É muito evidente que nos dias atuais o veganismo tem servido para aglutinar denuncias legítimas em relação à teia de crueldade e exploração dos animais e as devidas reivindicações justas em defesa dos seus direitos. Mas, mais que um veículo, não único obviamente, para a conquista desses direitos, é em si um conceito que idealiza uma condição e modo de vida de estar vegano e com isso evitar hábitos e práticas que impliquem o sofrimento e a dor alheia a seres indefesos e sencientes. Para uns, movimento ativista que tenta romper paradigmas culturais moldados no antropocentrismo e especismo “civilizatório” e para outros o cotidiano traduzido numa ética prática de se fazer o dever de casa. É claro que ambas situações/condições se mesclam e se fundem na vida de muitos que assim assumem esse modo de vida vegano.
Como conceito que abrange essas inúmeras possibilidades pertinentes a uma decisão individual por escolhas de consumo que não impliquem exploração/utilização de animais é possível substituir o termo “vegano” por libertador ou abolicionista, pois na prática é esse o resultado mais imediato que se deseja, o de interromper esse sistema de escravização dos animais. É preciso ter em mente que cada indivíduo decreta a sua “Lei Áurea” aqui e agora, e a soma desses decretos individuais é que transformarão a grande estrutura desse sistema perverso.
O grande perigo de todo e qualquer idealismo é o apego aos rótulos que o identificam e com o veganismo não está sendo diferente. Assim como o “hábito não faz o monge”, apenas o rótulo “vegano(a)” não torna necessariamente alguém “superior” ou melhor que os outros. Se o espelho estiver embaçado e não for possível um olhar para si, basta a convivência real ou virtual com nossos pares de causa. Nesse sentido o veganismo acaba tendo semelhança com uma espécie de seita ou religião, onde o recém “convertido” tenta impor na marra sua crença ou mensagem de salvação, esquecendo sua condição “pecadora” pré-vegana! E muitas vezes a pregação pode mais afastar do que trazer “fiéis” para a causa e o fanatismo acaba sendo pior apenas para os animais. Nesse sentido basta reparar o que acontece nas redes sociais ou grupos de discussão. Se quiseres afastar um simpatizante ou futuro vegano para a causa basta colocá-lo num desses grupos.
O veganismo não é religião. E se assim for encarado, daí sim terá mais desafios e problemas para além daqueles intrínsecos ao mesmo. E a cartilha com mandamentos e deveres a serem cumpridos serão cobradas e patrulhadas, principalmente por colegas de dentro da “Igreja”. E ai daquele irmão que pecar e ainda tiver um resquício pregresso de conduta não vegana, seja por um detalhe em algum calçado ou vestimenta, seja pelo consumo desinformado de um produto (ainda que isentos de origem animal), porém de uma marca não vegana, seja por ocasião de uma confraternização entre familiares ou amigos e for visto entrando num restaurante do “mal”, seja por beber desinformadamente uma marca de bebida que patrocina eventos de exploração animal.
Enfim, há muitos exemplos desses “pecados” alvo de patrulhamento e condenação, que conforme o contexto, tornam-se piores que os ataques oriundos dos “infiéis não convertidos”. Até parece que os “puros” não frequentam mercados ou estabelecimentos que ofereçam produtos com ou sem exploração animal; que se utilizam de ferramentas da internet como as redes sociais que abrem espaço ou patrocínio também para a indústria da exploração! Interessante é que muitos veganos tem gasto mais energia entre si do que com aqueles que exploram e se beneficiam da vida animal.
É de suma importância que nessa caminhada alguém possa auxiliar o simpatizante, o protovegetariano e o vegano com alguma informação e esclarecimento (que implique ou não dar um passo adiante) a respeito de alguns produtos, marcas ou instituições que explorem ou não os animais, mas com uma didática respeitosa que não aponte o dedo arrogante de um “pastor” ou juiz da vida alheia. Impor modelo único de conduta e comportamento é coisa de religião. O contexto psicológico, familiar, social e local é extremamente diverso e complexo para ser encaixado ou engessado num único modelo a considerar-se “válido”. A vida de um vegano numa pequena cidade do interior, por exemplo, terá um modelo diferente comparado com a de um vegano de uma cidade grande ou de uma metrópole, onde este conta com inúmeras alternativas de produtos e comércio apropriado à disposição. Outra questão que não implica estar “certo” ou o “errado”, mas sim ter posturas distintas frente a uma mesma situação é daquele vegetariano ou vegano que é convidado a ir num almoço ou janta que terá animais ou derivados destes na refeição: Um prefere não frequentar esse ambiente e o outro decide levar um generoso prato vegano e mostrar que se pode comer saborosamente bem sem crueldade animal. Bem, ambas posturas devem ser respeitadas e nenhuma está sendo mais ou menos vegana. Porém, não faltará algum “guru” para julgar que um vegano “autêntico” não deva frequentar lugares profanos com rituais “pecaminosos”. Pois é, coisa de seita. E no fundo nem preciso dizer qual dos dois casos trará mais simpatia e possibilidades de adesão para a causa animal! Mas, ambos deverão ser respeitados em suas condutas.
Estar vegano ou ter propósitos veganos, ou ainda propósitos abolicionistas e libertários em prol dos animais? O que é mais razoável levando em conta que apenas as escolhas individuais não resolvem em sua totalidade os mecanismos de exploração animal e que devemos também atuar de modo coletivo a fim de um dia atingir um ideal 100% “vegano”? E nesse momento estou me referindo apenas ao ideal vegano sem entrar no ecoveganismo, que não só amplia como aprofunda a questão! Daí sim, parafraseando um ensinamento religioso, não sobraria um para atirar a primeira pedra.