O cão anuncia-lhe a chegada. É pequeno, preto e avança decidido, parecendo indicar o caminho a quem o segue. Atrás dele surge uma mulher, vinda do meio da multidão que cruza o Chiado nos dias que antecedem o Natal. Vem com cobertores nas mãos, ar cansado e olhos no chão. São duas da tarde e ainda não comeu nada. “Ainda não fiz dinheiro, quando fizer, logo como”. É mais um sem-abrigo que engrossa a lista de pessoas que vivem na rua em Lisboa. Quando se lhe pergunta porque é que não dorme num dos abrigos para quem não tem casa, a resposta é imediata: “Porque não me deixam entrar com o meu cão, dizem que não podem estar lá animais. E eu prefiro ficar na rua que ficar sem ele”.
Joana, nome fictício, vive na rua desde os 43 anos de idade, já lá vão cinco anos. Não consegue arranjar trabalho. Embora não desista, tem cada vez menos esperança: “Para tudo dizem que sou velha”. Ex-toxicodependente, encontra-se em tratamento com metadona: “Já não é a primeira vez, vamos ver…”. Vivia com a mãe e os irmãos no sul do país, mas conta que a família nunca se juntava para partilhar sequer uma refeição à mesa. Quando começou a consumir droga as ruas de Lisboa foram o passo seguinte e o cão pequeno que não pára de a olhar tornou-se o seu companheiro inseparável: “É melhor para mim que a minha família, que não quer saber de mim para nada”, confidencia, enquanto lhe faz uma festa na cabeça.
Diz que não há nenhum abrigo destinado a pessoas que vivam na rua que aceite a entrada de animais e que nunca aconteceu chegar a um sítio e sentirem compaixão pelo seu cão. Joana compreende que lhe digam que os animais não podem ficar com os donos nos abrigos: “Era uma grande confusão se entrássemos todos com eles”. Mas não entende porque é que, havendo tantos sem-abrigo a viver com animais, não se constroem canis nos albergues para “receber os bichos com condições”. Mas não como nos canis municipais, “onde estão condicionados e presos”, observa.
Vai dormindo na rua, em casas abandonadas, onde quer que se sinta segura. “Sempre com o meu bicho, não o largo”, diz, enquanto passa o braço pelo cão. Uma vez, conta, chegou a entrar para um abrigo na zona ribeirinha, mas só depois de encontrar um sítio para o cão ficar durante a noite. A União Zoófila acolheu o animal e Joana passou a pernoitar no abrigo. “Durante 15 dias fui deixar o meu cão todos os dias a Sete Rios e voltei para o abrigo para dormir. No dia seguinte lá ia de manhã buscá-lo outra vez”. Não durou muito tempo, “ele vinha com uns olhinhos tão tristes…” Joana voltou para a rua.
A ajuda das associações de animais
Margarida Saldanha, da direcção da União Zoófila, diz que a associação soube do caso de Joana através de uma voluntária, que teve conhecimento da sua situação. “Ela adora o cão, separar-se dele está fora de questão”, conta. “Até chegou a querer fazer voluntariado para estar mais perto dele”. A maioria das pessoas que recorre à União Zoófila chega com “dramas sociais”, mas a associação não recebe fundos que a ajudem a acudir a estas situações: “Os animais não estão abrangidos por esta ajuda a nível do Estado e nós ajudamos, mas só até certo ponto”.
“A responsabilidade do Estado é criar condições, ter uma área focalizada para esta realidade. O canil municipal teria todas as condições para ser exemplar”, afirma Margarida Saldanha.
A Zoófila tem conseguido prestar ajuda outros casos, como o da separação de um casal que deixou na rua um dos seus membros, juntamente com os seus dois cães. A associação ficou com os animais enquanto o dono procurava casa. Mas o conhecimento destas realidades, diz a mesma responsável, chega pelos voluntários ou por outros particulares. Nunca por uma via institucional: “São as pessoas que nos vêm pedir ajuda, as instituições não o fazem”.
Joana já recorreu à União Zoófila para tratamentos veterinários. Um dia deixou o seu cão sozinho e quando voltou encontrou-o ferido: “Até hoje não sei o que lhe aconteceu”. O nome do cão de Joana é omitido neste artigo. A situação de fragilidade em que vivem os sem-abrigo fá-los recear de que os seus animais, cujos nomes são muitas vezes tão ou mais conhecidos do que os dos próprios donos, sejam alvo de represálias por parte de quem lhes quer mal.
Faltam respostas institucionais directas
Director técnico da Associação de Albergues Nocturnos de Lisboa, Paulo Ferreira afirma que o abrigo da Rua da Cruz dos Poiais não está preparado para receber animais – mas que isso não impede, por si só, a presença dos donos dos bichos: “Já tivemos pessoas que deixavam os animais com outras pessoas e vinham aqui passar a noite”. Em cima da mesa chegou a estar a hipótese de construção de uma infra-estrutura destinada a receber animais, num espaço de um pequeno campo de futebol sem uso, mas as obras nunca avançaram. A falta de verbas, questão sempre presente para instituições que, como diz Paulo Ferreira, “vivem ao cêntimo”, foi um dos motivos, mas não o principal. Se as pessoas que abandonassem a instituição deixassem os animais para trás, em pouco tempo a situação seria insustentável. Levantam-se também problemas de vizinhança relacionados com o barulho.
Paulo Cavaleiro, do gabinete de imprensa da Assistência Médica Internacional, explica que são as limitações logísticas, nomeadamente de espaço, que fazem com que os abrigos nocturnos da associação também não recebam animais domésticos das pessoas que a eles recorrem. “O próprio cuidado que os animais exigem tornaria esta hipótese inviável”, aponta.
O técnico do Espaço Aberto ao Diálogo da Comunidade Vida e Paz Luís Cruz diz que existe um abrigo religioso em Fátima onde se permite a entrada dos animais domésticos “mediante avaliação e entrevista” prévias. No entanto, se os utentes mudarem de abrigo o mais certo é serem obrigados a separar-se dos seus bichos. A Comunidade Vida e Paz disponibilizou transporte até lá para um homem que vivia na rua com dois cães, mas no dia combinado ele não apareceu. “Dizia: ‘Não os largo, é a minha família’”, conta Luís Cruz.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é outra das instituições que afirma ter uma alternativa preparada para estes casos. Embora os seus abrigos não permitam, por regra, o acolhimento de animais domésticos, fonte da Misericórdia afirma estar previsto que, nas situações sinalizadas, seja “elaborado um estudo individual da situação e possível encaminhamento para resposta de alojamento alternativa”. Foi o que aconteceu com Vítor, de 53 anos, a quem uma separação difícil e o desemprego apontaram como destino uma vida na rua.
Uma casa planeada
Vítor assume-se como arrumador de carros. A cada intervalo vai até ao banco do jardim onde estão dois cães pequenos. Têm comida e água à disposição e saltam, alegres, por entre as suas pernas e as do banco onde o aguardam diariamente. Já foi jardineiro, já trabalhou em bombas de gasolina, em montagem de outdoors, “tudo o que aparecia”. O trabalho começou a escassear e deu por si a viver na rua em Março deste ano. Nessa altura, assumiu um compromisso consigo próprio: “Conseguir ter uma casa para passar o Inverno”. Foi na rua que conheceu a actual companheira, Anabela, sem-abrigo há quatro anos, e um dois dois cães que com eles vivem: Kit. Já Gucci, uma cadela de pêlo cinzento encaracolado, foi-lhe oferecida por uma transeunte. Kit apareceu na rua, abandonado. Quando lhe perguntamos se seria capaz de se separar dos seus animais para conseguir melhores condições de vida, Vítor responde: “Nem morto, preferia passar fome do que os deixar”. E conta que um dia uma assistente social da Santa Casa conseguiu arranjar lugar para eles. E os cães? “Ficariam connosco nas mesmas instalações, mas num pátio”. Vítor recorda-se de ter dito à assistente que lhe daria a sua resposta o quanto antes. “Não íamos ficar longe dos nossos bichos nem deixá-los num pátio, é a nossa família!”, diz hoje. “Com ajuda lá conseguimos arrendar uma casinha”.
Os cães são para Vítor uma protecção mas também uma fonte de preocupações e uma companhia. Diz que é impensável estar longe deles e por isso leva-os com ele para onde quer que vá: “Estão comigo o dia inteiro”. Os 350 euros mensais da renda da casa e as restantes despesas são financiadas pelo rendimento social de inserção e pelo dinheiro que lhe dão os automobilistas. Trabalho de verdade, diz que não consegue encontrar nenhum. Um dia perguntamos-lhe o que fará se um dos animais ficar doente. A resposta sai rápida: “Eu sei que os veterinários são caros, mas se ficarem doentes tenho que trabalhar para eles. O que quer que eu faça?”. Dias depois Kit adoece. Vítor conta que o levou imediatamente ao veterinário. Na altura de pagar a conta o médico fez-lhe uma atenção.
Os vínculos emocionais
O psicólogo Elias Barreto, co-autor do livro “Sem-Amor Sem-Abrigo”, explica os fortes vínculos desta população com os seus animais: “São relações que se tornam muito importantes e que acabam por transformar a vida destas pessoas”. Para o especialista, assegurar cuidados aos animais conduz muitas vezes a passos decisivos na vida das pessoas que vivem na rua. Conta que acompanhou um caso de um sem-abrigo que não tinha cuidados médicos consigo, apesar de sofrer de uma grave deficiência numa perna. Ofereceram-lhe uma cadela e começou a cuidar dela com empenho. “Não conseguíamos sequer que se inscrevesse no centro de saúde, mas levava a cadela ao veterinário”, relata. Passado uns tempos, Elias Barreto reencontrou-se com o homem, que lhe disse que já tinha saído da rua e que estava a viver com um amigo, porque “a cadelinha estava sempre constipada”. Meses mais tarde, quando o encontrou novamente, a sua vida mudara por completo: “Já não estava em Lisboa, tinha voltado para casa da mãe, que estava doente e precisava de ajuda”. Para o psicólogo este é um caso paradigmático do trajecto a que uma relação com um animal pode conduzir: “Pessoas que não cuidam delas próprias acabam por redescobrir o cuidar de si próprias, ao cuidararem de um animal,”.
Estabelecer um vínculo com um animal pode ser muito importante para quem vive na rua: “Um sem-abrigo sozinho ou um sem-abrigo com um cão não é a mesma coisa. Uma relação destas pode ser muito estruturante”, diz Elias Barreto. Mas o contrário também sucede: “É possível também que os cães sejam um pretexto para eles próprios não saírem da rua”. A separação dos animais domésticos a que a maioria dos albergues obriga pode ser violenta: “É compreensível que seja uma coisa difícil e para o qual não estejam preparados”.
Joana já dormiu em casas abandonadas que depois foram entaipadas com tijolos, para impedir a entrada dos sem-abrigo. Conta que teve, há pouco tempo, um cão bebé que numa noite começou a ter convulsões. Depois de agonizar, o animal deitou sangue pela boca e morreu. “O que ele deitou fora cheirava tanto a químicos que percebemos logo que tinha sido envenenado. Nem conseguímos chegar perto dele”, descreve. Joana conta que o havia salvo de um dono “que lhe dava tantos pontapés que vinha com a boca toda ferida”. Tratou-lhe das feridas, recuperou-o.
Diz que o mataram porque a vizinhança não queria sem-abrigo a viver no prédio ao lado. “Não percebo como é que as pessoas são capazes disto”. Olha para o seu pequeno cão preto e fica com os olhos cheios de lágrimas.
*Esta notícia foi, originalmente, escrita em português europeu e foi mantida em seus padrões linguísticos e ortográficos, em respeito a nossos leitores.
Fonte: Público