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AMOR PROFUNDO

Margaret Atwood, autora da série The Handmaid's Tale, faz homenagem a todos os gatos que fizeram parte da sua vida

27 de dezembro de 2021
Margaret Atwood | Traduzido por Luna Mayra Fraga Cury Freitas
12 min. de leitura
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Foto: Divulgação

Eu era uma criança sem gatos.

Eu ansiava por um gatinho, mas isso sempre me era negado: passávamos dois terços de cada ano na floresta norte do Canadá, então se levássemos o gato conosco ele fugiria e se perderia e seria comido por lobos; por outro lado, se não levássemos conosco, quem cuidaria dele?

Essas objeções eram irrespondíveis, então eu esperei… E enquanto isso eu usava a imaginação.

Meus desenhos quando criança de seis anos estão repletos de gatos voadores, e meu primeiro livro – um volume de poemas feito com lençóis dobrados e uma capa de papel de construção – foi chamado de Rhyming Cats (Gatos que Rimam), e tinha uma ilustração de um gato brincando com uma bola.

O gato da capa parecia uma salsicha com orelhas e bigodes, mas era cedo na minha carreira de desenhos.
Então deixamos de passar tantos meses na floresta e eu vi uma abertura: uma gata de um dos meus amigos teve gatinhos. “talvez eu possa… será que eles… será que eu não poderia… por que não?” Tanto falei, que os venci pelo cansaço.

Meu pai nunca foi totalmente tranquilo em relação a ter um gato dentro de casa – ele nasceu no início do século XX em uma pequena fazenda sertaneja, então para ele gatos pertenciam ao celeiro, seu trabalho era pegar ratos e camundongos, e filhotes indesejados eram afogados em um saco – mas ele depois admitiu que esta gata em particular era extraordinariamente agradável e inteligente, para um gato.

O nome da gata era Percolator (Coador). (Uma espécie de trocadilho. Espero que tenha notado) Seu apelido era Perky, e ela fez jus a isso, sendo alerta e enérgica.

Ela dormia na cama das bonecas no meu quarto – que nunca era muito usada para bonecas – ou então em cima de mim, e eu a amava muito.

Naqueles tempos ainda não sabíamos que não deveríamos deixar gatos saírem de casa devido ao seu efeito devastador sobre as populações de pássaros selvagens, então Perky entrava e saía à noite pela janela do meu quarto térreo, e me trazia presentes noturnos.

Os presentes eram coisas que ela tinha capturado. Se ratos, eles geralmente estavam mortos, mas vários dos pássaros não estavam, e tiveram que ser perseguidos pela sala, capturados e colocados em caixas de sapato para serem levados para o veterinário.

Se as intervenções fossem bem-sucedidas, as aves seriam liberadas pela manhã; se não, fazíamos funerais.

Uma vez ela trouxe um coelho, que não tinha nenhuma marca de mordida, e deu uma canseira em mim e em Perky antes de ser finalmente capturado e colocado na caixa de sapatos.

Infelizmente, morreu mesmo assim, provavelmente de choque. (Agarrado por um monstro. Encarcerado por um alienígena. Você pode imaginar como isso teria sido perturbador.)

Nos verões, quando íamos para a floresta norte, nossa vizinha, Rhea, gentilmente alimentava Perky, que parecia ser capaz de se virar muito bem sozinha por aí.

Havia um pomar abandonado nas proximidades e um cemitério ao alcance, então ela tinha amplos campos de caça.

Tudo correu bem até o dia da festa de Jardim de Rhea. As mulheres em seus vestidos floridos e chapéus de sol estavam sentadas em torno de uma grande mesa baixa, na qual havia um prato de tâmaras recheadas enroladas em açúcar em pó. compridas e suculentas.

Perky, para mostrar gratidão, trouxe um presente – uma toupeira morta, bem lambido e “chacoalhada”, também comprida e suculenta – e colocou-a na bandeja. E alguém quase comeu!

Então, quando eu tinha quase 12 anos, tive uma irmãzinha. Este evento foi a ruína de Perky. Um dia, quando cheguei da escola, ela não estava lá.

Ela foi pega lambendo leite da boca do bebê, e, com medo de ela se sentar na cabeça do bebê e sufocá-lo, meus pais a tinham ‘doado’.

Espero que isso tenha significado uma viagem à Animal Humane Society e uma morte rápida, mas eu nunca soube.

Hoje em dia haveria uma conversa familiar e muita explicação empática, sem dúvida, embora o desfecho para o gato fosse o mesmo, ainda assim.

Com certeza esta foi uma tragédia, um raio de Zeus; e como um raio de Zeus, não havia sentido em questioná-la.

Eu me ressinto do desaparecimento da minha primeira gata? Sim.

Eu fui capaz de esquecê-la? Como pode ver, não.

Como eu pude ter sido tão cruelmente separada do meu bichinho de estimação desta maneira? Mas assim foi.

Outros gatos seguiram, embora muito mais tarde: difícil ter um gato quando você está morando em residências estudantis, quartos e apartamentos alugados que diziam ‘PROIBIDO ANIMAIS DOMÉSTICOS’.

Mas depois de um tempo veio Patience, que ficou toda emaranhada em fios e, em seguida, rolou sobre a colcha que eu tinha acabado de tricotar meticulosamente; e Ruby, a durona e formidável veterana que herdamos quando nos mudamos para uma fazenda, e que costumava passear conosco como um cachorro.

Então, de repente, eu tive uma filha, e ela, também, estava aflita com a saudade de um gato. O inevitável foi evitado por um curto período, porque já havia um rato em casa.

Não se pode dizer que ele tenha sido muito amigável: ele deu voltas e voltas em sua roda de exercício, mordeu os dedos das pessoas e emitiu cheiros desagradáveis.

Mas então o rato morreu. Estava sendo exibido para dois meninos visitantes, e uma esquete de Monty Python se seguiu.

“Este rato está morto!”

“Não, não está, está dormindo.”

“Olha! Morto!” (cutuca o rato)

Houve algum acidente? Não havia. O rato recebeu um enterro formal no quintal, completo com canções, e dizíamos que ele havia ido para o céu porque era possível ouvir um chiar vindo de cima. (Barulho da chaminé, eu espero.)

O túmulo foi então reaberto e, eis que não havia nenhum rato! (terra da cobertura de grama o havia escondido)

Dois minutos depois: “Agora que o rato está morto, posso ter um gatinho?”

A gata de um vizinho tinha acabado de ter alguns, e o homem estava mais do que feliz em abrir mão de dois deles, “então eles terão alguém para brincar”.

Os direitos de nomeação foram dados à criança de cinco anos. Um gatinho era cinza e fofo, e se chamava Fluffy.

O outro era de cabelos curtos e preto, e foi chamado de Blackie.

Não eram nomes sofisticados, com certeza – nada de Édipo, Platão, Poseidon, Catatônico – mas eram nomes descritivos.

Estes gatinhos eram notavelmente pacientes, e se permitiam ser enfiados em vestidos de bonecas e rodados em um buggy de brinquedo. (Eu tinha feito o mesmo com Perky, então quem era eu para julgar?)

A regra era que eles não deveriam sair de casa com as roupinhas, pois eles poderiam se prender em galhos e estrangular com as cordinhas de suas touquinhas de brinquedo.

Mas ocasionalmente eles escapavam, e os transeuntes eram brindados com a visão de um deles com uma jardineira e chapéu de babado, saltando de telhado em telhado.

Fluffy era prestativo, Blackie era um vigarista.

Ele costumava se esgueirar até um dos vizinhos e miar sofridamente, fingindo estar perdido.

Eles o deixavam entrar e o alimentavam. Levou um tempo para descobrirem que ele vivia a apenas duas casas abaixo.

Quando, pouco depois disso, nos mudamos para um endereço diferente, não demorou muito para ele testar os novos vizinhos, mas com um toque adicional: ele enfiava a pata dentro da sua coleira e exigia ser resgatado.

Fluffy, enquanto isso, estava trabalhando na calçada, vagando por aí voluptuosamente, convidando os pedestres a esfregar sua barriga, e atraindo guloseimas.

Campainha toca. Desconhecido: “Por favor, diga a Fluffy que sinto muito por ter esquecido o salmão defumado dela hoje, mas vou trazê-lo amanhã.”

As crianças crescem e vão embora, e os pais herdam os gatos. Isso acontece mais rápido do que você pensa. E rapidamente eu passei a ter dois companheiros.

Fluffy reivindicou a escada, e disputava este espaço com Blackie quando ele estava subindo ou descendo; mas Blackie era dono do meu escritório, e me ajudava a escrever, como os gatos fazem, subindo no teclado, bagunçando papéis soltos ou mexendo nos elásticos em torno de manuscritos.

Nenhum deles era caçador. Esquilos saltavam próximo a Blackie enquanto ele cochilava, seduzindo-o a persegui-los, mas ele simplesmente piscava.

Ratos apareceriam na cozinha – eles vinham de um cano de esgoto antes de consertarmos – e Blackie e
Fluffy apenas olhavam para eles. (‘Blackie! Fluffy! Façam seu papel! Olhares de desdém: e o que seria isso, humanos?)

Embora não fossem desprovidos de habilidades defensivas. Uma vez vi os dois assistirem um guaxinim mal-intencionado se aproximando – imóveis, caudas se contraindo ligeiramente – até o último minuto, quando voaram no nariz do intruso, todas as garras para fora.

Era como algo saído de um livro de estratégia de guerra de John Keegan: Mantenham-se juntos! Mantenha a posição! Não atire até ver os brancos de seus olhos! Sem retirada! Atacaaaarrr!

Deve ter havido confrontos com outros gatos, também. Na natureza, o território para um gato macho é uma milha quadrada. Não é à toa que há brigas de gatos nas cidades.

Blackie provavelmente perdeu a maioria de suas lutas: ele era um Ulisses astuto, não um Aquiles corajoso. Uma vez ele chegou em casa com uma garra presa no nariz. (‘Blackie! O que você andou fazendo?’ Miado de cortar o coração.)

Orelhas rasgadas e tufos de pelo faltando tiveram que ser tratados.

Escritores e seus gatos – é um tema. Há livros de fotos dedicados a isso.

Há também escritores e seus cães, escritores e seus pássaros (papagaios e corvos, inclusive) e talvez (estou supondo) escritores e suas cobras.

Mas eu apostaria que os gatos predominam. Eles entrevistam bem, projetando uma aura misteriosa enquanto não entregam exatamente nada.

Eles ficam parados para a câmera; eles não entram em poças de lama e, em seguida, saltam em todo o jornalista; eles não arfam e babam.

Como todos os românticos de verdade, eles são independentes, e como Byron em seu desprezo pela autoridade. Eles estão sempre bem-preparados. São influências? São Musas? Sim e não, dependendo de como você considera.

Eles certamente entram em histórias e poemas, ou pelo menos entraram na minha. No entanto, nem sempre “meus” gatos: às vezes os gatos dos outros.

Um gato – história verdadeira – pertencia a um amigo meu. Foi sequestrado por um ex vingativo e preso em uma lata de lixo de metal. (Resgate bem-sucedido após uma busca frenética e alguns miados ‘me ajude’)

Uma obra minha – que é quase uma manifestação de um desejo – chamada Nosso Gato Entra no Céu apresenta Blackie disfarçado, que nos informa que Deus é um grande gato.

Ou essa seria a forma em que ele ou ela certamente apareceria para um gato.

Esta história foi uma das muitas rotinas do meu período de luto depois que Blackie morreu. Essa é a desvantagem de ter um gato: gatos morrem, geralmente antes de você.

Não sei por que fiquei tão arrasada depois da morte desse gato em particular, mas eu estava.

O evento ocorreu enquanto estávamos fora. Minha irmã estava cuidando dos gatos e Blackie havia desenvolvido uma doença renal.

Sim, poderia ser tratado, disse o veterinário, mas Blackie teria que receber uma agulhada duas vezes por dia e ter uma amostra de urina coletada. Quais eram as chances disso? Zero. Uma agulhada, e
Blackie não teria esperado nem até a segunda.

Ele teria fugido e se escondido nos arbustos na primeira oportunidade. Quanto à amostra de urina: “Blackie, faça xixi na garrafa.” Olhar de desprezo total. Fim da história.

E este foi o fim da história. Minha irmã telefonou – ligação internacional – muito abalada e aos prantos “Blackie está m-m-morto!”

Eu: ‘Não! O que você…’

Ela: “Eu o enrolei em seda vermelha e o coloquei no f-f-freezer, para que você pudesse enterrá-lo quando você voltar!”

Ela estava morando em uma casa com vários outros moradores, e eu fiquei imaginando algum deles tateando pelo freezer em busca de hambúrguer e se deparando com um pacote inicialmente promissor.

Desembrulhando o embrulho congelado. O que é isto? A múmia anda! Grito de nojo, gato congelado derrubado no chão…

Mas isso nunca aconteceu.

Escondemos a morte de Blackie de nossa filha por várias semanas – ela estava na universidade fazendo provas, seria perturbador para ela – então fomos duramente criticados por isso. “Como você pode fazer isso comigo? Da próxima vez você tem que me dizer imediatamente!

Percebemos que o que ela tinha medo era que um de nós desenvolvesse uma doença terminal, morresse e possivelmente fosse guardado no congelador, e ela não seria informada até que fosse tarde demais.

Um pai ou mãe que se comportou de maneira tão dúbia no caso de um gato morto certamente não pode ser confiável.

Escrevi vários poemas comemorativos. Também reescrevi a Morte d’Arthur de Tennyson, substituindo por gatos.

Blackie é o rei moribundo, Sir Cativere é seu amigo fiel, as três rainhas na barcaça carregando o Rei Blackie para o orquidário da ilha dos camundongos de Avilion miavam em luto (‘E no horizonte os miados desvaneciam).

Sim, eu sei, isso era louco. Mas estranhamente terapêutico.

Fluffy seguiu o destino de Blackie pouco tempo depois, mas de uma maneira diferente.

Ela desenvolveu demência de gato; ela não conseguia se lembrar onde ela estava, e vagava pela casa à noite emitindo uivos fantasmagóricos.

Porém mais tempo se passou.

Depois de um longo período de abstinência, durante o qual eu disse a mim mesma que eu não deveria ter gatos novamente já que eu estava ficando um pouco mais velha e poderia tropeçar neles descendo as escadas, eu entrei em uma lista para adotar dois gatinhos siberianos. (Sim, como muitos amantes de gato, eu sempre tive uma leve alergia; mas esse tipo de gato teoricamente causa pouca alergia.)

Estes serão gatos totalmente domésticos que ficam dentro de casa e são treinados para passear com coleiras, ou assim eu pensava com carinho.

Talvez eu construa um gatil externo, para que eles possam tomar sol enquanto observam a vida selvagem em segurança.

Vou ter redes de gatos. Eu vou ter arranhadores. Não me permitirei ficar chateada com estofados desfiados.

Se vou ser uma velha louca com reputação de bruxa, posso aliciar um par de cúmplices confiáveis.
Companhias perfeitas para alguém que voa por aí em sua vassoura, você não acha?

On Cats: An Anthology, por Margaret Atwood, foi publicado pela Notting Hill Editions, e está à venda por 14,99 libras esterlinas.

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