Neste artigo, Cristina DʼEça Leal e Pedro Ribeiro procuram desconstuir algumas dessas “ideias feitas” sobre os direitos animais.
Quando se fala de direitos animais, devíamos primeiro definir o que é um animal para sabermos do que cada um está a falar. É curioso, porque devíamos estar a falar do mesmo, ou seja, tudo o que faz parte do mundo físico e não é vegetal nem mineral. Nesse plano, estamos na mesma categoria do símio, do rinoceronte, do touro, do cão, da águia, da truta, da libélula, da ostra.
A História prova até à exaustão que a fronteira que as classes dominantes marcam entre os que consideram seus pares e os que não devem ser considerados sujeitos de direito é arbitrária e traçada de acordo com interesses de poder. Só entendendo isto poderemos entender a evolução imparável dos direitos dos animais (humanos e não humanos). E isto porque os argumentos para a discriminação negativa são invariavelmente os mesmos, independentemente da espécie, raça, credo ou género. As mulheres, os negros, as crianças, os velhos, os pobres, os deficientes, os índios, os asiáticos, os judeus, os ciganos, os árabes, já estiveram do lado de lá da fronteira. Basicamente a razão ao longo dos tempos usada para não serem considerados é porque não eram/são iguais a “nós”. Hoje em dia a fronteira está entre o homem e o macaco, embora este pertença inclusivamente à nossa ordem – dos primatas – ou seja, tenha muitos mais afinidades connosco do que com uma ostra mas, no entanto, continue excluído da nossa esfera de consideração moral.
Os preconceitos depois alastram ao sabor do zeitgeist e uma vez estabelecidos, passam a fazer parte do senso comum e deixam de ser questionados. Assim se fez com os cães e os gatos que passaram a ser protegidos, a ter um estatuto social diferente, muito embora em termos cognitivos e de senciência estejam ao mesmo nível de todos os que são dotados com um sistema nervoso central.
É fácil perceber que não existe qualquer razão científica para que assim seja; esta decisão é política e, como tal, contestável.
Walter Benjamin disse que toda a nossa civilização assenta em barbárie. Sendo isso verdade, tendo os humanos baseado a sua civilização em estratégias de domínio e subjugação, será errado querer mudar essa forma de estar no mundo? Não nos parece. Errado é persistir num modelo profundamente injusto.
Quais são os limites para os direitos dos animais?
O processo de estabelecer limites intermédios é algo que nos é habitual. Nesse processo deparamo-nos necessariamente com zonas cinzentas, de difícil consenso, mas isso não deveria impedir-nos de definir critérios mínimos de decência no que à moral diz respeito. Provavelmente não conseguimos consenso relativamente às abrangências do Sistema Nacional de Saúde, mas todos concordamos que não se devem eutanasiar pessoas por não terem dinheiro para pagar um tratamento caro, moroso e sem garantia de resultados.
Aceitamos a imposição de limites de velocidade, assentes em critérios altamente subjetivos.
Distinguimos os diversos tipos de homicídio, aplicamos-lhe variáveis como o dolo, a premeditação, a relação entre o homicida e a vítima, etc.
No entanto, estranhamente, no que concerne aos animais não humanos, tentamos colocar a questão no tudo ou nada, para melhor sacrificarmos os padrões mínimos de decência aos padrões máximos do purismo ético.
A vida de cada animal não humano é tão preciosa para ele como a nossa é para cada um de nós; o facto de trivializarmos a vida dos outros não muda isso.
Os animais não podem ter direitos porque também não têm deveres
Se este é um argumento válido, então teremos que retirar também os direitos aos fetos, às crianças, aos deficientes profundos, aos comatosos. Mas ainda por cima esta afirmação é de uma enorme perversidade porquanto os animais morrem aos milhões pelo que consideramos ser seu dever (sacrificamo-los na alimentação, no vestuário, no entretenimento, na educação, no apoio aos cegos, aos paraplégicos, na lavoura, no transporte, na investigação, na reabilitação, na segurança, na guerra).
Os animais têm direitos intrínsecos, não precisam da conceptualização do animal humano para atribuir-lhe direitos, papéis, nem nada que seja da nossa conveniência. O conceito de “direito” é frequentemente utilizado em função do proveito próprio. O humano é juiz em causa própria: somos nós que temos direitos porque somos nós a decidir.
Em termos objetivos, o erro torna-se claro. Os animais já cá existiam muito antes dos humanos como espécie. Na perspetiva evolutiva, a espécie humana é relativamente recente. Ainda assim, mesmo com o curto tempo de vida que a nossa espécie teve, conseguiu causar mais destruição no planeta do que todas as espécies de animais juntas em toda a sua existência. Invadimos os espaços naturais dos animais e usámo-los para proveito próprio, indiferentes ao direito intrínseco que têm à vida, o direito que lhes foi concedido mesmo antes da conceptualização humana de “direito”.
A questão está posta ao contrário: São os humanos que têm de repensar os deveres que têm para com os animais. Direitos, isso eles sempre tiveram.
Preocupam-se mais com os animais do que com os humanos
Algumas pessoas de fato viram-se para os animais domésticos por impossibilidade de se relacionarem com os humanos.
Mas muitos de nós decidem apenas lutar contra a injustiça, a desigualdade, o preconceito, a crueldade, a violência, a subjugação. Independentemente da identidade da vítima.
A fome dói o mesmo a um homem, a um cão ou a um cavalo. Mas o que pretendem os autores deste remoque não é que em igualdade de circunstâncias se prefira ajudar um membro da nossa espécie do que um gato. O que acham é que qualquer necessidade trivial humana tem que ser mais valorizada do que uma necessidade básica de qualquer outro animal.
É preciso compreendermos que quando damos algo a um animal não estamos a tirá-lo de um humano. Pelo contrário, uma sociedade que garante os direitos básicos dos seus membros mais vulneráveis, garante-os seguramente a todos que se encontram a montante.
Quando o Estado confere direitos aos animais está a tornar os cidadãos mais respeitadores também do seu semelhante e isto porque garante universalmente o direito à vida sem crivos discriminatórios e todos sabemos como os critérios da discriminação podem ser escorregadios, subjectivos e eticamente indefensáveis.
Perdem tempo a defender os animais quando há tantas crianças com fome
Como se o mundo funcionasse dessa forma: só podemos dedicar-nos a resolver um problema de cada vez e enquanto este não tiver assumido a perfeição, consensualmente aceite, não poderemos intervir em mais nenhum campo.
“Crianças com fome” é um chavão que causa sempre muito efeito, embora não queira dizer rigorosamente nada. Nós só podemos ajudar pessoas concretas, com problemas específicos: as crianças do orfanato x; a família y; os velhos do asilo z; os indigentes da nossa zona.
O facto de ajudarmos animais não humanos não nos coíbe de ajudar humanos; podemos – e muitos de nós fazem-no – ajudar uns e outros.
Esta frase só surge quando estamos a fazer algo pelos animais; curiosamente nunca é proferida quando alguém diz que foi ao teatro, à praia, ao cinema, à discoteca, ou está a ler um livro…
Também raramente é dita por alguém que presta serviço voluntário em qualquer área; é sempre arremessada por quem nada faz pelos outros
Há inúmeras entidades a providenciar ajuda aos humanos, com apoios do Estado, de empresas, das misericórdias; os animais não humanos estão no fundo da escala das nossas preocupações, não é bom que alguém se ocupe com eles?
Nem mesmo quem nada faz para acabar com a fome dos outros humanos é capaz de criticar os que se dedicam a prestar cuidados paliativos por considerar que há coisas mais graves por resolver, mas por alguma razão indignam-se com os cuidados prestados aos outros animais.
Resumindo: O indivíduo que critica não conhece o seu interlocutor; pretende apenas descredibilizá-lo. Não conhece as outras causas em que este possa eventualmente estar envolvido. Em termos sociais e políticos, os ativistas dos direitos dos animais estão frequentemente associados a iniciativas de defesa da igualdade, da solidariedade, da fraternidade e da paz. Isso contradiz objetivamente a falsa imagem do ativista dos direitos dos animais que descura o seu semelhante.
Podemos dispor dos animais porque eles são irracionais (ou inferiores)
Devemos desconfiar de sistemas de atribuição de valor à vida que se baseiam num conjunto de critérios que – por um feliz acaso – parecem coincidir com as nossas características enquanto espécie (como já foi pelas características de “raça” ou degénero). Em todo o caso é um grupo que detém o poder e determina quem é o “nós” e quem é o “outro”.
Mais uma vez, o caso de juízes em causa própria. Ser racional ou irracional não tem qualquer valor intrínseco, o valor é relativo. Neste caso, a racionalidade vale para quem usufrui dessa característica e é esse usufruto que determina a sua valorização, ao mesmo tempo que relega a irracionalidade para um plano inferior.
Num exercício de dialética, poderíamos de igual modo valorizar a irracionalidade e considerar o animal irracional superior, visto que ele sabe tudo o que tem de saber; no sentido inverso, é precisamente a capacidade de raciocínio que leva o animal homem a errar e a agir contra si próprio.
Inferioridade e superioridade são conceptualizações humanas, criadas a partir do vício de subverter o mundo segundo a nossa conveniência.
Os animais sofrem, mas não como nós
Estamos culturalmente condicionados para as relações que estabelecemos com os animais. Relativamente àqueles que consideramos utilitários não nos damos ao luxo de estabelecer qualquer relação afectiva, porque o distanciamento é fundamental para que eles continuem a ser utilitários e explorados. Quem convive de perto com animais e deixa cair a barreira do especismo, percebe que eles têm personalidades próprias e únicas. Deixam de ser os cães, para ser o Bobi ou o Piloto; deixam de ser os gatos para serem o Tareco e o Pantufa; deixam de ser os cavalos para ser o Trovão e o Índio. O primeiro passo para a descriminação e o preconceito é tratarmos os outros por um título genérico e criarmos um fosso entre nós e eles.
Historicamente, está bem documentado como começámos cada guerra ou cada perseguição (denominando o outro como os chinas, os amarelos, os mouros, os muçulmanos, os terroristas, os judeus, os pretos, os índios, como se uma única característica pudesse definir um grupo tão extenso e heterogéneo).
Se só pudesse salvar um, qual salvava: o seu cão ou uma criança?
É um dilema clássico, mas que de nada serve, porque uma situação excepcional não pode constituir-se como modelo para situações não excepcionais.
Se pudéssemos, qualquer um de nós trocaria a vida de um vizinho pela do nosso filho. Compreendendo esse impulso, os legisladores proíbem-nos de o fazer. Possivelmente alguns de nós trocariam a vida do filho do vizinho pelos olhos do nosso filho. Poucos trocariam a vida dessa criança por um rim do filho e seguramente que nenhum a trocaria para lhe evitar o incómodo duma operação ao apêndice.
Através deste exercício, percebemos que é natural a nossa preferência pelos que nos são próximos e que isso tem tendência a condicionar as escolhas morais que fazemos individualmente. Devíamos igualmente repensar os critérios que nos levam a preferir os membros da nossa espécie em detrimento das outras.
Têm a mania de pregar a sua superioridade moral e impor as suas ideias aos outros
Explorar e matar animais para fins triviais (como é a satisfação do paladar) só pode considerar-se errado ou certo; não pode ser uma questão de escolha pessoal ou de preferência cultural. Tal como na escravatura humana, na violência doméstica, no estupro, na pedofilia; considerar que no caso dos animais este princípio não se aplica, é puro especismo.
Não interessa há quanto tempo a humanidade explora e mata animais não humanos para alimentação e vestuário; interessa que hoje em dia sabemos que não é preciso fazê-lo. Qualquer pessoa sensata dirá que insistir em comportamentos que provocam sofrimento desnecessário não é aceitável. Deveríamos todos questionar-nos porque continuamos a infligir esse sofrimento e morte desnecessários. Perguntar a um vegan porque é que não faz parte deste ciclo de violência, é como perguntar a qualquer pessoa normal porque é que não viola, não mata, não abusa.
É importante não colocar o assunto no plano pessoal, porque não se trata aqui de julgamentos de valor sobre pessoas, mas sim sobre comportamentos.
Os esquimós não conseguiriam sobreviver sem carne
É esse o verdadeiro significado do termo “omnívoro”: conseguimos sobreviver com tipos de alimentos variados e os inuit só têm mesmo animais para se alimentarem..
Esta expressão não é usada meramente para constatar um facto; até porque nesse caso deveria ser acompanhada da conclusão de que os inuit têm uma esperança média de vida bastante baixa.
Curiosamente é usada para justificar o nosso consumo de carne no ocidente.
Comer carne é natural
Um exemplo clássico usado para contrariar esta ideia é o seguinte: experimente dar a uma criança um coelho e uma maçã; se ela comer o coelho e brincar com a maçã, este argumento deve ser considerado. De outra forma, não.
Nós vivemos num ambiente que é o oposto do “natural”, o que quer que isso signifique. Comprar num supermercado uma embalagem plástica com um pedaço de um cadáver envolto em película aderente é “natural”? Fumar cigarros é “natural”? Usar um computador ou um telemóvel é “natural”?
Natural é a evolução do indivíduo nos vários planos da sua vida: intelectual, moral, ético, afetivo. Em todas estas dimensões, abdicar do consumo de animais significa um passo evolutivo.
Então e também deveríamos proibir os leões de comerem carne?
Os leões não precisam de seguir os nossos códigos éticos porque não são agentes morais como nós.
Para além do mais, são carnívoros.
E as plantas, que também são seres vivos e sofrem?
A teoria da neurobiologia vegetal, ainda que sendo um objecto de estudo na especialidade, é amplamente refutada pela comunidade científica quando apresentada em moldes semelhantes à neurobiologia dos animais. É considerada uma antropomorfização e, por esse motivo, é consensualmente rejeitada por autoridades da área, como Amedeo Alpi, Gerd Jürgens, Ben Scheres, Chris Sommerville e 32 outros cientistas na publicação “Trends In Plant Science”.
Até podemos aceitar que se venha um dia a provar que as plantas são sencientes, mas já não podemos aceitar que se alegue uma remota eventualidade desse tipo para se justificar a exploração e morte de animais que, comprovadamente, o são. Podemos fazer um breve exercício de como se processaria a senciência nas plantas: pelas raízes, pelos ramos, pelas folhas? Onde estaria localizada a consciência para tratar a informação?
O sistema nervoso central ou sistemas análogos nalgumas espécies, está ligado à motricidade, o que faz todo o sentido, uma vez que constitui um fator fundamental para a sobrevivência do indivíduo. O stress causado pela dor leva a uma ação no sentido de a evitar; se não conseguir fazê-lo, volta-se contra o seu próprio organismo. Como as plantas não podem mover-se, a sensibilidade à dor seria uma causa permanente de stress que lhes retiraria vitalidade. A natureza é muito económica; não parece credível que as plantas desenvolvam características que só lhes podem ser prejudiciais, e que as mantenham ao longo do seu processo evolutivo.
De qualquer forma, para as pessoas que pensam que as plantas sofrem, continua a ser lógico seguir um regime vegetariano, pois poupariam assim uma enorme quantidade de plantas usadas para alimentar os animais com que nos alimentamos, num ratio muito desproporcionado.
Se não fosse para comer carne, porque é que temos caninos?
Associar os dentes caninos ao consumo de carne é uma falácia: há inúmeras espécies de animais herbívoros que também têm dentes caninos.
O nome dado a estes dentes leva a um processo mental em que automaticamente associamos esse dente ao consumo de carne. Porém, o nome foi dado devido à semelhança que têm com o formato dos dentes de animais carnívoros. São pontiagudos e evocam a imagem dos dentes dos canídeos, daí o nome. É, portanto, uma questão de forma, não de conteúdo.
Ainda assim, e abordando a questão da suposta propensão natural para consumir carne, os dados objectivos indicam que tal prática é fruto do fenómeno evolutivo, e não de uma necessidade que o ser humano efectivamente tenha. Com a evolução, o corpo humano passou por várias alterações fisiológicas. O apêndice, por exemplo, surgiu no homem como resposta evolutiva à ingestão de carne crua, de forma a facilitar a digestão das fibras animais. Após a descoberta do fogo e da sua utilização na alimentação, o apêndice perdeu gradualmente a sua utilidade e, atualmente, permanece no corpo humano como um resquício da infância da espécie humana. Assim, mais do que motivados por uma propensão natural irresistível, a nossa alimentação é composta por aquilo que escolhemos, de forma a promover uma vida saudável e positiva. O consumo de carne está associado a inúmeros tipos de patologias, que vão desde os problemas digestivos até ao cancro.
Em termos objectivos, o consumo de carne não é importante para o ser humano.
Se não for na carne, onde se vai buscar a proteína?
Todos os vegetais têm proteína, mas onde ela se encontra em maior concentração é nas leguminosas (tremoço, fava, ervilha, feijão, grão) e na soja.
As comunidades que adotaram os estilos de alimentação vegetariano e vegano estão espalhadas por todo o mundo e a sua representatividade é significativa. Uma dieta vegetariana ou vegana bem planeadas são mais saudáveis do que uma dieta que inclua produtos de origem animal.
Número aproximado de vegetarianos em diversos países:
Índia – 500 milhões
Taiwan – 1,7 milhões
Austrália – 1,1 milhões
Alemanha – 7,4 milhõe
Itália – 6 milhões
Holanda – 1 milhão
Reino Unido – 4 milhões
Brasil – 8 milhões
Canadá – 1,7 milhões
EUA – 7,3 milhões
Impor uma dieta vegetariana aos animais de companhia é contra-natura
Tratando-se de uma dieta equilibrada, com os nutrientes necessários, e que eles gostem, porque não?
Ração, comida de lata ou carne de vaca também são “contranatura” e ninguém parece incomodar-se com isso, porquê a indignação com o alargamento do vegetarianismo aos animais de companhia?
Respeito as vossas escolhas, exijo que também respeitem as minhas
Se pensarmos um pouco, rapidamente concluímos que não há qualquer razão para não respeitar as escolhas de quem opta por não explorar, matar, causar sofrimento nem degradar o ambiente. Enquanto que é absolutamente justificável questionar quem opta por fazer tudo isso. Afinal de contas, não podemos esquecer que a indústria mais poluidora do planeta é a indústria da carne.
No entanto, não é respeito que os carnistas procuram, e sim aprovação. O que pretendem é poder continuar a comer animais sem terem que lidar com a sua própria consciência.
Se a humanidade se convertesse subitamente ao veganismo, o que aconteceria ao excesso de gado? (também há a versão b) que prevê exatamente o contrário: a extinção das espécies que são objeto de exploração pecuária)
Obviamente que isso nunca aconteceria da noite para o dia e a oferta iria gradualmente adaptar-se à procura.
No caso da alimentação vegana, sem utilização de produtos de origem animal, gera-se normalmente um conflito de interesses: o nosso pensamento ético (que nos diz que é errado provocar sofrimento e morte desnecessariamente) e os nossos hábitos alimentares (que se constituem como uma fonte de prazer e bem estar). E enquanto algumas pessoas privilegiam os seus padrões morais e mudam os comportamentos em consonância, a maioria prefere mudar os primeiros, negando aos animais o direito e a consideração moral para poderem continuar a usufruir da sua exploração e morte sem problemas de consciência.
A produção industrial de animais para consumo não é sustentável. De acordo com o relatório da ONU “Livestockʼs Long Shadow – Environmental Issues and Options (2006), “a indústria pecuária constitui-se como um dos maiores responsáveis pela degradação ambiental, nomeadamente pela poluição dos lençóis freáticos, degradação dos solos e perda de biodiversidade.” “é responsável por 18% de emissões de gases poluentes, taxa ainda mais elevada do que o setor dos transportes.” Uma dieta à base de carne exige sete vezes mais solo que uma dieta à base de vegetais.
A conversão para um regime alimentar vegano é uma medida ética e ecológica.
A tourada cumpre uma função social, a caça serve para controlar as espécies e zelar pelo ambiente, a experimentação animal salva vida humanas…
Não deveríamos ter que justificar uma atividade profissional ou lúdica com um argumento altruísta. A experiência mostra-nos que essa é por vezes uma forma ardilosa – consciente ou inconsciente – de posicionar como boa uma atividade reprovável.
Não é comum um ator dizer que abraçou essa profissão para contribuir para um mundo melhor; assim como um canalizador alegar que o seu objetivo é que os lugares mais recônditos tenham acesso a água canalizada, um eletricista a pretender sacrificar-se para que não haja na terra uma alma sem luz, ou um espectador inveterado de cinema clamar pelo seu altruísmo para dar de comer aos que trabalham na indústria cinematográfica.
As pessoas assumem normalmente as suas escolhas profissionais e os seus hobbies pelo retorno que estes lhes proporcionam. Só que nalguns casos, como nos supracitados, cai mal em termos sociais dizer que se caça pelo gosto de matar, que se toureia pelo prazer de violentar e subjugar um ser vivo, que se paga a renda de casa com dinheiro sujo de sangue de cobaias. E então inventam-se a posteriori objetivos nobres para conferir decência às escolhas que deveriam envergonhar-nos.
Os animais usados em investigação salvam vidas humanas
Os que ganham a vida no setor da investigação biomédica gostariam que acreditássemos nisto. Ao fim e ao cabo, quem se oporia a que se fizessem testes não dolorosos a um rato para salvar a vida de milhares de crianças? Mas não é este o caso, por isso o movimento anti-vivisseccionista conta com milhões de adeptos por todo o mundo.
Na maior parte dos casos, as experiências são feitas para lançar novos medicamentos no mercado; não medicamentos inovadores, mas novas versões dos já existentes perto da data de caducidade das respetivas patentes.
E isto para não falar dos milhares de animais que são sacrificados diariamente para testar um novo ingrediente ao óleo para travões, ao produto de limpeza de fornos, ao champô que dá mais brilho, ao cigarro que mata menos.
Excelente mesmo, seria apostarmos na cura para o preconceito e a insensibilidade relativamente às outras espécies.
Os que são contra a experimentação animal não deviam consumir medicamentos
Por essa ordem de ideias nenhum anti-racista ou anti-esclavagista deveria visitar qualquer monumento construído até ao fim do séc.XIX, nem o presidente Obama deveria viver na Casa Branca por terem sido construídos por escravos.
Suponhamos que estamos num local em que vimos a saber que as condutas de água foram construídas por mão de obra infantil. Deveríamos arriscar morrer de desidratação por terem sido usadas crianças nessa situação?
O facto de querermos corrigir erros do passado que resultaram em benefícios de que usufruímos, é um fator positivo, que nos dignifica enquanto cidadãos conscientes.
No reino da tolerância: só vai à tourada quem quer
Num paradigma de sociedade normal, desfrutar de um acto público de tortura de um animal é impensável. É moral e eticamente condenável tirar partido da agonia de outro ser. Através da formação e valores passados entre famílias, a sanidade implícita na postura de respeitar o bem-estar de todos os animais, humanos e não humanos, é substituída por um regime de exceção que diz: “Faremos o bem a todos, menos aos touros, que existem é para serem toureados.” Frequentemente, esta precoce programação mental a que estão sujeitos os aficionados é levada a cabo pelas suas famílias, num acto de transmissão da sua própria cultura e valores antigos. O aficionado cresce num meio onde a tortura implícita na tourada é legitimada, promovida e perpetuada, associada a valores familiares, negócios, estatuto social…
Quando as questões envolvem valores éticos e direitos fundamentais, inalienáveis e inerentes a animais sencientes (humanos e não humanos), fazê-los depender de interpretações subjectivas – como seja valorizar interesses triviais da mentalidade dominante – num relativismo cultural é inaceitável.
É por isso que fenómenos culturais tais como a excisão do clitóris nas meninas de alguns países africanos ou a lapidação das mulheres adúlteras, chocam o mundo ocidental que considera – e muito bem – que o relativismo cultural e a tradição não podem caucionar práticas que cerceiam liberdades básicas e direitos fundamentais, como sejam a integridade física, por exemplo.
Se bem nos recordarmos, a mesma questão pôs-se na altura da implementação dos novos regulamentos sobre os locais em que se pode fumar: durante toda a vida os fumadores impuseram o seu fumo aos outros; os governos dos países ocidentais foram acusados de extremismo e falta de tolerância quando decidiram proteger as vítimas dessa prática: os fumadores passivos.
Resumindo em duas frases:
à tourada não vai só quem quer; vai quem para isso foi programado.
não acorrer em defesa de quaisquer vítimas é um acto de cobardia, indiferença e de conivência com o crime; não de tolerância.
Temos que respeitar porque é um espetáculo legal
Os quadros legais não são imutáveis, pelo contrário, acompanham a evolução dos códigos éticos pelos quais as sociedades se regem.
Assim se considerou com a escravatura, com a subalternização das mulheres, com a violência doméstica.
O esforço que a indústria tauromáquica tem feito para conseguir a aprovação social é indicativo da noção que tem da fragilidade da sua situação: os espetáculos para fins de beneficência, com o objetivo de se ligarem a instituições prestigiadas; a tutela pelo ministério da cultura; a tentativa de promoção da atividade a património cultural imaterial.
Não resistimos a dar aqui um pequeno exemplo ilustrativo de como o enquadramento legal e respetiva regulamentação de uma dada prática não é razão suficiente para a manter, através de um artigo que já fez parte do código penal:
“E declaramos que, no caso em que o marido pode matar sua mulher, ou o adúltero, como acima dissemos, poderá levar consigo as pessoas que quiser para o ajudarem, contanto que não sejam inimigos da adúltera ou do adúltero por outra causa afora do adultério.”
A lei de proteção aos animais (n.º 92/95), ainda que consagrando os direitos dos animais quanto à vida e ao bem-estar e proibindo a violência injustificada contra os mesmos, abre uma exceção para o caso das touradas. O conflito direto entre a lei e este regime de exceção debilita a própria lei. O enquadramento legal da tourada é uma aberração da legislação atual e, nesse sentido, deve ser repensado. A legitimação de que a tourada goza é, pois, o resultado de um erro legal.
Se acabarem as touradas, extingue-se uma espécie
Segundo o relatório de 2006 emitido pelo Secretariado da Diversidade Biológica, da ONU, o objectivo definido em 2002, de conter o ritmo da extinção das espécies até 2010 não só não foi atingido, como a perda de biodiversidade está em aceleração desde essa altura. Adianta o relatório que, para encontrarmos uma situação comparável ao ritmo de extinção atual, teríamos que recuar 65 milhões de anos, quando um meteorito chocou com a Terra e pôs fim à era dos dinossáurios. O atual é o sexto processo conhecido de extinção massiva de espécies e o primeiro causado pelos humanos.
Estamos a falar de espécies animais que influenciam directamente os ecossistemas em que se inserem, prejudicando de uma forma imprevisível e devastadora os já precários equilíbrios ecológicos e que é urgente preservar. Não se percebe como é que neste contexto catastrófico se gastem tantos recursos na preservação de uma raça bovina criada artificialmente com o propósito único de ser massacrada em praça pública. A perda do touro de lide teria tanto significado como a extinção do caniche. Mas, mesmo assim, nem sequer é previsível a extinção desta raça, já que a mesma pode ser promovida através do eco-turismo, pela dedicação dos seus admiradores.
Mas há mais, a indústria tauromáquica alega que ninguém ama mais os touros do que eles próprios até porque são os únicos a zelar pela sua conservação. Amar significa querer o bem de outrém desinteressadamente e, se essa alegação fosse verdadeira, a raça taurina nunca estaria em perigo pois os ganadeiros, os toureiros e os aficionados em geral tudo fariam para preservar a espécie. Mas a realidade é que essas pessoas vivem da exploração desses animais, o que eles fazem é proteger os seus investimentos e zelar pelos seus lucros, como em qualquer outra atividade económica. Seria o mesmo que acreditarmos que a razão de ser de um bar de alterne é garantir uma boa vida às prostitutas que lá trabalham.
Se este absurdo argumentativo pega, qualquer dia estaremos a massacrar linces para que estes não se extingam de vez.
As tradições devem manter-se
A civilização constrói-se através do questionamento regular das suas práticas, tradições e costumes. Quando estas deixam de se coadunar com os valores da época – podemos incluir aqui o circo romano, a escravatura, a utilização de deficientes nos circos, o seviciamento nos pelourinhos, a violência doméstica, o trabalho infantil, a queima de bruxas, a tortura de gatos nos centros urbanos, etc – são abandonadas e substituídas por novas formas de atuar, criando-se novas práticas, novas tradições, novos costumes.
A evolução da nossa sociedade apoiou-se na promoção de valores relacionados com a bondade, solidariedade, educação e civismo. Ao mesmo tempo, abandonou práticas ligadas à discriminação, violência, ignorância e embrutecimento. A tourada é caracterizada precisamente por estes últimos elementos. É a representação dos valores negativos enraizados por rituais antigos que já não têm lugar no mundo atual, que se quer pacífico e promotor da vida e do progresso.
Resumindo: A tradição não pode servir para caucionar práticas que cerceiem liberdades básicas e violem direitos fundamentais.
A tourada é uma manifestação cultural que faz parte da nossa identidade coletiva
A cultura não é uma realidade estática, mas dinâmica, e está em permanente processo de construção. Muitas tradições se têm perdido e não foi por isso que perdemos a nossa identidade, pelo contrário, muitos de nós negamos identificar-nos com quem tem orgulho em massacrar animais em público num show de características trogloditas.
Não queremos uma cultura que ritualiza e glorifica exercícios de domínio, de subjugação, de violência. Queremos uma cultura que promova a justiça, a integração e o respeito e isso não é compatível com o caráter de exceção dado à tauromaquia no que concerne ao direito a não ser maltratado que a legislação reconhece aos animais não humanos.
Por falar em construção de um outro tipo de sociedade e assumindo que por aí passa a educação e formação das crianças, perguntamos porque é que a violência simulada em filmes é sujeita a critérios de idades mínimas da audiência permitida e apenas passada na televisão depois das 22h00 (com bolinha assinalando que a ficção a que vamos assistir contém cenas que podem chocar a sensibilidade dos espectadores) e a tourada – baseada em violência real – não é sujeita aos mesmos critérios?
Ainda que verificada em Portugal desde há alguns séculos, a tourada sempre foi uma atividade praticada e apreciada por minorias localizadas. No século XXI, a maioria do povo português não só não identifica a tourada como parte da sua cultura, como a rejeita. Ao contrário doutros fenómenos culturais locais – que gozam da aceitação de todos os portugueses, mesmo que deles não usufruam – a tourada não é aceite e viola princípios fundamentais das pessoas, como o princípio do respeito pelos animais. A identidade colectiva da sociedade portuguesa quer ver a tourada relegada para uma prática morta, que teve o seu lugar na história, mas que já não caracteriza a cultura em Portugal.
A tourada é uma manifestação cultural portuguesa
Errado.
Praticamente todos os países europeus já foram palco para este espetáculo, tendo vindo a ser banido de todo o lado à exceção do enclave ibérico e de algumas regiões do sul de França, o que só espelha o nosso atraso sistemático relativamente aos países desenvolvidos.
A tourada em Portugal é uma importação de uma atividade espanhola. Foi exportada há séculos atrás para várias colónias do Império Espanhol, daí a sua presença unicamente em países de língua castelhana (México, Colômbia, Peru, Venezuela, Guatemala) e nos vizinhos da Espanha: Portugal e França. A tourada representa uma forma de contaminação da cultura portuguesa, a que o tempo concedeu aceitação.
Aliás basta repararmos no léxico próprio desta atividade para percebermos que foi importada: afición, faena, chicuelina, tentadero, templados, derechazos, quiebros, revolera, etc.
Resumindo: o que é verdadeiramente português – além do pormenor dos forcados, que não vivem sem o resto da lide que lhes fragiliza o touro ao ponto de poder ser “pegado” – é o nosso atraso sistemático. E isso, sinceramente, não deveria constituir motivo de orgulho para ninguém.
As corridas de touros são o espetáculo com mais público a seguir ao futebol
Começa logo por ser discutível o futebol deixar a categoria de atividade desportiva para passar a ser considerado espetáculo.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, os concertos de música ligeira são os que movimentam maior número de espectadores (3,2 milhões), seguidos pelo teatro (1,6 milhões), variedades, música clássica, circo e, por último, a tourada. Isto para falarmos apenas de espetáculos ao vivo, porque se contabilizarmos as visitas a museus (10,3 milhões), galerias de arte (5,5 milhões) e cinema (16,4 milhões), então a clivagem é muito superior.
A ex-ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, afirmou que «[a] tauromaquia existe e movimenta 650 mil espectadores. É nossa obrigação cumprir a lei e a lei diz que temos que a regular». Aqui temos mais uma abusiva manipulação de números: os espetáculos tauromáquicos registaram a entrada (venda de bilhetes, incluindo aqueles que são comprados pelas autarquias, como forma encapotada de subvenção) de 650.000 espectadores. É sabido que o público das corridas de touros é errante; não assiste apenas a uma corrida de touros por ano, assim como um frequentador de museus faz diversas visitas anualmente. Só nos grandes recintos a tourada consegue hoje em dia números significativos de audiência; não porque o público local marque presença em força, mas porque os aficionados viajam até às praças onde podem assistir aos eventos mais publicitados. Assim, teríamos que estabelecer uma média de participações para se ter uma ideia aproximada do real número de pessoas mobilizadas (se forem 5, o número de aficionados desce imediatamente para 130 000; se forem 10, baixa para 65 000).
As verbas destinadas à compra de bilhetes para atividades tauromáquicas estão anotadas nos registos públicos referentes às despesas das autarquias. Dos alegados 650 mil espectadores, uma enorme percentagem assistiu às corridas de touros gratuitamente. Estranhamente, esses convidados dos promotores da tauromaquia, para a estatística, contaram como público.
Terá sido por o anterior Ministério da Cultura ter esgotado a sua função no cumprimento de leis, ao invés de refletir sobre o que se entende por «espetáculo artístico», que foi despromovido a Secretaria de Estado?
Se o Estado considera que um espetáculo artístico pode consistir em infligir sofrimento em animais para entretenimento público, então por que razão havemos de excluir da regulamentação as lutas de cães ou de galos? Se os critérios se baseiam no interesse do público e na receita de bilheteira, é completamente subjetivo considerar que as touradas sejam defensáveis e as lutas de cães ou de galos não o sejam.
Mas mesmo que assim não fosse, não podemos esquecer que os autos de fé não terminaram por falta de público, mas por se considerar que eram indignos e que contribuíam para a banalização da violência.
O papel das autarquias é estimular as tradições locais
Mais do que estimular tradições locais, cada autarquia deve defender os interesses dos seus munícipes. Quando o estímulo dado a tradições locais vem em prejuízo dos munícipes e da sua vontade, as autarquias estão a fazer precisamente o oposto do seu objetivo. Alocar verbas para espetáculos de que só uma minoria desfruta, em detrimento de atividades que beneficiam a generalidade dos munícipes, é um erro grosseiro de administração que viola os princípios fundamentais da responsabilidade das autarquias.
É sempre mais fácil e mais populista apelar à brutalidade e violência do que promover ações sociais, educativas, que alarguem os horizontes das populações que servem, mas as entidades públicas não podem eximir-se das suas responsabilidades. Se a barbárie faz parte da condição humana, é ao Estado que compete combatê-la.
O homem refugiou-se do mundo natural e construiu santuários onde estivesse a salvo da implacável lei do mais forte. Protegidos dos predadores e da luta diária pela sobrevivência, pudemos assim dedicar-nos à filosofia, à ciência, à arte. Mas não perdemos o espírito opressor, pelo que só mesmo um Estado de Direito nos salva do pior de nós mesmos.
Ao subsidiar e promover a tauromaquia, o Estado está a subverter o seu papel, fomentando a violência e a discriminação. Para além de provocar a discórdia e a desunião quando opta por esbanjar dinheiro público num espetáculo de sangue que cada vez mais pessoas contestam.
A tauromaquia é uma atividade econômica relevante
O eventual caráter económico de uma actividade destrutiva não a legitima. Pelo contrário, demonstra como valores fundamentais se subvertem em função do dinheiro.
Mas o que é mais grave é que a tauromaquia, como actividade económica, prejudica o país. Suga subsídios europeus, estatais e municipais que podiam e deviam ser aplicados em actividades construtivas, em vez de serem esbanjados em rituais que nada criam e que exortam a violência e o embrutecimento.
Será justo continuar a subsidiar uma indústria de mero entretenimento, que promove a violência, em nome dos postos de trabalho que garante? Nós temos a agricultura de rastos, não seria antes de aplicar o esforço nessa área, transferindo essa mão de obra
para onde ela é mais necessária? Essas tais pessoas que tanto amam o mundo rural não seriam bem mais úteis na produção agrícola do que na área dos espetáculos?
O tráfico de droga, as lutas de cães e de galos são também setores económicos a considerar e no entanto nenhum de nós pensaria sequer em reabilitar e regulamentar uma prática que passou a ser proscrita por razões de ordem ética.
A tauromaquia prejudica o turismo. Várias sondagens e estudos elaborados no âmbito deste tema corroboram esse prejuízo. No estudo “Valores e Atitudes face à Protecção dos Animais em Portugal”, de 2007 – levado a cabo pela Metris GfK, em associação com o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) – foi feita a pergunta, “Em que medida pensa que, em Portugal, os animais são protegidos por lei?”, os resultados foram:
Um total de 87,1% dos consultados considera que a protecção legal dada aos animais é deficiente.
À pergunta, “Considera que a tourada deveria ser proibida por lei em Portugal?”:
50,5% dos entrevistados respondeu “Sim”
39,5% respondeu “Não”.
À pergunta, “Gostaria que o Município da cidade onde reside a declarasse uma cidade onde as actividades relacionadas com tourada não são autorizadas?”
52,4% dos entrevistados respondeu “Sim”.
36,8% respondeu “Não”
Em Março de 2007, a Associação Animal encomendou uma sondagem à CIES/ISCTE/ MetrisGfk, que foi levada a cabo no norte do país. Essa sondagem foi utilizada pelas Câmaras Municipais de Braga, Viana do Castelo, Cascais e Sintra para conhecerem a posição actual dos portugueses em relação às actividades tauromáquicas. Os respectivos autarcas procederam ao cancelamento de vários eventos tauromáquicos em função dos resultados dessa sondagem. Nela, 61,1% dos habitantes do norte do país declaram querer que as touradas sejam proibidas por lei em todo o país e 64,5% declaram querer que as cidades e vilas em que residem sejam declaradas cidades e vilas anti-touradas.
Pela Europa, num estudo realizado em 2003 em diversos países europeus, 93% dos alemães, 81% dos belgas e 82% dos suíços afirmaram ser contra a tourada.
89% dos britânicos afirma que nunca visitaria uma tourada quando estivesse em férias. (TNS Sofres, sondagem encarregada pela Franz Weber Foundation).
76% dos europeus inquiridos afirma que é errado a indústria do turismo promover uma tourada de qualquer forma. (sondagem ComRes, de Abril de 2007).
Estes dados revelam de forma objectiva que a tourada não beneficia o turismo nacional, nem a imagem de Portugal no estrangeiro. Pelo contrário, desperta o antagonismo de povos evoluídos que não desejam visitar países promotores de rituais macabros.
O touro é um animal agressivo e foi criado especificamente para isto
Ainda que frequentemente alegado pelos aficionados, este argumento incorre numa auto- contradição. A resposta do touro numa arena é o resultado de anos de condicionamento e apuramento da espécie, não de agressão intrínseca à espécie. É precisamente pelo facto de que os touros de lide são criados para esse efeito que, mais tarde, respondem de forma programada na arena.
Desmontemos agora a alegação.
A primeira parte do argumento é uma falácia: o touro é um animal reativo, não um animal agressivo. Reage quando se sente ameaçado, o que sucede indubitavelmente em todo o processo que culmina na lide.
A segunda parte é um absurdo. Não é eticamente aceitável criar um touro com o objetivo de o torturar. Tal como um cão, ou um filho, ou uma galinha.
Criar situações de stresse extremo para provocar reacção num animal e fazer disso espetáculo é ignóbil, desumano e bárbaro. Independentemente de ser tradição ou não.
Se comem carne, é hipocrisia serem contra as touradas, em nome da coerência
Claramente, a extrapolação é um erro.
Parece que só um vegan tem legitimidade para se pronunciar contra as touradas. Seguindo esse tipo de raciocínio, também só uma pessoa “carbono 0” se pode pronunciar sobre crimes ambientais; quem alguma vez incorreu nalguma contra-ordenação, não pode objetar ao crime. A colocação das questões no tudo ou nada acaba por redundar numa grande desonestidade intelectual porque cria impasses. Esta é uma evidente tentativa de empurrar a oposição às touradas para um estatuto que ela não tem e que é visto com preconceito por uma maioria da população.
A maioria dos portugueses, ainda que omnívora, reconhece que a tourada é uma actividade vã e injustificável.
A tauromaquia foi celebrada por pintores e escritores, como Picasso e Hemingway
Goya e Picasso pintaram a tauromaquia, como pintaram o horror da guerra ou as execuções públicas. Se as suas obras e a dimensão estética que deram ao horror não servem para legitimar a guerra ou as execuções públicas, porque razão haveria de servir para justificar a tauromaquia?
De facto, alguns autores estão dentro do zeitgeist da época e outros estão à frente do seu tempo. Esse é o grande papel da arte: dar a ver outra perspetiva do mundo. William Hogarth, por exemplo, em meados do século XVIII, ilustrou bem a iniquidade da sociedade em que vivia e as consequências morais da mesma, que só vieram a ser comprovadas muito mais tarde pelas ciências que estudam o comportamento. A série The Four Stages of Cruelty é disso exemplo.
Houve de facto artistas que se posicionaram a favor das touradas, como houve outros que se manifestaram contra. Acontece que a formação moral ou ética de um artista não é relevante para avaliar a qualidade da sua obra, nem esta pode validar a sua postura ética. São coisas distintas.
Um regime democrático não é proibicionista
Claro que um regime democrático nos proíbe as práticas que podem ser lesivas para os outros. Os códigos penais estão cheios delas. Porque é preciso assegurar a defesa dos mais vulneráveis relativamente aos abusos dos mais fortes, por isso o código penal está organizado de forma a limitar a liberdade de quem maltrata, de quem rouba, de quem contamina, de quem abusa, de quem tortura.
Um regime democrático não é uma anarquia em que cada qual faz o que quer, independentemente do prejuízo que isso possa ter para os outros. Segundo as regras da democracia, a maioria determina imposições sobre a minoria. No século XXI, a maioria da população portuguesa considera que a tourada viola direitos fundamentais dos animais – cavalos e touros. Segundo as regras dos regimes democráticos, considerando que a maioria da população portuguesa quer ver esses direitos respeitados, a abolição das touradas é uma medida democrática e justa.
Um regime democrático não nos vai ditar o que vamos fazer dos nossos tempos livres; não vai obrigar-nos a ir ao teatro, por exemplo, mas vai dizer-nos o que não podemos fazer.
Resumindo: embora as preferências das maiorias não se possam impor sempre que ponham em causa os interesses de minorias, neste caso a maioria democrática coincide com obrigatoriedade ética.
O touro não sofre
Sabemos que é reprovável causar sofrimento por motivos triviais. Mas o que é facto é que o touro tem que sofrer durante o espetáculo com que se deleitam os aficionados.
Por isso parece-lhes melhor defender a ideia absurda de que um animal que sente uma mosca a picar-lhe os flancos, por uma espécie de passe de mágica, numa arena não sente ferros de 8cm de comprimento com um arpão de 4cmx2cm a enterrarem-se-lhe na carne e a dilacerarem-lhe músculos, vasos sanguíneos e nervos.
Para conferir alguma credibilidade a este absurdo, invocam muitas vezes um pseudo- estudo do porf. Illera, que obviamente não conseguiu passar pelo crivo do peer review. E como não conseguiu publicar em revistas científicas, optou por publicar as suas conclusões em revistas tauromáquicas que o acolheram de braços abertos e divulgaram até à exaustão.
Entre os argumentos pseudo-científicos frequentemente associados à alegação de que o touro não sofre, a questão da adrenalina costuma ter um papel de destaque. Dizem que a secreção de adrenalina como elemento inibidor de dor é a prova de que o touro não sofre com as agressões que sofre durante a lide. A auto-contradição é evidente: a secreção de adrenalina ocorre em momentos de claro perigo e tensão e é o mais claro indicador de que o touro está, efectivamente, a sofrer. Senão, a adrenalina não seria sequer necessária.
Puro bom senso.
A oposição à tauromaquia é uma luta da cidade contra o campo
Essa é uma falsa questão, já que não podemos falar genericamente de pessoas do campo sem estarmos a estereotipar um grupo. As pessoas do campo são tão iguais e tão diferentes como todas as outras: podem ser generosas, compassivas, inteligentes, brutas, gananciosas, violentas, egoístas, divertidas, taciturnas… podemos continuar indefinidamente, sem nunca chegar a uma conclusão de jeito.
A oposição à tauromaquia é uma luta da razão e da sensibilidade – valores transversais a todas as pessoas, indpendentemente da sua origem – contra a paixão cega das emoções fortes.
A valentia, a inteligência contra a força bruta
Há quem prove diariamente que a valentia e a inteligência são superiores à força bruta, através da literatura, da filosofia, da ciência, da tecnologia, da política, da intervenção social.
A corrida de touros está concebida de forma a que um dos lados esteja preparado para vencer e o outro condicionado para perder. Não é por acaso que as praças são redondas, que os cornos são despontados e embolados, que os toureiros aprendem as técnicas de melhor enganar o touro, que a música toca, que o público grita, que a sequência e o tamanho das bandarilhas é precisamente aquele.
Assumindo que a inteligência é a capacidade de resolver novos problemas, o touro – o tal animal irracional – é o único que a tem que usar, porque é aquele que não sabe o que o espera. Se ensinássemos o touro (sim, são capazes de aprender, como todos os outros animais, através de estímulos positivos e negativos) a apontar ao corpo e não à muleta, a não reagir às primeiras agressões e esperar que o torturador se exponha cada vez mais, a virar a cabeça de lado no momento do encontro com o forcado? E se, sobretudo, o fizéssemos sem o conhecimento prévio de toureiros e forcados? Aí o desfecho seria seguramente outro e já não seria “justo”.
Basta ver os gestos repetidos e as expressões grotescas de triunfo dos toureiros para perceber o caráter supérfluo, primitivo e inútil da necessidade de um ritual em que o homem pretende demonstrar a superioridade sobre um animal. É fácil de perceber que uma coisa destas ao invés de elevar o homem, bestializa-o.
É ainda importante considerar a própria pertinência de perpetuar um ritual primitivo em que, supostamente, se confrontam a inteligência e a força bruta. Acima de tudo, é um ritual de vaidade, supérfluo e desnecessário. Alegar que tal confronto é uma das essências da tourada é afirmar que o homem precisa de provar que é intelectualmente superior a um animal, o que é verdadeiramente absurdo.
Concluindo: houve inteligência sim, mas a montante, na construção desta sequência. Mas sabemos bem do que a inteligência sem empatia é capaz.
O touro gosta da lide, sente-se respeitado
Deve ser resultado de algum estudo de opinião em que entrevistaram os touros à saída da arena…
Este é mais um paradoxo da defesa da tauromaquia: por um lado acusam os que a ela se opõem de antropomorfizar o touro quando falam em sofrimento mas, por outro não têm qualquer pudor em afirmar que o touro sente honra, arrogância ou paixão por ser ludibriado e ferido num ambiente hostil, longe dos seus pares.
É melhor a vida de um touro de lide do que a dos bois para consumo
Nenhum mal pode ser justificável por comparação com outro mal maior.
O touro tem uma vida de rei durante 5 anos e depois sofre na arena durante 20 minutos
Deveria preocupar-nos o caráter doentio de criar animais para os sujeitar a um ritual de tortura antes de os matar. Até porque sabemos que violência é violência, qualquer que seja a vítima e não é por acaso que diversos estudos no âmbito da psicologia, demonstrem que todos os serial killers treinaram os seus dotes primeiro em animais.
É a sede de dominar e de subjugar que emana deste tipo de cultura, donde provém igualmente a violência doméstica (em que o mais forte necessita permanentemente de afirmar a sua superioridade através da submissão dos mais fracos).
Se o simples abandono de animais de estimação é consensualmente condenado pela população, por que motivo devemos aceitar que outros torturem touros, por mais bem estimados que sejam?
Fonte: Esquerda.net