EnglishEspañolPortuguês

DESASTRE

Secas extremas seguidas de chuvas torrenciais: o ciclo vicioso provocado pelas alterações climáticas

Antes de uma parte do país se ter afundado sob estas “monções em esteróides”, como lhes chamou António Guterres, o Paquistão enfrentou uma violenta vaga de calor, que também atingiu a vizinha Índia

6 de setembro de 2022
10 min. de leitura
A-
A+
Ouça esta matéria:
Foto: Ilustração | Pexels

As inundações no Paquistão deixaram um terço do país debaixo de água, segundo disse o ministro paquistanês dos Negócios Estrangeiros. As vítimas mortais, numa contabilidade por baixo, já ultrapassaram as 1.200. Fazem-se contas a uns 15 mil feridos, mais de 200 mil casas destruídas, para cima de 6,4 milhões de pessoas afetadas de forma crítica – nomeadamente desalojados -, num total de mais de 33 milhões de pessoas cujas vidas foram perturbadas pelas chuvadas sem precedentes na história recente e pelas enxurradas que têm arrasado tudo no seu caminho: casas, estradas, pontes, pastos, negócios, campos agrícolas e gado.

Há milhões de pessoas sem acesso a comida, medicamentos e água potável e centenas de localidades isoladas do mundo sem ter sequer acesso a uma linha de telefone ou rede de telemóvel – um facto faz temer que as estimativas de vítimas possam estar subavaliadas.

Além da necessidade de acudir à emergência imediata – enterrar os mortos, cuidar dos feridos, garantir comida, água potável e medicamentos, assegurar teto aos que o não têm -, haverá um longo caminho a percorrer após esta catástrofe, que começou a desenhar-se em junho com o início da época das monções. Não se trata apenas de reerguer habitações, negócios, fábricas, pontes, estradas, aldeias e cidades, mas também de garantir acesso a comida em localidades que viram o gado afogar-se e as plantações serem dizimadas pela fúria das águas e da lama. A perspectiva de um período de fome no futuro próximo é a ameaça mais imediata sobre as populações afetadas pelas chuvas neste país de 230 milhões de habitantes.

Antes de uma parte do país se ter afundado sob estas “monções em esteróides”, como lhes chamou António Guterres, o Paquistão enfrentou uma violenta vaga de calor, que também atingiu a vizinha Índia. Entre março e abril as temperaturas na Índia quebraram recordes que remontavam a 1901. No Paquistão, o calor chegou subitamente – e mais cedo do que era suposto. As temperaturas subiram para valores acima dos 40ºC, entre 6ºC e 7ºC acima das médias para a época, e a chuva de primavera praticamente não caiu. “Este é um fenómeno climatérico estranho que fez desaparecer completamente a primavera no Paquistão”, constatou então a ministra para as Alterações Climáticas.

A vaga de calor e a seca de março/abril foram o primeiro golpe do ano sobre a produção agrícola de vastas regiões do país, secando culturas e matando animais. Muito do que se salvou da seca da primavera acabou por ser levado pelas enxurradas do verão.

Secas e enxurradas: o ciclo de destruição          Imagem: Filipe Santos Costa

A combinação de seca extrema, seguida de chuvas diluvianas e enxurradas destrutivas não é um exclusivo do Paquistão e tem-se verificado um pouco por todo o mundo. Sobretudo tem-se verificado com mais frequência do que era suposto acontecer com este tipo de fenómenos extremos.

Segundo os especialistas, o calor extremo e a chuva extrema estão diretamente relacionados e ambos são alimentados pelas alterações climáticas. As vagas de calor por todo o mundo estão a acontecer com mais frequência do que alguma vez foi registrado, fazendo aumentar a evaporação de água, tanto nos oceanos como na terra. Mas como uma atmosfera mais quente permite uma maior concentração de humidade, o vapor de água acumula-se mais, até ao momento em que cai violentamente na forma de fortes chuvadas. Ora, como a terra está demasiado seca não absorve a água e esta corre em enxurradas violentas. E o ciclo vicioso continua…

No caso concreto do Paquistão, estará a sofrer as consequências do aumento das temperaturas no sul da Ásia – atingindo até 50ºC – e o aumento da temperatura do Índico, provocando as tais “moções em esteróides” de que falou Guterres: apenas em agosto caiu sobre o país três vezes mais chuva do que a média dos últimos 30 anos. Sindh, a província mais afetada, com uma população de 50 milhões, registou 466% mais chuva do que a média das últimas três décadas.

Este ano está a acontecer o mesmo fenómeno noutros pontos da Ásia e da América do Norte. Veja-se o Texas, nos EUA. Depois da seca nos primeiros meses do ano, Dallas registou um dilúvio em julho que fez cair 25 cm de chuva num único dia. A terra não foi capaz de absorver tanta água em tão pouco tempo. Até julho, mais de metade do estado do Texas estava em seca extrema – o algodão morreu nos campos e inúmeros produtores de gado tiveram de matar todos ou parte dos seus animais por não os conseguirem alimentar. A área em torno de Dallas estava completamente seca há mais de três meses, com o solo a mostrar aquele aspecto duro e rachado, de barro completamente ressequido. Este é o cenário perfeito para inundações repentinas e enxurradas – foi exatamente o que aconteceu em julho.

Segundo a Reuters, citando dados das autoridades norte-americanas, houve outras quatro grandes inundações repentinas nos Estados Unidos desde Julho – no Kentucky, no leste do Illinois, no Vale da Morte (deserto da Califórnia) e na cidade de St. Louis, no Missouri. Cada um destes casos registou chuva suficiente para ser considerado um evento de uma vez em 1000 anos, segundo as tendências históricas.

Esta semana, chuvas inesperadas também fizeram transbordar o Rio Mississipi, tendo as autoridades locais alertado muitas populações para que evacuem diversas localidades – mas este é um fenómeno diferente, em que o leito do rio vai subindo até transbordar, e essa evolução pode ser monitorizada e as consequências podem ser previstas e as populações alertadas. O problema das chuvas torrenciais sobre territórios que estavam em seca extrema é a sua imprevisibilidade e violência no espaço de muito poucas horas, tornando quase impossível minorar as suas consequências.

China: depois da seca… o medo de inundações. Foto: Felipe Santos Costa

As autoridades chinesas, a braços com uma seca que atinge boa parte do país com enorme severidade, já se estão a preparar para a possibilidade de grandes chuvas que possam provocar enxurradas que agravem ainda mais a situação de emergência que se vive em grande parte do país, sobretudo a sul. Dezenas de pequenos e médios rios já desapareceram este verão e o maior rio do país, o Yangtzé, está no nível mais baixo alguma vez registrado.

As consequências estão a fazer-se sentir nas regiões próximas do Vale do Yangtzé, com a destruição de produções agrícolas e de pecuária, mas fazem-se sentir em boa parte da China até Xangai, pois o Yangtzé alimenta uma grande rede de barragens que produzem energia elétrica que chega a diversos pontos do país. Sem água, as centrais hidroelétricas não funcionam; sem eletricidade, as fábricas fecham e as famílias veem o seu consumo de energia afetado, precisamente quando mais precisam de ligar ventoinhas e ar condicionado para enfrentar a vaga de calor. Foi este o retrato da vida em várias províncias da China ao longo do mês de agosto, com a atividade industrial suspensa, racionamento de eletricidade, luzes de espaços públicos desligadas até no famoso skyline do Bund, em Xangai. As regiões industriais de Sichuan e Chongqing, no Sul da China, foram as mais afetadas – Chongqing continua sem permitir que as fábricas funcionem. A paragem da indústria pode ter consequências nas cadeias de produção globais de automóveis, telemóveis e computadores.

Porém, esta pode ser apenas uma parte da história. As autoridades chinesas já temem a parte que pode vir a seguir e estão a alertar milhares de pessoas para que sejam deslocadas assim que comecem as chuvas de fim de verão e de outono.

Alguns dos locais que neste momento sofrem com falta de água podem em breve sofrer com água a mais. “Com um clima mais quente, é expectável que os mesmos lugares experimentem tanto inundações como secas”, diz o cientista climático Deepti Singh, da Universidade Estadual de Washington, citado pela Reuters.

Mais de 119 mil pessoas já foram retiradas ou estão prontas para isso em regiões do sudoeste da China que são consideradas em risco de inundação assim que as chuvas comecem a cair com força. E na segunda-feira passada, o ministro chinês da Energia avisou que partes da China vão mesmo “alternar entre secas e inundações”, pedindo vigilância apertada assim que a chuva comece – os maiores receios são sobre as margens e os leitos dos rios ressequidos, que serão incapazes de absorver chuva intensa. Ao mesmo tempo que alertou para o risco de cheias e enxurradas, o ministro da Energia avisou as autoridades locais que devem ter capacidade de armazenar a água da chuva para precaver futuras secas e para ajudar a aliviar a seca noutras partes do país.

Portugal também não é alheio a este ciclo: períodos de pouca ou nenhuma chuva, que deixam a terra ressequida e incapaz de absorver a água, e é como se todo o território estivesse coberto de alcatrão impermeável, como acontece nas ruas das cidades. Depois, chuvas intensas que se transformam em correntes, como se fossem rios de água e lama. Muitas vezes com a agravante de a época de calor ter possibilitado fogos que desflorestaram boa parte do território, acentuando ainda mais o impacto das chuva excessiva e das enxurradas instantâneas.

Um ciclo, dizem os cientistas, irá continuar a acontecer, possivelmente com mais intensidade e mais frequência, devido ao aquecimento global.

O azar do Paquistão. Foto: Felipe Santos Costa

O caso do Paquistão é particularmente notável, pois o país é um dos mais afetados pelas alterações climáticas apesar de pouco contribuir para o aquecimento global. Segundo dados citados pela CNN Internacional, o Paquistão contribui com a emissão de apenas 1% dos gases responsáveis pelo aquecimento do planeta mas está em oitavo lugar na lista dos países mais fustigados por fenómenos climatéricos extremos. O Global Climate Risk Index analisou o impacto das alterações climáticas em todos os países, entre 2000 e 2019, e concluiu que Porto Rico é o país mais castigado por esta nova realidade, seguido de Myanmar, Haiti e as Filipinas. Moçambique surge em quinto lugar, seguindo-se as Bahamas e o Bangladesh. O Paquistão é o oitavo país mais afetado e o top dez fica fechado com a Tailândia e o Nepal.

A recuperação do Paquistão pode demorar anos e necessitará de verbas que as autoridades estimam em 10 mil milhões de dólares – se, entretanto, não ocorrerem mais fenómenos extremos que causem mais danos.

A questão é: quem deve pagar a conta do dano causado por alterações climáticas para as quais o país quase não contribuiu? “Vemos consistentemente devastação climática na forma de inundações, monções, secas extensas, ondas de calor extremas. E, francamente, o povo do Paquistão, os cidadãos do Paquistão, estão a pagar o preço nas suas vidas, no seu sustento, pela industrialização dos países ricos que resultou nesta mudança climática”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros paquistanês, Bilawal Bhutto Zardari, à CNN Internacional.

Como se as chuvas intensas não bastassem, o Paquistão está a braços com outro fenómeno, igualmente provocado pelo aquecimento global: o degelo de glaciares.

O Paquistão é país do mundo com mais glaciares fora das regiões polares, mas conforme o clima aquece, e os glaciares derretem, mais provável é a queda de grandes quantidades de gelo, que se transforma numa “explosão” de água capaz de levar tudo à sua frente. O principal responsável da agência meteorológica do país advertiu que, só este ano, o Paquistão assistiu ao triplo da quantidade habitual de explosões de lagos glaciares – uma súbita libertação de água de um lago alimentado pelo degelo dos glaciares – que pode causar inundações catastróficas.

“Estes incidentes ocorrem após os glaciares derreterem, devido ao aumento da temperatura”, disse Sardar Sarfaraz à Reuters, acrescentando: “As alterações climáticas são a razão básica disto”.

Fonte: CNN

Você viu?

Ir para o topo