal, para citar exemplos que ocorrem no Brasil, têm o sexo dos filhotes determinado pela temperatura de incubação – temperaturas altas (acima de 30ºC) produzem mais fêmeas, temperaturas mais baixas (abaixo de 29ºC), produzem mais machos. O aumento da temperatura global, portanto, pode levar ao nascimento predominante de fêmeas, colocando espécies sob risco.
A forma como organismos respondem às variações de temperatura é justamente o campo de pesquisa da eco-fisiologista americana Amanda Wilson Carter, professora assistente da Universidade do Norte do Arizona, cujos trabalhos são focados principalmente em tartarugas, salamandras e besouros. Para ela, as descobertas do campo científico podem ser usadas como subsídios para programas de conservação.
“Eu estou realmente interessada em como os animais respondem às mudanças ambientais como forma de usar essa informação para melhorar as decisões de conservação e manejo”, diz.
Modelos climáticos indicam que, até 2100, a temperatura da terra poderá aumentar em 4ºC, o que será suficiente para levar diversas espécies de répteis e anfíbios à extinção. Estudos recentes indicam que até 2080, as extinções de lagartos no mundo devem atingir 39% das populações e 20% das espécies, por exemplo.
Perdas na água
O risco de extinção de espécies aumenta a cada grau de aquecimento, diz a ONU. No oceano, o aumento das temperaturas aumenta as chances de perda irreversível dos ecossistemas marinhos e costeiros. Os recifes de corais vivos, por exemplo, caíram quase pela metade nos últimos 150 anos, e um aquecimento maior ameaça destruir quase todos os recifes remanescentes.
Na Amazônia, as diferentes – e cada vez mais intensas – pressões antrópicas, deixam as populações ainda mais vulneráveis. O número de espécies de peixes conhecidos da Bacia Amazônica é maior do que toda Europa, América do Norte, Austrália e até do resto da América Latina, quando considerados individualmente. Em termos de comparação, somente na Amazônia, estão registradas 2.716 espécies – em toda África, são 2.954.
Segundo o pesquisador Mário de Pinna, ictiólogo do Museu de Zoologia da USP, no entanto, apesar de grande, esse número é subestimado. Ainda existem inúmeras espécies que não foram descritas na região, diz ele. Vulneráveis às mudanças do clima, elas sofrem uma pressão extra.
“O que descobrimos em nossas pesquisas foi que, embora a área de maior diversidade de peixes esteja bem protegida, ela não é a área onde as espécies ameaçadas estão. Elas estão em algumas das cabeceiras situadas exatamente no arco do desmatamento, e ali elas não estão protegidas, especialmente nas cabeceiras do Araguaia e Tocantins, Constatamos, portanto, que as áreas de preservação não estão servindo para proteger as espécies de peixes mais vulneráveis”, explica.
Assim como mostraram os pesquisadores da Rede g2p2pop, os impactos são tão variados quanto o número de espécies. Além dos já apresentados, muitos outros são objetos de estudo.
Para as borboletas, por exemplo, o aumento da temperatura pode significar a redução no tamanho da asa, como mostram os estudos iniciais da bióloga Amanda Pereira Duarte, do Instituto Butantan.
Plantas sob pressão
Como as plantas utilizam o CO2 em seu processo de fotossíntese, uma maior oferta do composto químico na atmosfera poderia ser benéfica para elas, certo? Nem tanto. Estudos mostram que plantas também são muito impactadas com as mudanças nos padrões do clima. Basta pensar nas secas extremas ou nas enchentes, que têm efeito direto na flora. Mas não é só isso.
A Amazônia, por exemplo, já está perdendo sua capacidade de retirar o CO2 da atmosfera. Entre 2010 e 2018, a maior floresta tropical do planeta liberou anualmente, em média, algumas centenas de milhões de toneladas a mais de carbono do que retirou do ar e estocou em sua vegetação e no solo. Isso não é resultado somente de desmatamento e queimadas. A combinação de aumento das temperaturas e redução das chuvas também têm deixado as áreas não desmatadas mais inflamáveis.
Para entender como a floresta tropical vai reagir com o aumento do CO2 na atmosfera, um grupo internacional de pesquisadores, parte da RCN g2p2pop, está colocando de pé um experimento chamado “Amazon Free-Air CO2 Enrichment – Amazon FACE”.
O experimento consiste na injeção de CO2 em uma área florestal selecionada, para que se possa monitorar as respostas dos organismos. Previsões indicam que o aumento do gás deverá, sim, aumentar a fotossíntese, mas também reduzir o uso da água e aumentar o crescimento das raízes. Outras respostas – como até que ponto as plantas conseguem sobreviver – ainda não são desconhecidas, o que justifica a necessidade de monitoramento. O vídeo abaixo explica como será feito experimento:
De forma geral, o impacto da mudança climática nos ecossistemas e sua biodiversidade é altamente incerto. Reduzir essa incerteza é fundamental para avaliações globais da vulnerabilidade às mudanças climáticas e para direcionar políticas de desenvolvimento nas diversas regiões do globo em cenários futuros de mudanças do clima.
“A Terra e seus muitos ecossistemas são complexos, dinâmicos e interconectados de maneiras que estamos desesperadamente longe de entender completamente. A capacidade de prever vulnerabilidades é essencial para o desenvolvimento de estratégias de gestão que, sem dúvida, serão necessárias para garantir a persistência de muitas populações”, diz Loren Buck.
É preciso agir com pressa, alerta a ONU. Os pesquisadores que fazem parte da Rede g2p2pop já estão dando sua contribuição nesta corrida contra o tempo.
Fonte: O Eco