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HOLOCAUSTO ANIMAL

Tubarões e raias em extinção são vendidos no maior mercado da Amazônia

27 de agosto de 2023
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Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

Às 3h30, no entorno do mercado Ver-O-Peso, em Belém, dezenas de pescadores ainda estão ávidos por vender suas mercadorias. “Vendo por R$ 10 o quilo, vai querer?”, indaga um deles.

A “pechincha” da vez é o cação ou tubarão. Diferentemente de outros peixes ali expostos, esses têm as cabeças e barbatanas decepadas. “Esse aí é conhecido como filhote de tubarão”, diz o vendedor. “Carne é boa para fazer moqueca”, continua.

Uma análise de sequenciamento genético do peixe em oferta revela que ele é da espécie conhecida como cação-azeiteiro ou cação-mole (Carcharhinus porosus), considerada criticamente em perigo na Avaliação do Risco de Extinção da Fauna do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade).

O consumo de cação no Brasil é alto, de cerca de 17 toneladas por ano, mas a população desconhece que essa pesca envolve práticas ilegais e ameaça os animais. Do ponto de vista comercial, são os chamados subprodutos ou partes do pescado que atraem maior interesse.

As barbatanas, ou seja, as nadadeiras do animal, são valiosas no mercado global, principalmente no asiático, com preços que chegam a US$ 1.000 o quilo (cerca de R$ 4.790). Do outro lado do mundo, elas são usadas no preparo de sopas e também na medicina tradicional.

“A pesca de tubarão ocorre principalmente pelo chamado ‘bycatch’, que é você mirar em um tipo de pesca e acabar pegando outros animais”, explica Alberto Akama, ictiólogo (estudioso de peixes) e pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi.

É dessa forma incidental que o Brasil autoriza a pesca de tubarão, mas, em situações em que a espécie capturada é ameaçada de extinção, a atividade passa a ser proibida. Assim, se um navio que está autorizado, por exemplo, a pescar atum acabar pegando um tubarão de espécie listada como vulnerável, ele precisa soltar o animal.

Na prática, porém, uma vez capturados, os tubarões ameaçados acabam não sendo devolvidos ao mar, mostram apreensões de órgãos de fiscalização e também estudos que identificam as espécies vendidas.

A Folha, durante visita ao Ver-o-Peso em maio, coletou 11 amostras de pescados comercializados como cação ou similares. Dessas, 9 eram de espécies criticamente em perigo, apontou análise feita em laboratório a pedido da reportagem.

Para evitar punições e maximizar lucros, as embarcações muitas vezes trazem esses peixes à costa já sem a cabeça —o que dificulta a identificação da espécie— e sem as barbatanas —o que sugere que essa parte valiosa já foi direcionada ao mercado externo.

Essa “limpeza” também é irregular. Portaria do Ministério do Meio Ambiente e Ministério da Pesca, de 2012, exige que os animais sejam desembarcados com todas as suas partes. O documento proíbe ainda o “finning”, que consiste na retirada das nadadeiras de raias e tubarões e no descarte do restante do corpo, que tem menor valor comercial.

O aumento na ocorrência de apreensões, na esteira da intensificação das medidas de fiscalização, revela que a procura por esses animais está em alta.

Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

Em junho deste ano, uma ação em conjunto da Polícia Federal e do Ibama apreendeu mais de 28 toneladas de barbatanas de tubarão em Santa Catarina.

E, em julho, a Segup (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social) do Pará encontrou cerca de R$ 400 mil em pescado irregular, além de mais de 50 kg de barbatanas de tubarão avaliadas em R$ 239 mil. A pasta afirma ter investido em 84 novas embarcações nos últimos quatro anos para a fiscalização de crimes ambientais.

De acordo com as autoridades, as mercadorias tinha como destino a Ásia.

Além do cação, a reportagem identificou no Ver-O-Peso, o maior mercado da Amazônia, indivíduos de tubarão-martelo (do gênero Sphyrna) e Carcharhinus leucas, espécies consideradas, respectivamente, como criticamente ameaçada e vulnerável.

Como as informações sobre espécies que ocorrem na costa do Brasil e o estado de preservação delas são escassas (só há dados para 31 das 62 espécies avaliadas pelo ICMBio), muitos tubarões e raias ameaçados de extinção podem estar sofrendo com a pesca ilegal.

“Cerca de 60% das espécies de tubarões e raias recifais hoje estão ameaçadas de extinção, então a gente vê mesmo um cenário bem ameaçador”, afirma a bióloga Luiza Baruch, que concluiu recentemente a sua dissertação de mestrado sobre o conhecimento etnobiológico (que alia dados de comunidades locais com biologia) sobre um tipo de raia, o peixe-serra ou espadarte (Pristis pristis e Pristis pectinata), na costa do Pará.

Os tubarões e raias são chamados em conjunto de elasmobrânquios. A maioria das espécies é vivípara (os filhotes nascem diretamente do útero) e demora a atingir a maturidade sexual.

Como são predadores de topo de cadeia, sua presença é fundamental para manter o equilíbrio dos ecossistemas, mas as populações em todo o mundo estão em declínio. “Com as capturas recentes, eles não têm chance de se reproduzir”, explica Baruch.

O Ibama afirma que tem atuado para prevenir o comércio ilegal de tubarões e raias no país. Já o ICMBio diz que realiza fiscalizações nas UCs (unidades de conservação) marinhas, mas que “a maioria dos ilícitos ambientais ocorre nos oceanos fora dos limites e jurisdição das UCs”.

Responsável pela administração do mercado Ver-O-Peso, a Prefeitura de Belém disse que cabe ao governo estadual a fiscalização sobre o que é vendido no local. A Secretaria de Segurança Pública e Defesa do Pará disse que tem investido no combate e fiscalização de crimes ambientais.

O Ministério da Pesca e Aquicultura, também procurado, diz que está atualizando as normas vigentes para coibir a pesca ilegal, não reportada e não declarada.

Casos como o do peixe-serra, classificado como criticamente ameaçado, mostram os riscos da comercialização ilegal. Um levantamento feito pela bióloga Patrícia Charvet, da Universidade Federal do Ceará, e colegas identificou um declínio de cerca de 87% da população.

Baruch, que também estuda o peixe-serra, conta que se acredita que ele possa estar restrito atualmente à costa norte do Brasil, entre o Amapá e o Maranhão, enquanto, no passado, era encontrado em todo o litoral. “Mas, mesmo com restrição [de pesca], está cada vez mais raro ver o animal”, destaca.

O rostro — serra ou katana— dessa espécie é altamente cobiçado, vendido por cerca de R$ 5.000, enquanto os dentes isolados chegam a R$ 50 a R$ 100 cada um. A peça é considerada um amuleto no mercado asiático, enquanto os dentes isolados são usados como esporas em rinhas de galo.

É possível encontrar na internet vídeos de pescadores atacando a golpes de machadinha peixes-serra ainda vivos, para remover a serra.

“Aqui na região norte do país temos a maior biodiversidade em termos de peixes. Infelizmente, em termos de fiscalização, ainda há um vácuo, faltam informações das espécies e pesquisadores. A Amazônia Legal inteira tem menos doutores do que a USP [Universidade de São Paulo]”, lamenta Akama.

A educação ambiental também tem papel fundamental na reversão desse quadro. Nas resex (reservas extrativistas) da região, os pescadores são orientados a reconhecer e a ajudar na proteção das espécies ameaçadas. Em geral, porém, ainda evitam falar sobre os avistamentos.

“Podemos criar uma área protegida, mas se a comunidade não entender a importância daquela região para determinado animal, quais orientações ela deve ter e o que isso implica, não vai fazer nenhuma diferença em termos de conservação”, conclui Charvet.

Foto: Lalo de Almeida/Folhapress

A PESCA DE TUBARÕES NO BRASIL EM NÚMEROS

– 17 toneladas por ano de carne de tubarão são consumidas no Brasil
Mais de 28 toneladas de barbatanas foram apreendidas só em junho de 2023;

– 50% das espécies de tubarões e raias marinhas do Norte têm algum grau de ameaça;

– 9 das 11 amostras de tubarão coletadas pela Folha no mercado Ver-O-Peso (Belém) eram de espécies criticamente em perigo;

– 2.000 embarcações atuam no Norte do país, segundo o Ministério da Pesca e Aquicultura;

– Ásia é o principal destino da pesca ilegal de animais ou partes de animais na Amazônia

Dados: ICMBio, Ibama, Ministério da Pesca e Aquicultura e Sea Shepherd Brasil

Fonte: Folha de SP

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