O climatologista e meteorologista José Marengo é coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Peruano radicado no Brasil há mais de 20 anos, Marengo é professor na pós-graduação do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e membro do do IPCC/ONU (Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas) e do WMO (Organização Meteorológica Mundial).
O cientista atua como consultor na área de estudos ambientais de mudanças globais, impactos, vulnerabilidade e adaptação às mudanças climáticas e emite pareceres em revistas científicas e agências financiadoras nacionais e internacionais. Em 2021, foi classificado pela agência de notícias britânica Reuters como um dos 1000 cientistas mais importantes do mundo no que se refere à pesquisa sobre mudanças climáticas.
Nesta entrevista exclusiva ao ((o))eco, José Marengo fala sobre o trabalho realizado pelo Cemaden, explica a relação entre educação, ciência, políticas públicas e os desastres naturais e avalia a importância dada às mudanças climáticas n.a campanha eleitoral de 2022.
((o))eco – Como é o trabalho do Centro Nacional de Monitoramento e Desastres Naturais (Cemaden)? Qual o papel do Centro em relação aos efeitos dos extremos climáticos no Brasil?
José Marengo – Depois da catástrofe de janeiro de 2011, na Região Serrana do Rio de Janeiro, o governo federal decidiu criar um centro voltado à prevenção a desastres naturais. Antes, se pensava que esse tipo de trabalho dizia respeito a prever chuvas intensas e depois acionar a defesa civil para o resgate e evacuação das pessoas. Faltava um centro que se dedicasse a monitorar, de forma mais complexa, as condições que podem levar a um desastre natural e assim emitir alertas para que a defesa civil possa trabalhar de maneira mais técnica. Quando se fala em desastre natural, a primeira coisa que se pensa aqui no Brasil é em extremo de chuva, mas na verdade trata-se da combinação dos extremos climáticos (incluindo as secas severas e prolongadas) com a vulnerabilidade da população (por exemplo se uma determinada área tem uma maior quantidade de idosos e crianças ) e a exposição, que diz respeito ao território em si e a como este poderá ser afetado em contato com esse extremo. O que o Cemaden faz é avaliar esses fatores e monitorar se existe um risco baixo, médio ou alto de desastre em determinada área. Existem locais onde uma chuva intensa é apenas um fenômeno meteorológico que não colocará vidas em risco. Já uma chuva intensa em cidades como Petrópolis (RJ) ou Recife (PE) – com condições precárias de moradia, com casas grudadas umas às outras ou construídas em encostas, ruas estreitas que não permitem evacuação e entrada de veículos – coloca essas áreas em um mapa de vulnerabilidade e exposição que solicita emitir alertas de desastres.
A criação dos mapas de risco envolve cientistas e especialistas de diferentes áreas, não apenas aqueles ligados ao clima?
Exatamente. Podemos dizer que se trata de um trabalho de pesquisa operacional e aplicada. Para a pesquisa operacional são acionadas principalmente as chamadas ciências duras, como a meteorologia, a hidrologia, a geologia e a ciência da computação. Mas essas precisam estar associadas, por exemplo, à comunicação. É importante não só emitir um alerta, mas criar meios para que ele seja compreendido pela população e pelos tomadores de decisões. O Cemaden também atua oferecendo formações educacionais em escolas do ensino fundamental e básico. O nosso desafio é que as pessoas entendam o que precisam fazer quando percebem que estão sob condições que podem preceder a um desastre, quando é o momento de deixarem uma área de risco. Por isso, o nosso trabalho também contempla as ciências sociais e as dimensões humanas.
Passada mais de uma década da criação do Cemaden, o senhor acredita que houve avanço nas políticas públicas no que se refere aos desastres naturais no país?
Eu diria que sim, está melhorando. Nós trabalhamos com as defesas civis dos estados e municipais não só no momento de um alerta, mas oferecemos treinamentos de forma permanente para aqueles técnicos que desejam entender um pouco mais. Esse processo de qualificação é muito importante e faz diferença na hora de um desastre natural. O problema é que quando governos e prefeituras mudam, nem sempre existe uma continuidade nos quadros e às vezes pessoas treinadas e experientes são substituídas sem um critério técnico. Uma política importante a ser fortalecida pelos governos estaduais em sua relação com as prefeituras seria buscar a independência dos órgãos da defesa civil para a manutenção de profissionais que já tenham um considerável nível de treinamento. Isso ajuda a preparar a comunidade, que é um de nossos maiores desafios.
O senhor acredita que já conseguimos ser efetivos na prevenção aos desastres, levando em conta que os extremos climáticos tendem a se tornar cada vez mais frequentes?
Eu penso que em termos de políticas públicas o Brasil é mais reativo e menos preventivo e isso deveria ser modificado. A defesa civil trabalha com a reação. O ideal seria investir mais na prevenção, o que poderia diminuir a perda de vidas.Além da conscientização, os territórios poderiam estar melhor estruturados, com vias mais largas e rotas de fuga, além de oferecerem melhores condições de moradia para populações mais pobres, que tendem a ser as mais afetadas tanto pelo vulnerabilidade quanto pela exposição aos eventos climáticos extremos. É claro que não é possível colocar as cidades abaixo e construir novas, mas há iniciativas de mitigação que podem ser efetivamente preventivas, como o adensamento florestal em algumas regiões ou o investimento em saneamento básico, já que o solo degradado pelo esgoto não tratado favorece deslizamentos. É um absurdo o que aconteceu em Petrópolis, de pessoas morando em casas que já tinham sido consideradas como pertencentes a áreas de risco em desastres anteriores. Depois que os desastres acontecem, governantes de diferentes esferas ficam apontando dedo uns para os outros e por fim, acabam colocando a culpa na chuva, como se eles não tivessem responsabilidades. Nós não temos bola de cristal mas muitas vezes, mesmo prevendo um evento meteorológico intenso e emitindo alertas, não conseguimos evitar que mortes ocorram por conta das estruturas das cidades e da morosidade das políticas públicas locais, o que é frustrante.
Como o senhor avalia a atenção dada às mudanças climáticas e aos desastres naturais nas eleições de 2022?
Os candidatos até falam do clima, mas não vejo o tema sendo abordado com seriedade. Aliás, tenho essa sensação em relação à pauta ambiental como um todo. Eu vejo os candidatos falando sobre Amazônia, sobre desmatamento e praticamente só isso – o que é importante, mas é muito pouco. Não percebo também a questão científica sendo levada a sério. Eu faço parte da Academia Brasileira de Ciências e nós convidamos todos os partidos para um encontro. Dos grandes, apenas o Partido dos Trabalhadores (PT) apareceu. O PL (Partido Liberal) não esteve lá, nem os outros. Nos discursos, eu sinto que as mudanças climáticas são tratadas como algo que ainda vai acontecer, quem sabe daqui 30 ou 40 anos. Mas já está acontecendo, agora. Apenas na primeira metade de 2022 aproximadamente 400 pessoas morreram como consequência dos desastres naturais provocados pelos extremos climáticos no Brasil, o que é um recorde. E nos envergonha, mesmo com todos os avanços do nosso trabalho.
Como é lidar com uma realidade tão alarmante sob um governo marcado pelo negacionismo científico – e que esvaziou o investimento de centros de pesquisa e universidades?
Eu posso falar em um nível muito pessoal. No que se refere ao Cemaden, isso não parou as nossas pesquisas. Nós temos, além dos investimentos do governo federal, a colaboração de instituições nacionais como a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e também de governos internacionais, que têm interesse em nosso trabalho. O que fazemos é continuar passando o pires para a Inglaterra e os Estado Unidos, mas é um modo de seguir. Ainda que com um governo negacionista, a produção científica em mudanças climáticas continuou, não é uma era das trevas. Pode até acontecer de algum ministro falar uma coisa ou outra mas no campo das ciências, no Brasil já existe um consenso sobre as mudanças climáticas. Os poucos que se opõem não chegam a causar impacto. Claro que existem também as fake news, o pessoal que fica propagando ideias como a de que a Terra é plana e essas bobagens, mas eu acredito que esses movimentos também estão perdendo força.
O que fazemos é continuar passando o pires para a Inglaterra e os Estado Unidos, mas é um modo de seguir. Ainda que com um governo negacionista, a produção científica em mudanças climáticas continuou, não é uma era das trevas.
José Marengo
Qual recado o senhor gostaria de deixar para os eleitores que irão às urnas em novembro?
As pessoas precisam acreditar na ciência, não só sobre meteorologia e clima, mas em geral. O vírus do negacionismo é perigoso, mas as pessoas são mais inteligentes do que quem espalha fake news. Nós recebemos no Cemaden a visita de pastores, bispos, representantes de religiões afro brasileiras, rabinos. O tema ambiental transcende culturas. Por isso, é importante um voto ambientalmente consciente, preferencialmente em candidatos comprometidos com a ciência. Precisamos parar de achar que apenas rezando vamos evitar desastres naturais. A verdade é que, diante das mudanças climáticas, o ser humano também precisa fazer a sua parte.