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Racismo, xenofobia, misantropia e reacionarismo: os “quatro cavaleiros do apocalipse” que tentam sabotar e imobilizar o veganismo

22 de abril de 2015
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Brigitte Bardot, “símbolo” de uma defesa animal manchada pelos “quatro cavaleiros do apocalipse”
Brigitte Bardot, “símbolo” de uma defesa animal manchada pelos “quatro cavaleiros do apocalipse”

Têm “bombado” ultimamente, ao mesmo tempo, notícias sobre projetos de lei estaduais relativos ao sacrifício animal em rituais afrorreligiosos, denúncias de uso de carne de cachorro por chineses em pastelaria carioca, divulgações do malfeito de caçadores ao redor do mundo e discussões sobre os protestos de direita “contra a corrupção” e pelo impeachment ilegal da presidenta Dilma Rousseff. O cruzamento entre esses quatro assuntos está invocando os “quatro cavaleiros do apocalipse” do anti-humanismo de parte da defesa animal: racismo, xenofobia, misantropia e reacionarismo. E nos inspira a pensar sobre as perniciosas consequências desses ódios para o veganismo e a necessidade de politizar e estender a luta abolicionista para que ela inclua todos os animais, incluindo os humanos.
Discussões em alguns grupos do Facebook sobre veganismo têm exibido fortemente essa tendência desses “cavaleiros” de invadir, sabotar e imobilizar o veganismo enquanto corrente ética de respeito à vida senciente. Não é que só estejam começando hoje a existir os quatro mencionados ódios nos corações de muitos vegans. O que ocorre é que neste momento eles estão encontrando oportunidades mais amplas do que havia antes de serem expressados, propagar-se sob a forma de ideologia e investir na crença na “meia libertação” – com animais não humanos sendo libertados mas humanos permanecendo submissos e discriminados.
A questão das tendências racistas na militância contra os sacrifícios animais em rituais afrorreligiosos
Os debates sobre projetos de lei estaduais que visam proibir sacrifícios de animais por religiões de matriz africana têm feito pessoas que dizem defender os animais baterem de frente com o movimento negro. Sob o pretexto da proteção animal, muitos brancos têm dirigido discursos discriminatórios e criminalizadores contra religiões de matriz africana.
O racismo fica evidenciado aí quando muitos opositores do sacrifício animal, entre eles uma boa quantidade de vegans, consideram muito mais chocante e menos aceitável a morte de um animal numa rua ou praça nas mãos de pessoas negras atendendo a um ritual de candomblé do que a de um nas mãos de brancos num abatedouro para um banquete de festividade cristã. Enquanto se abomina a moral interespécie de candomblecistas que sacrificam galinhas numa encruzilhada, a de cristãos que abatem perus e porcos para as ceias de Natal e pescam peixes para as refeições da Semana Santa é mantida intocada e inquestionada.
E não é “apenas” nessa discrepância entre os abates promovidos pelas duas vertentes religiosas que há tendência discriminatória contra a cultura negra. Têm aparecido discursos de ódio racista explícito em muitas notícias sobre as leis de “combate” aos sacrifícios afrorreligiosos. O “amor” aos animais tem sido pretexto para cruéis ofensas contra os Orixás e seus devotos, muitas delas lançando mão de um criminoso etnocentrismo cristão fundamentalista que tacha de “demônios” as divindades de outras religiões.
Como forma de defender ao mesmo tempo a população negra alvo dessa discriminação racista mascarada de animalismo e os animais não humanos, tem-se defendido – e esta é a posição defendida por este artigo – que as pessoas mais qualificadas para discutir a questão ética do abate ritual em religiões afro são pessoas veganas afrorreligiosas. Já há uma ou mais tendências internas de se pregar a dispensa do sacrifício animal nesses rituais, como o Candomblé Verde.
Mas o que tem acontecido é que está sendo ignorado esse poder de pessoas adeptas da crença nos Orixás de modificar elas mesmas, internamente, a relação ético-moral de sua fé com os animais não humanos. Em outras palavras, muitos vegans brancos estão usando de ódio e ética seletiva para “defender os animais” e não estão confiando em pessoas negras afrorreligiosas veganas.
Essa ignorância se soma aos lamentáveis rompantes de ódio que mesclam racismo e intolerância religiosa. A soma disso tudo é que, sob o pretexto da defesa animal, estão promovendo opressão contra a população negra e a criminalização de sua fé.
E quando defensores dos Direitos Humanos – incluídos entre eles integrantes do Movimento Negro – exigem a interrupção desses ataques de intolerância e demandam a problematização dessa seletividade ético-moral que abomina o sacrifício afrorreligioso, ignora o abate de motivação cristã e trata religiões afro com preconceito, vêm as acusações de que estão “defendendo o sacrifício de animais”.
Os acusadores não percebem que estão presos numa errônea lógica dicotômica. É possível sim defender ao mesmo tempo os animais não humanos, a população negra e o direito da mesma a manifestar sua fé. Essa defesa não dilemática será possibilitada pelo diálogo intercultural entre a ética animal e a fé afrorreligiosa e pelo respeito aos afrorreligiosos veganos em seu atributo de pessoas mais capazes de fazer esse diálogo e influenciar uma reforma interna em sua religião.
Do lado branco, o que há a se fazer é reconhecer que parte daquelas pessoas que lutam contra o sacrifício animal nas religiões afro não promovem essa luta por respeito aos animais não humanos, mas sim por intolerância religiosa banhada de racismo. Nessa parcela, estão incluídos, por exemplo, evangélicos fundamentalistas que nunca tiveram uma Semana Santa sem peixe, nem um Natal sem peru ou carne de porco. Também se incluem pessoas que adoram vaquejadas ou rodeios, ou que adoram confraternizar em feriados e fins de ano com churrascos.
Elas não querem que a galinha que seria morta na encruzilhada seja poupada e continue vivendo, mas sim que ela, ao invés, vá para o abatedouro “virar” carne a ser servida na mesa de cristãos. O problema para elas não é que há animais morrendo dolorosamente, mas sim que há pessoas negras praticando uma religião herdada de culturas africanas, distinta do cristianismo ao qual brancos racistas e fundamentalistas gostariam de ver todos os brasileiros se submetendo.
Em poucas palavras, o que cabe aos brancos fazer é desmascarar as intenções racistas, cristocêntricas e não altruístas de muitos opositores dos sacrifícios rituais afrorreligiosos e deixar os vegans adeptos das religiões atacadas agirem.
A onda de ódio contra chineses como repercussão do caso da carne de cachorro apreendida no Rio de Janeiro
Dias atrás, uma pastelaria carioca que emprega chineses foi flagrada comercializando salgados com carne de cachorro. A notícia comoveu defensores e “amantes” de animais em todo o país, afinal, estava acontecendo um inadmissível absurdo para a moral interespécie brasileira vigente, o abate de cães para fins de consumo em pleno Brasil.
Seguiu-se, desde então, uma onda de xenofobia contra chineses. Entre os odientos desejos que podem ser flagrados em comentários de notícias sobre o caso da pastelaria carioca, estão desde a deportação dos matadores de cães até a proibição da imigração de chineses.
A alegação para tamanho ódio é que, na cultura brasileira, cães são “muito estimados” e sua morte com fins de consumo é inadmissível. E enquanto isso, em algumas regiões ou cidades da China, ainda é parte da tradição alimentar comê-los depois de eles serem torturados por métodos como espancamento e fervura viva. Portanto, chineses são vistos como “demônios na Terra”, já que consomem animais tão estimados por brasileiros.
Esquece-se, nessa raivosa – e criminosa – sinofobia, que a cultura brasileira não é nenhum exemplo de ética para com os animais. O Brasil é o país que mais mata bovinos e frangos no mundo, tem cruéis rodeios e vaquejadas entre suas tradições de entretenimento e é um dos países que mais capturam e traficam aves e outros animais silvestres – até por (ainda) ter vastas áreas de floresta –, sem que nada seja feito pelo seu Estado para se desconstruir a cultura de compra e posse literal de animais não humanos.
Ignora-se, nessas horas, que neste exato momento pode haver, por exemplo, estadunidenses “amantes” dos animais desejando que o Brasil seja destruído por um meteorito ou que brasileiros sejam deportados em massa por esses motivos. E da mesma maneira, desconhece-se a ação de vegans chineses contra o consumo de carne de cachorro em sua terra.
Mas isso tem sido negligenciado por muitos vegans, que vão na onda do que Sônia Felipe chama de xenoespecismo – a desigualdade de consideração moral pela qual, por exemplo, a morte de cães espancados e comidos por chineses é mais repudiada do que o abate de bovinos, frangos, peixes, porcos etc. mutilados, confinados e comidos por brasileiros. Deixam de lado princípios basilares do veganismo, como a construção de uma cultura de paz, o desejo convicto pela libertação dos animais de todas as espécies e o próprio combate ao especismo.
Visto isso, a onda xenofóbica tem despertado a necessidade do debate permanente sobre o combate às desigualdades de consideração moral entre seres humanos e entre todos os seres sencientes. Nesse debate, fica claro que a xenofobia é tão eticamente intolerável, destrutiva e opressora quanto o especismo, e que portanto não é nada ético promover ódio contra, por exemplo, seres humanos de outros países com o pretexto de se defender os animais não humanos.
Caçadores de animais não humanos e pessoas desejosas de caçar humanos agressores de não humanos: o alvorecer da misantropia
Em fóruns como o grupo facebookiano Veganismo, tem havido uma outra onda, paralela às duas já descritas acima: a misantropia, praticada e até defendida sob o pretexto de indignação contra as crueldades humanas contra os demais animais. Denúncias como a exposição de caçadores que expõem suas vítimas como troféus têm despertado reações de ódio à humanidade por parte de muitas pessoas.
Declaram ódio a caçadores como se eles fossem impossíveis de serem conscientizados e se arrependerem dos seus erros. Ódio a pecuaristas, pescadores e onívoros (quase) em geral como se eles não pudessem vivenciar uma mudança de mente e coração e reconhecer que os animais não são seres “escravizáveis”. Ódio a quem reluta em aderir ao veganismo. Defendem linchamento e morte contra essas pessoas, ao invés de imergi-las num processo de conscientização ética.
Já comentei, em um artigo de uns anos atrás, que o ódio misantrópico é uma ameaça ao vegano-abolicionismo, nunca uma contribuição positiva. Ele descarta a necessidade de se refutar a crença de que a “natureza humana” é cruel e maligna. Rejeita que o ser humano pode receber uma educação ético-moral e, a partir dela, desconstruir moralidades violentas e excludentes.
A partir dessa negação ao poder da educação, os misantropos acreditam que a humanidade “não tem jeito”, é um “câncer” para o planeta e por isso deveria desaparecer. Nas opiniões advindas dessa “consciência” anti-humanista, não são de surpreender a descrença na libertação humana e a recorrência de múltiplos preconceitos, como a xenofobia, o racismo, o machismo, a intolerância religiosa e o elitismo.
Vale perceber, aliás, que esse ódio misantrópico é espertamente seletivo. O misantropo não declara a seus pais, filhos e amigos a aversão que manifesta contra a espécie humana que generaliza como “imprestável”. Tampouco considera a si mesmo um dos seres humanos a serem odiados pela misantropia e condenados à extinção. Como diz Sandro Friedland:
O misantropo é a pessoa que se divorciou da humanidade (e por consequência, de sua própria humanidade). Acredita que a humanidade está perdida, não tem jeito, é inerentemente má (com exceção dele, o misantropo, é claro). Por ele, a humanidade deveria ser extinta (com exceção dele próprio novamente, o que o torna na verdade um orgulhoso). A acredita que é o único “de bem”, defensor dos animais, contra todo o resto da humanidade que não coloca os animais dentro do círculo de preocupação exclusiva e máxima (nisso ele inclui também os veganos que se preocupam com a interseccionalidade – que para o misantropo, estão lá pra ‘manchar’ o veganismo com preocupações humanas mundanas.)
Por negar a possibilidade de educar, politizar e libertar os seres humanos da ideologia especista e carnista, a misantropia promove um grave desserviço ao vegano-abolicionismo. Aliena o veganismo de sua qualidade de consciência ética em expansão e dotada do objetivo de libertar os animais através de meios como a conscientização de seres humanos.
Engessa assim a expansão do vegano-abolicionismo e desencoraja ações políticas empreendidas por pessoas reconhecidamente éticas. Em resumo, perpetua a ordem moral de exploração animal e aumenta a carga de ódio, opressão e sofrimento no mundo.
 Vai uma coxinha vegana? O reacionarismo de vegans que querem o fim da exploração animal mas não se importam com a opressão de humanos por humanos
Os três ódios acima mencionados andam de mãos dadas com o reacionarismo, a ideologia que mescla aspectos de várias correntes de “pensamento” de direita e os combina com ódio a minorias políticas e fanatização da convicção político-ideológica. Assim como os outros três, o reacionarismo tem ferido, com seus afiados e enormes espinhos, a consciência ética vegana e a luta abolicionista.
Tem sido manifestado quando, por exemplo, alguns vegans se submetem à credulidade em tudo o que formadores de opinião conservadores dizem sobre a esquerda brasileira, se opõem a políticas afirmativas de inclusão de minorias políticas, defendem o autoritarismo como “solução” para diversos problemas nacionais etc.
Um artigo escrito há alguns anos exemplifica como a convicção ideológica reacionária implode o veganismo como conjunto de práticas éticas. Na mentalidade do vegan reacionário, o especismo é substituído por racismo (velado ou explícito), elitismo, heterossexismo, machismo e misoginia, transfobia, intolerância contra minorias (ir)religiosas etc. O mesmo indivíduo acaba se limitando muito em sua defesa dos animais não humanos.
A partir daí surgem excrescências como a defesa da substituição de cobaias não humanas por presidiários humanos em testes cruéis de produtos industrializados – ao invés de se defender a abolição desse tipo de experimento –, frases como “Prefiro bicho a gente” – o que escancara o casamento entre reacionarismo e misantropia –, o apoio acrítico a um mercado “pró-vegano” que explora cruelmente seres humanos etc.
O que advém disso é um veganismo meramente de não agressão, pelo qual o indivíduo se preocupa apenas em não participar do sistema de exploração animal não humana, não se engajando suficientemente no enfrentamento e desmonte desse sistema.
É um veganismo incapaz de problematizar, por exemplo, a contribuição do capitalismo na radicalização da exploração animal, as íntimas ligações entre escravidão animal e submissão de humanos a trabalho degradante, elos igualmente íntimos entre a cultura rural do latifúndio opressor e o uso de animais como propriedade humana e a incapacidade do veganismo capitalista de transformar radicalmente a ética vigente.
É inábil também em alcançar a maioria pobre da população, já que defende um hábito de consumo acessível quase que somente às classes média a alta. Motiva, inclusive, os movimentos de esquerda a terem um pé atrás perante o veganismo, por seu suposto elitismo. E sobretudo, “prova” que um hipotético mundo vegano futuro não necessariamente seria um mundo livre de exploração, opressão e coisificação contra os mais vulneráveis.
Por isso tudo, fica evidente que juntar veganismo com mentalidade reacionária é estragar a ética vegana, torná-la inócua perante o ideal da libertação animal, retirar-lhe o atributo de corrente ético-política contrária à opressão e impedir seu crescimento nas camadas populares.
Mas nada disso é percebido pelos vegans reacionários. Alguns deles, aliás, têm criado ou aderido a fóruns que tentam girar para trás a roda da história política do veganismo. Tentam restaurar um conceito de veganismo que só pensa nos animais não humanos, desconsidera que seres humanos também são animais e não considera racismo, elitismo, machismo, transfobia, heterossexismo etc. opressões tão repudiosas quanto o especismo.
A derrota dos “quatro cavaleiros” é essencial para fazer o abolicionismo engrenar e a possibilidade da futura libertação animal ser real
Esses últimos tempos têm deixado muito claro que a luta contra o especismo precisa, imprescindivelmente, também ser uma luta contra ódios opressores dirigidos a seres humanos. A permanência de racismo, xenofobia, misantropia, reacionarismo e outros flagelos do tipo só tem feito mal à causa vegano-abolicionista.
O ideal desejado pelo veganismo é um mundo sem opressão, o triunfo da cultura de paz, a conversão da empatia e da alteridade em dois dos mais importantes princípios éticos existentes, a libertação daqueles que são inferiorizados e explorados. E isso só vai ser atingido quando se admitir que libertação animal não virá sem libertação humana.
A igualdade moral defendida deve ser levada a sério. Igual consideração moral não é considerar pessoas afrorreligiosas promotoras de sacrifício ritual inferiores a cristãos onívoros, nem os bois brasileiros inferiores aos cães chineses, nem humanos chineses inferiores aos humanos brasileiros, nem a espécie humana inferior às demais espécies animais, nem categorias humanas oprimidas inferiores às dominantes e privilegiadas.
Por isso os “quatro cavaleiros do apocalipse” precisam ser combatidos e abolidos com o mesmo vigor com o qual enfrentamos o especismo e a escravidão animal. Levemos realmente em conta o princípio de que não existe “meia libertação” – ou seja, lutemos pela abolição da inferiorização moral e exploração de toda e qualquer espécie animal, incluindo a humana.

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