Dando continuidade à lista de metas válidas para a ética que delimitam, umas, os excessos de outras:
6) Preocupação com os meios: Como vimos, muitas das metas da ética passam nos testes formais. Contudo, na busca dessas metas, os meios utilizados podem não necessariamente estarem de acordo com esses testes formais. Assim, diminuir o sofrimento é uma meta louvável, mas fazer isso através de causar dano a outros indivíduos não é. Assim, é sempre preferível buscar aliviar sofrimento sem causar danos a ninguém.
Contudo, aqui os filósofos também discordam sobre se essa regra deve ser absoluta e sobre quando é legítimo quebrá-la. Por exemplo, defensores dos direitos dirão que é sempre errado aliviar um sofrimento grande em muitos indivíduos causando um dano (seja lá qual o tamanho do dano) a poucos indivíduos. Por exemplo, parece óbvio que é errado matar um indivíduo para salvar outros. Outros filósofos, mais consequencialistas, dirão que a preocupação imparcial exige que os danos sejam quantificados. Por exemplo, não é tão óbvio que seria errado causar um dano pequeno a poucos (ou mesmo muitos) indivíduos com vistas a aliviar um sofrimento muito maior em muitos outros.
Um exemplo fictício pode ajudar a clarear as coisas aqui: supondo que fosse descoberto que a cura do câncer estaria num remédio feito com cabelos. Para tal, seria preciso toneladas de cabelo, de tal forma que a única maneira disponível fosse obrigar as pessoas a doarem seus cabelos. Os filósofos consequencialistas apontariam, penso eu, que ficar careca é um dano menor do que morrer de câncer, portanto, teríamos obrigação de doar o cabelo – do contrário estaríamos sendo egoístas. Por outro lado, poderia-se objetar que, se o necessário fosse doar uma perna ou um braço talvez a resposta não fosse tão óbvia. Novamente, o que esse exemplo ilustra é que as discordâncias surgem nem tanto com relação a metas totalmente divergentes, mas sobre onde traçar a linha do dano admissível.
7) Direitos: Como vimos, alguns filósofos defendem que certas coisas jamais deveriam ser feitas, de tão ruins que são, mesmo que com isso a conseqüência não traga a maior felicidade nem traga o maior alívio de sofrimento possível para todos os atingidos. Os teóricos dos direitos defendem que certos interesses deveriam ter uma proteção especial, de tão importantes que são, e que não podem ser sacrificados só porque isso diminuiria muito sofrimento de muitos inocentes – como o direito à vida e à integridade física. Os teóricos utilitaristas, ao contrário do que comumente se coloca, não precisam rejeitar por completo a idéia de direitos, pois, pode ser que a maior felicidade/diminuição de sofrimento seja alcançada, em longo prazo, se certas coisas que, aparentemente trariam maior felicidade em curto prazo, forem proibidas. Por exemplo, manter a idéia de um direito à vida pode incentivar os cientistas a buscarem novas formas de curarem doenças sem que tenham de matar ninguém para chegar nisso.
Nessa mesma linha, alguns defendem que temos direito também a outras coisas, como em terem cumpridas as promessas que nos foram feitas ou em receber a verdade. Por exemplo, supondo que conheçamos um caso de alguém que diz amar a esposa, mas, na verdade, está apenas a usando para conseguir dinheiro. Pode ser que sua esposa fosse mais feliz se nunca soubesse que aquele que ela ama e diz corresponder esse sentimento, na verdade, está mentindo. Contudo, alguns teóricos dos direitos diriam que tal pessoa tem o direito moral de saber a verdade, mesmo que isso a faça sofrer muito. Vale lembrar aqui que os utilitaristas diriam que, se realmente estamos preocupados com ela, e sabemos que dizer a verdade poderia até matá-la ou deixá-la louca, então seria melhor não dizer a verdade. Mais uma vez, aqui, a discussão parece depender da quantidade de dano tolerada por se dizer a verdade.
Direitos morais e direitos legais: Até agora falamos de direitos morais (direitos que existem independentemente de leis). Pode ser que determinados direitos morais não estejam positivados na forma de lei, e que determinadas leis não sejam direitos morais (ou não sejam nem éticas). Contudo, pode ser que direitos morais sejam utilizados como justificativa para a criação de direitos legais. Por exemplo, poderíamos dizer que, se é válida uma idéia como o direito moral à vida de todos os pacientes de uma decisão, então são esses pacientes que portam esses direitos; e os portam independentemente do que pensam os outros agentes. Assim, se conclui que é legítimo existir uma lei obrigando todos os agentes a cumprirem tal direito, pois seria violar a imparcialidade se déssemos mais peso ao interesse do agente em violar tal direito (ou, ao nosso interesse em não obrigar os outros a cumprir os princípios éticos) do que à proteção do interesse que é base para a existência de tal direito. Assim, por exemplo, não faz sentido dizer que “reconheço que animais não-humanos tem direitos morais, mas sou contra existir uma lei que obrigue as pessoas a pararem de comê-los porque é sempre errado impedir os humanos de realizarem suas preferências”. Se é dito isso, não se reconhece os direitos morais, nem se está sendo imparcial (pois dá mais peso ao interesse injustificável dos humanos).
8) Justiça: Como vimos anteriormente, essa meta diz respeito a eqüidade, e está no cerne da ética, pois pode ser derivada diretamente da exigência de imparcialidade. O fomento da justiça pode ser dividido em: (a) Distributiva: quando há certa quantidade de benefícios (ou danos) a serem distribuídos. Pode parecer estranho a justiça mandar distribuir danos, mas é que existem algumas decisões onde todas as opções disponíveis inevitavelmente danam alguém. (b) Retributiva: onde a preocupação com a justiça dependerá do merecimento dos que serão atingidos pela decisão. Daí vêm a idéia de, por exemplo, recompensar alguém que fez algum bem para além do que era devido, e punir com o impedimento da liberdade corporal (prender) alguém que, com seu movimento, causa danos a outros. (c) Restitutiva: quando trata de restabelecer benefícios que foram perdidos. Essa última vertente é similar ao princípio da restituição de beneficência, com a diferença que a preocupação maior aqui é com como fazer isso eqüitativamente.
9) Relação x imparcialidade: A maioria dos pensadores da ética concorda que devemos ter uma preocupação com a imparcialidade, mas concorda também que as relações especiais (por exemplo, familiares e de amizade) são coisas muito importantes na vida. O que discordam é o quanto de peso deve ter cada preocupação. Do lado das relações pessoais, pode-se apontar que aquele que tem uma preocupação excessiva em tratar por igual todos indivíduos afetados pela sua decisão, e que por isso deixa de se dedicar para sua família ou amigos, não está agindo bem – como apontam algumas feministas da ética do cuidado. Contudo, do lado da imparcialidade, podemos dizer também que aquele que favorece alguém, em um concurso público, só porque é seu parente, comete uma injustiça. Ainda, do lado da imparcialidade, muitos pensadores apontariam que aquele que compra coisas para os familiares além do que necessitam ou dedica tempo demais para si ou para os que mantém uma relação especial, enquanto poderia ajudar indivíduos que morrem de fome com tal tempo e tal dinheiro, também não age bem – como diriam os utilitaristas. A grande pergunta é então buscar um meio termo, sobre o quanto se dedicar às relações pessoais e o quanto se dedicar à imparcialidade.
10)Altruísmo x preocupação consigo: Vimos que, no cerne da ética, está o bem do outro, haja visto que o egoísmo trata interesses semelhantes com consideração diferenciada, por isso não pode estar correto. Contudo, uma preocupação legítima é “o quanto devo me dedicar para os outros?”. Aqui também, uma resposta exata é sempre difícil de ser dada, mas podemos traçar alguns extremos. Se alguém se dedica tanto para os outros a ponto de causar mais dano a si mesmo do que beneficiar os outros, está fazendo algo que está para além do seu dever (sendo, portanto, um ato heróico, supererrogatório). Por outro lado, aquele que se nega a pedir socorro aos bombeiros enquanto vê uma casa em chamas também está exagerando ao extremo sua falta de preocupação com os outros. Os filósofos utilitaristas têm, ao longo das décadas, sustentado a tese de que o padrão geral atual da maioria das pessoas é demasiadamente preocupado consigo mesmo, pois nos damos ao luxo de gastarmos muito com coisas das quais não necessitamos realmente ou gastarmos tempo demais com a preocupação conosco quando existem indivíduos que estão em situação de miséria absoluta e sofrimento absoluto das quais poderíamos, com pouco custo, diminuir drasticamente.
11) Fomento de sentimentos morais (compaixão, bondade, etc.). Essa categoria não é exatamente um conteúdo para a moralidade, mas sim, virtudes que podem facilitar o cumprimento dos conteúdos do que a ética prescreve. Alguém que conhece racionalmente os conteúdos da moralidade, mas não possui tais sentimentos, pode ter maior dificuldade em realizar tais conteúdos, embora, alguém que consiga realizar tais conteúdos sem ter tais sentimentos possua uma força moral maior ainda. Pode acontecer também que um sentimento vá contra o que o raciocínio aparentemente prescreve fazer. Pode ser que o sentimento seja um preconceito, mas pode ser que o sentimento revele, no final da análise minuciosa racional, que era o raciocínio anterior que estava movido por preconceitos.
12) Fomentar o uso do raciocínio ético. Como vimos acima, o raciocínio crítico é essencial para compreendermos o que a ética prescreve e para não cairmos em preconceitos, falácias, distorções, etc. Aqui, no entanto, o fomento do raciocínio aparece também como uma virtude, pois como o raciocínio ético está fundado na imparcialidade, e como nossos sentimentos dificilmente são imparciais (tendemos, por exemplo, a ter mais compaixão por determinados seres em detrimento de outros), o fomento do raciocínio pode denunciar que há problemas éticos graves onde o sentimento ainda não percebeu. Pode também mostrar que é possível causar mal a alguém mesmo que estejamos movidos pelos melhores sentimentos, o que deve ser um sinal de alerta.
Com a coluna de hoje terminamos a longa exposição sobre as características centrais de um raciocínio ético. Trabalhamos muitos conceitos e talvez alguns deles sejam um pouco complicados, então talvez ler novamente do início até aqui ajude a clarear as coisas e facilite o entendimento do que virá depois. Na próxima coluna daremos início à parte prática: analisaremos alguns argumentos comumente utilizados contra a idéia de igualdade para os animais não-humanos.
Até lá!