O trecho foi reproduzido pela Sociedade Abolicionista das Mulheres de Rochester, Estados Unidos, em 5 de julho de 1.852 e escrito pelo ex-escravo Frederick Douglass por ocasião do feriado da Independência daquele ano, que aprendeu a ler em segredo e depois de sua fuga, fundou o jornal abolicionista North Star. Tanto esforço para ser reconhecido como pessoa livre em um sistema escravista, portanto, racista, resultou em grande impacto à sociedade da época, em conflito pelo entendimento por parte dela da imoralidade da escravidão e sua inconsistência numa sociedade cada vez mais aderida ao liberalismo.
Após anos de conflito que resultou na abolição da escravidão humana nos Estados Unidos em 1.863, documentos como este ainda configuram importante registro do racismo que insiste em se perpetuar mesmo sem as bases legais que o sustentavam (a escravidão). Portanto, tais registros fora de seu tempo mantém na memória social a crítica ao racismo ainda impregnado na cultura (não apenas na sociedade norte-americana, mas essencialmente em todas que sofreram regimes escravistas), como aviso de sua indesejada existência e lembrança de suas origens, esperando assim alterar essa forma de pensar e agir que não se desfaria por mera determinação legal.
Fenômeno similar observamos em relação às leis promotoras de igualdade de gênero ou que pesem em favor de qualquer outro grupo marginalizado: leis têm a função de proteção legal, mas não dispõem da capacidade de alterar o pensamento social existente, que se modifica somente à medida que vão se configurando novas forças sociais nessa estrutura.
Todo preconceito tem em sua origem algum tipo de exploração e em determinado momento histórico serviu como justificativa para mantê-la de forma institucional, legalizada; portanto, conseguir a destituição de suas bases legais (a exemplo da abolição da escravidão humana) não é garantia do fim daquele preconceito, mas dependem de mudanças na forma de pensar que podem demorar gerações para ocorrer ou ainda nunca acontecer se os grupos engajados na reparação das injustiças promovidas por aquele preconceito não investirem num trabalho de educação permanente junto à sociedade a qual pertencem.
Importante ainda ressaltar que o fim da escravidão humana, além da resistência de suas vítimas e dos grupos que os apoiavam, culminou, ao menos no continente americano, com a expansão das ideias liberais e a demanda por livre mercado, incompatível com um regime de escravidão, levando a crer que tal sistema também não interessava mais aos exploradores como no período de sua implantação, um dos motivos pelos quais talvez tenha sido muito mais fácil abolir o sistema em si que o preconceito que o sustentava, o racismo; este, por sua vez, mesmo após mais de um século de luta por igualdades civis, ainda permanece entre nós (creio que no futuro, se o veganismo seguir por um caminho similar quanto a este aspecto do preconceito não será mera coincidência, já que a escravidão animal como conhecemos hoje tem um custo ao planeta que um dia não interessará mais ao ser humano manter, o que e nem de longe será garantia do fim do especismo).
A crítica constante a atitudes e formas de pensar que promovam a submissão de uns grupos a outros (no caso do veganismo, das pessoas não-humanas às humanas) aliada ao conhecimento das raízes de determinada forma de segregação social, poderiam constituir ferramentas importantes não apenas para a abolição da escravidão animal e conquista de direitos pelos não-humanos, mas também destruir o preconceito que o sustenta, o especismo, porém há grande dificuldade dentro do movimento vegano em emprestar a própria voz para falar do especismo, já que não somos capazes de compreender a voz de suas vítimas e que seus lamentos só chegam aos ouvidos da sociedade em forma de silêncio. Portanto, é compromisso moral da maior urgência sermos nós as suas vozes, pois para a sociedade em geral, as vítimas do especismo não têm voz, não têm rosto e sequer desfrutam de um corpo a ser protegido da tortura da dor e da morte, corpo em geral desejado sem vida (ou numa vida de servidão), aos pedaços, cuidadosamente cozidos e temperados como enfeites de boas confraternizações, dos quais ainda se extraem as secreções, os ossos, a pele, o sangue e todo tipo de abuso conveniente ao ser humano, por isso aqueles que dão voz a essas vítimas muitas vezes preferem apelar à benevolência, à caridade e à compaixão humana que assumir a simples e dura realidade de pertencer a uma espécie que prefere violar de forma sistemática e massiva todos os direitos dos outros habitantes sencientes deste planeta.
Portanto, assim como em seu discurso aquele escravo usa sua voz para falar aos seus opressores da hipocrisia de um feriado pela independência num país amalgamado e mantenedor da escravidão, apelo a todos que emprestam sua voz aos animais que falem da hipocrisia das tradições religiosas e culturais que envolvem exploração animal numa sociedade baseada em direitos, sobre a dor e a escravidão perpetuada pelo especismo e que a luta contra este preconceito seja a razão para nos denominarmos abolicionistas, ação muito mais importante e efetiva que as confortáveis listas de empresas boicotadas de forma individual e silenciosa, sem nenhum efeito direto sobre a cultura especista que nos rodeia.
Condicionados por uma sociedade consumista que se define e adequa às demandas dos consumidores sem nenhum impacto sobre o status quo, se não debatermos de forma aberta e ampla o especismo, corremos o risco de nos tornarmos apenas mais um entre tantos grupos atendidos pelo mercado, daí a importância dos exemplos históricos como a abolição da escravidão humana, que se consolidou muito mais para atender os interesses do liberalismo que para ser um marco do fim do racismo, indispensável para garantir de fato a igualdade entre todos os humanos.
Se aves, suínos, bovinos, pequenos ruminantes, peixes ou qualquer outro animal explorado pudessem fazer sua voz ser entendida por nós, certamente questionariam a hipocrisia de nossos festejos pretensamente carregados de amor e esperança, cujas tradições, porém, são mantidas sobre a vida de tormento e morte certa, precoce destas espécies. Porque, então, insistimos em fazer menos quando vamos falar em nome dessas vítimas supostamente silenciosas? Não contamos com qualquer respaldo legal na defesa dos animais como pessoas, portanto deveria ser da máxima urgência apontarmos o que realmente mantém a exploração animal e os não humanos na condição de objetos para nossos fins: o especismo.
Para as festas de final de ano, meus votos para que a mensagem propagada pelos defensores dos animais se esvazie do conteúdo especista da compaixão, do amor fraternal, da evolução pelo respeito aos “pobres animais” – mensagens que dizem muito mais do agressor que do agredido – e se encha do único motivo que justifica o veganismo como caminho para a libertação animal: o direito de todo ser senciente não ser tratado como propriedade alheia posto que tem interesse sobre a própria vida e a imoralidade em celebrar a paz e prover a vida em geral através da violação deste direito. E que estendamos esta mensagem a toda nossa atuação pelos não-humanos, pois assim como no texto escrito por aquele ex-escravo, somente o enfoque na vítima e a contradição em violar seus direitos enquanto almejamos viver em condições de justiça pode ser base real e honesta à crítica a um preconceito, caminho efetivo para a derrocada das formas de exploração que ele sustenta. Por isso, faço votos para que derrubemos primeiro o especismo em nós, sem isso, nada poderemos fazer concretamente pelos animais.