O Instituto Royal judiou dos cães e subestimou os humanos. Deu no que deu: de ativistas de direitos dos animais até os black blocs passando por atrizes e donos de canis, o apoio foi imenso à “ação direta” dos que resgataram os beagles, lá em São Roque, pertinho aqui de São Paulo. De quebra, coelhos e outros bichos lá do Instituto também foram levados. A polícia brasileira, educada para se interessar primeiro na proteção da propriedade material e só depois na vida, também estava lá. Empurrou, machucou e criou confusão. Aí teve de se ver com os mascarados, que completaram o serviço de repúdio à crueldade.
Uma classe média simpática aos bichos, mas também simpática à TV quando esta diz que os black bloc são vândalos, fez o mesmo que os professores cariocas: mudou de opinião em relação aos mascarados. Começou a tomá-los por parceiros, e não como “infiltrados”.
No entanto, na casa dos conservadores militantes, os de sempre, onde em geral até há algum cachorro, e bem tratado, a temperatura aumentou. Quem viu de perto conta que foi engraçado. Os donos dos cães vociferavam, enquanto que os cães, sorrateiramente, empurravam as crianças da casa para as redes sociais, para também participar da revolução. O que ocorreu lembrou um pouco a velha animação dos Estúdios Disney, sobre os dálmatas. Aliás, não podia ser diferente: mascarados lutando junto com loirinhas para salvar beagles! Quer imaginário melhor que este? Na “sociedade do espetáculo”, às vezes o espetáculo não é só o do dinheiro.
Estão completamente errados os que vieram com aquele papo de sempre. “Hipócritas, por que não salvam os ratos?” Não havia ratos lá. Ou então: “Aposto que nem vegetarianos são, esses militantes”. Ora, ninguém foi tirar os beagles de lá por causa de alguma ameaça de um chinês comedor de cachorro! Cada luta tem o seu tempo porque cada emoção, que é o combustível, tem sua cota.
Mas, alguns dos tais conservadores (sim, os de sempre, eu já disse), voltaram com os argumentos caducos: “Obscurantistas, querem parar a ciência”. Eis aí a confusão: tomam tecnologia por ciência. O que se faz nesses laboratórios é apenas alimento para reiteração de tecnologia. Agora, ciência, na verdade, se faz pouco.
A ciência avança pouco quando comandada pelo desejo de dinheiro que se quer ganhar no curto prazo, ela avança mais por meio de pressão popular, necessidades éticas e aleatoriedade. A ânsia por lucro no curto prazo tem a ver antes com a tecnologia que com a ciência. Os laboratórios testam ingredientes para produtos do mercado, que pouco tem a ver com benefício humano, mas, na maioria das vezes, com indução de consumo banal. Quando são pressionados positiva ou negativamente pela ética, materializada na vontade popular, aí sim entram na jogada os cientistas. Estes, diferentemente dos tecnólogos de laboratório, atuam na universidade e começam a fazer pesquisa de como desenvolver pesquisa. Pesquisam no campo da ciência para que a pesquisa no campo tecnológico responda à pressão popular e à ética (foi assim no caso das células-tronco, recentemente). Descobrem e inventam modos de fazer pesquisa menos agressiva, ao menos aos olhos da população. E também, no processo aleatório, criam subprodutos que, enfim, às vezes até se tornam grande fonte de lucro (o Viagra não nos deixa mentir). Por isso, os cientistas autênticos não reclamam da pressão ética e popular, eles a aproveitam para mudar, para fazer a ciência avançar.
Alguns industriais ficam bravos com esses cientistas, digamos assim, menos voltados para o campo produtivo imediato. Mas, depois percebem que o que deixaram de ganhar no curto prazo é mil vezes recompensado no prazo médio. Desse modo, eles vão às universidades buscar os resultados. Então, logo que conseguem reformular a tecnologia, adotam o novo e correm para cima dos políticos, de modo que estes transformem o novo em lei. Com isso, eliminam a concorrência dos que não acompanharam o novo. Nasce então uma lei do tipo: é proibido testes laboratoriais com beagles, que derruba os que não buscaram o novo. Claro! A essa altura, proibir seria desnecessário, pois já se tem uma prática melhor e mais lucrativa até, mas a proibição vem para derrubar de vez os que não puderam ou não quiseram investir no novo. Algumas empresas podem então posar de “Empresa amiga dos beagles”. Quer coisa melhor? Ser amiga do cachorrinho do Charlie Brown? Elas também podem, nesse mesmo momento, continuar matando labradores, mas os beagles ganharam proteção em forma da lei.
É assim que nosso mundo tem girado: leis trabalhistas funcionam no Ocidente, mas o Ocidente compra produtos da China, que são mais baratos porque lá não há lei trabalhista nenhuma, o que há é o trabalho praticamente escravo de crianças. Ora, se existe trabalho que degrada a criança na China, eu posso tentar, aqui, boicotar o produto chinês. Mas não vou nunca, se não sou um idiota, dizer: “vamos tirar os direitos trabalhistas daqui para que nossa indústria se torne mais competitiva e derrube a da China”. Há tonto que pensa assim. Mas há sindicato e consciência política para barrar esse tonto.
Do mesmo modo, não temos que lamentar só conseguir uma lei de proteção para beagles. Não temos que dizer: “ah, vamos revogar essa lei que protege beagles porque as empresas continuam colocando os laboratórios para judiar de labradores”. Nada disso. Fazemos diferente. Dizemos: “agora vamos começar a luta pelos labradores”. Do mesmo modo que dizemos: “agora vamos convencer os chineses a viverem em democracia, e aí eles terão de colocar direitos trabalhistas também lá, e então a competitividade internacional pode se reestabelecer”. Esse pensamento é o correto. E ele se faz na articulação com as chances – como a chance dada pelo Royal.
A revolução dos beagles, no final de semana que passou, teve muitos heróis. Integrou gente que pensava diferente. Deu oportunidade, inclusive, de conversarmos não só a respeito de direitos dos animais, mas também de como não podemos abrir mão de direitos humanos se queremos defender direitos dos animais. Proporcionou à classe média o experimento com a técnica da “ação direta”. Além disso, mobilizou jovens por uma causa nobre, que é a diminuição do sofrimento. E principalmente, trouxe os beagles para uma vida melhor.
Todos que participaram positivamente saíram do episódio melhor do que entraram. Agora, é enfrentar a raiva, e até a inveja, de quem não participou. Pois há o conservador empedernido, que é contra tudo que implique na expressão “ser feliz”. Mas há também aquele que até seria a favor, caso ele fosse o líder. Como não houve líder, ele fica mais bravo do que o próprio conservador.
Fonte: Ig