Não há como um simples mortal permanecer indiferente ao solo de guitarra slide de “Não adianta”, em que Zeca Baleiro recria, com toda a sensibilidade poético-musical que lhe impregna a alma, uma das canções mais belas e desconhecidas do compositor Sérgio Sampaio (1947-1994). Os acordes em ré maior do piano base permitem, em sua lenta suavidade, o deslizar da guitarra que evoca um artista injustiçado, cuja obra estava sendo perdida por uma gente perdida de memória perdida. Sem este primoroso trabalho de resgate feito por Zeca Baleiro, talvez jamais soubéssemos quem foi o autor de “Eu quero é botar meu bloco na rua” e de “Que loucura”, para citar aqui apenas duas das músicas que conseguiram driblar a censura militar dos anos 70. E ainda mais louvável foi o fato de Zeca Baleiro conseguir, em meio ao clima intimista de “Não Adianta”, aliar música, poesia e sentimento, de modo a traduzir tudo o que Sérgio Sampaio quis dizer mas que não o deixaram falar. O resultado pode ser conferido no Youtube, ao clicar no vídeo em que se vê a fotografia de uma mulher no pier, diante do mar, como que louvando a singularidade da vida e a alegria de existir.
Esse exemplo serve para demonstrar que palavras e canções não morrem se olhos novos as enxergarem e bocas futuras as entoarem. Trazer de volta o que o tempo ainda não apagou: um poema, uma gravura, um filme, um gesto, uma melodia, um pensamento, uma filosofia. Coisa que depende da iniciativa de pessoas que se comovem diante da arte ou da estética. Sem elas, muitos autores ou compositores talentosos, por mais brilhantes que tenham sido em seus ensinamentos ou obras, jamais seriam conhecidos do público. Talvez Mário de Sá-Carneiro permanecesse na obscuridade literária se, antes de morrer, não tivesse enviado seus textos ao amigo Fernando Pessoa. Da mesma forma Cesário Verde, outro jovem poeta português, ele não seria conhecido se o seu colega de faculdade, Silva Pinto, não tomasse a iniciativa de editar seus versos. Franz Kafka é outro que por pouco não se tornou um ilustre desconhecido: ao pressentir o próprio fim pedira a um amigo confidente, Max Brod, que se encarregasse de destruir todos os seus escritos. Este último desejo não foi atendido e o mundo pode então conhecer a revolucionária narrativa ficcional contida em “O Processo” e “A Metamorfose”.
Fenômeno semelhante ocorre, também, em relação aos pensadores dos direitos animais, em todos os tempos e cantos do mundo. Quantos deles não tiveram a voz sufocada pelo peso dos séculos por falta de um interlocutor? Muitos e muitos, provavelmente. Mas o que os registros históricos mantêm vivos, desde a antiguidade, é o exemplo de algumas personalidades clássicas que, a seu modo, contribuíram para a discussão da causa animal. É o caso de Pitágoras (mencionado nas Metamorfoses, de Ovídio), de Porfírio e Plutarco (vegetarianos convictos) e de Celso (que, no século II, afirmava que a natureza existia para todos, homens, plantas e animais). De uma forma ou de outra, esses célebres pensadores tiveram a coragem de desafiar os fundamentos do sistema antropocêntrico já vigente. A voz deles acabou sendo impulsionada à frente, a ponto de ser mencionada, hoje em dia, sempre que se estuda a dieta vegetariana ou a própria evolução dos direitos animais. É como se um refrão ecoasse pelo tempo, um solo de idéias estabelecendo uma ponte imaginária do passado para o futuro.
O professor Keith Thomas, ao mergulhar fundo em seus estudos sobre o homem e o mundo natural, relaciona algumas personalidades que se dedicaram à causa dos animais no início do período moderno: Thomas Tryon, em 1657, renunciou à carne e ao uso de couro, alegando que tais práticas matavam e oprimiam nossos semelhantes. Robert Cook, outro possível pioneiro vegano, publicou em 1691 um artigo em defesa do vegetarianismo, em que se recusava usar roupas ou alimentos provenientes de animais. Ainda nessa época a poetisa Margaret Cavendisch, duquesa de Newcastle, posicionava-se em favor dos animais ao escrever que o homem não tinha o monopólio de senso ou razão O filósofo David Hartley afirmava, em 1748, que tirar a vida dos animais, para transformá-los em comida, ofende o princípio da compaixão. Em 1802 Joseph Ritson publicou “Ensaio sobre a abstinência de comida animal como um dever moral”. Frances Power Cobbe e Anna Kingsford, já no século XIX, foram duas das mais expressivas vozes antivivisseccionistas da Inglaterra.
A história registra grandes autores que foram notabilizados por uma postura ética, por um pensamento, por um livro. Podem ser citados, por exemplo, Humphry Primatt (“The Duty of Mercy”, 1776), Henry David Thoureau (“Walden”, 1854) Henry Salt (“Animal Rights”, 1892), Piero Martinetti (“Pietá verso gli animali”, 1920), Cesare Goretti (“L´animale quale soggetto di diritto”, 1928), Axel Munthe (“The Story of San Michele”, 1929), Ruth Harrison (“Animal Machines”, 1964), dentre outros tantos que se fizeram mover em função de seus ideais, uns influenciando outros. É como se uma força vital unisse o destino dessas pessoas compassivas, as quais tiveram olhos bem abertos para enxergar uma realidade que a maioria dos homens não vê ou não quer ver. A obra então resiste. Quando parece que a mensagem nela transmitida vai morrer, ignorada solenemente pela comunidade acadêmica ou arquivada no fundo de uma biblioteca, eis que surge alguém que a retoma e a transmite como se ela fizesse parte de uma nota musical, sutil fermata capaz de atravessar os dias, os anos e os séculos.
Mas por que estou falando isso tudo? O que tem a ver o solo de Zeca Baleiro com esses escritores, ativistas e filósofos todos? Quem sabe eu possa me explicar. Estou falando de algo que me soa essencial, que por vezes justifica a vida de seu autor. Uma frase que permaneceu, um ensaio redescoberto, um retrato oculto sob a tela, os versos que sobreviveram ao naufrágio, o livro retirado do limbo. É como se mãos invisíveis unissem arte e filosofia, filosofia e arte, para que o canto silenciado ou anônimo possa um dia se erguer em sua plenitude. Que novos resgates e descobertas sejam feitas em favor das causas justas. Seja onde for, seja como for. Que todas as vozes desconhecidas, obscuras ou amordaçadas, de existências já cumpridas ou ainda a cumprir, possam desafiar o tempo impassível e ressurgir em sua mensagem mais bela. Que elas, por outras vozes ou outros olhares, tenham a possibilidade de simplesmente ser e deixar refletir. Quem conhece o solo slide da canção desesperançada “Não adianta”, em que Zeca Baleiro faz renascer Sérgio Sampaio, sabe bem do que eu estou falando…