Por Paula Brügger (da Redação)
É difícil rebater, ponto a ponto, todas as falácias e impropriedades apresentadas em uma matéria publicada na revista Galileu sem escrever um longo texto. Mas podemos começar pelo próprio título – “Vegetarianos fazem mal ao meio ambiente” (leia aqui a reportagem da Galileu) – que revela o viés maniqueísta e sensacionalista, característico da chamada imprensa marrom, que permeia o conteúdo da matéria, e me faz lembrar manchetes famosas como “Cachorro faz mal à moça!”.
O autor, ou responsável pela matéria publicada em setembro deste ano, o pesquisador Donal Murphy-Bokern, comete, já de início, o erro de não citar a referência bibliográfica do estudo que usa para fazer a afirmação extremamente polêmica de que uma dieta que se situa mais próxima do topo da cadeia trófica – isto é, que inclui carne – é mais sustentável do que as dietas que se encontram na base da cadeia, ou seja, as dietas vegetarianas. Tal afirmação viola os mais básicos preceitos ecológicos e termodinâmicos que postulam que, quanto mais nos distanciamos da base de uma cadeia trófica, menor é a disponibilidade energética, já que a fonte primeira de energia para garantir a perpetuação de todas as formas de vida no planeta – em ecossistemas terrestres ou aquáticos – é a fotossíntese. Além de não citar a fonte do estudo que embasa a problemática conclusão sobre a sustentabilidade das dietas, a matéria faz também alusões genéricas do tipo “se todos os cidadãos do país deixassem de comer carne hoje, o ecossistema entraria em colapso”. Resta saber a que “ecossistema” se faz referência e quais seriam os tipos de colapso, já que estes podem ser os mais variados. A matéria também peca ao não esclarecer ao leitor que qualquer hábito de consumo, interrompido de forma abrupta, provocaria algum tipo de dano, social ou ambiental, haja vista o complexo grau de interconexões e interdependências de todos os tipos em nosso mundo globalizado.
Mas o texto contém muitas outras afirmações bastante questionáveis, ou sem embasamento algum. Algumas delas são: os vegetarianos substituem alimentos de origem animal por soja e lentilha (ou outros produtos importados, ou de alto custo ambiental); os substitutos da carne – como o tofu – são altamente industrializados, e isso demanda uma grande quantidade de energia; o tofu não é mais “verde” do que um prato de churrasco etc. Vários problemas podem ser detectados aqui. O primeiro é afirmar que os vegetarianos, genericamente falando, optam pelos substitutos citados pelo autor, ou que sempre escolhem substitutos com alto custo ambiental (como os não produzidos localmente), coisa que simplesmente não procede. O leque de opções para uma dieta vegetariana ou vegana saudável é muito amplo, o que desqualifica tal argumento. O segundo é generalizar uma questão supostamente verdadeira no contexto inglês ou britânico, como uma verdade universal, e daí afirmar que os vegetarianos fazem mal ao meio ambiente e são prejudiciais ao planeta! O autor se refere, também, à proteína de soja e ao tofu como se fossem a mesma coisa, além de praticamente reduzir os problemas ambientais à emissão de gases do efeito estufa, uma abordagem mecanicista e parcial. Mas há ainda uma afirmação no mínimo intrigante: a de que “a fabricação de proteína de soja consome mais energia do que a transformação de carne bovina em hambúrguer”. Quando li esta frase imaginei que estivesse havendo um problema de redação (ou será uma “pegadinha”?) uma vez que esta é uma afirmação óbvia: é lógico que partindo da carne bovina, como matéria prima (sic), a fabricação de um hambúrguer demandaria pouquíssima energia, pois envolveria, basicamente, apenas a quantidade de energia necessária para movimentar uma máquina de moer. Aliás, esse processo poderia ser feito até de forma manual, movida por uma fonte renovável: ATP! Será que foi isso mesmo que quiseram dizer com a frase? Entretanto, o processo produtivo até chegar à matéria-prima “carne bovina” (re-sic), gerador de tantas e tão bem documentadas externalidades e desperdícios de recursos naturais e energia, não foi levado em conta na argumentação do autor.
É lamentável que sejam ignorados, na matéria em questão, inúmeros estudos recentes, de grande envergadura, que comprovam os gigantescos impactos decorrentes da pecuária, tais como o Livestock´s Long Shadow – environmental issues and options, publicado pela FAO, em 2006; o Livestock and Climate Change, de Robert Goodland e Jeff Anhang, de 2009; o Global Biodiversity Outlook 3 (GBO-3), de 2010; e um interessante estudo da UNEP, também de 2010, intitulado Assessing the Environmental Impacts of Consumption and Production: Priority Products and Materials, que recomenda a adoção de uma dieta essencialmente vegana (p. 82), para diminuir o impacto ambiental. Mesmo o GBO-3, que trata, em tese, apenas de biodiversidade, recomenda, na p. 85, níveis mais moderados de consumo de carne. Estarão os autores e organizadores de todos esses estudos errados? É uma lástima que o autor do texto e os responsáveis pela matéria tenham perdido a oportunidade de – no Ano Internacional da Biodiversidade, 2010 – apresentar dados que apontam a pecuária como um dos principais vetores de perda e degradação de habitats, que são as principais causas de perda de biodiversidade, e de incontáveis outras catástrofes ambientais e sociais.
O texto, ao contrário de prestar essas valiosas informações, promove uma das principais miopias ecológicas que caracterizam a ideologia da sociedade industrial: a tese da “escassez tecnológica”, uma ideia que está diretamente ligada à afirmação da superioridade da técnica sobre a ética e à falácia de que a tecnologia pode resolver os graves problemas sociais, éticos e ambientais que temos hoje em escala global. Mais importante do que investir em tecnologia para reduzir a emissão de gases do efeito estufa ao longo de um processo produtivo, que é um problema entre tantos outros que envolvem a chamada “sustentabilidade”, é aceitar os limites da biosfera, sobretudo no que diz respeito à sua parte senciente: animais e gente!
O conhecimento que temos no âmbito da Agroecologia, entre outras áreas, é mais do que suficiente para que tenhamos informações bastante precisas sobre a sustentabilidade de um produto: se ele é energointensivo ou não; qual seu conteúdo de água virtual; que aspectos éticos estão implicados numa cadeia produtiva etc. Tal visão sistêmica independe do tipo de produto e tampouco está necessariamente atrelada ao avanço da técnica. Sem entrar no mérito da veracidade da afirmação, também muito polêmica, de que cerca de um quarto da população mundial tem uma dieta predominantemente vegetariana, os avanços da ciência da Nutrição e a Ética nos ensinam que o consumo de produtos de origem animal é uma conduta moralmente repreensível: nenhum avanço técnico poderá justificar a continuação – ou seja, a sustentabilidade no plano ético – da exploração e morte de seres sencientes.
Salvar o planeta depende, sim, do tipo da dieta que adotamos e de muitas outras mudanças de cunho ético. Meios de produção mais sustentáveis são importantes, porém insuficientes para a construção de um mundo melhor.
Finalmente, é fácil entender, ao ler o texto, a razão de haver tão poucos avanços em termos de políticas públicas que visem à sustentabilidade e ao consumo ético: são pessoas como o autor – tecnófilos inveterados – as que ocupam cargos de conselheiros em órgãos que poderiam promover mudanças nessa direção, incentivando novos valores éticos e hábitos de consumo não predatórios.