O famoso bagre protagonizou controvérsias no licenciamento da usinas no rio Madeira. Um relatório em poder do Ibama desde setembro revela declínio nos estoques da dourada (o famoso bagre atacado por Lula), do filhote e de outras espécies de grandes peixes no rio Madeira em parte do ano passado. Em 42 páginas, o documento não conclui que as obras das usinas de Santo Antônio e de Jirau sejam responsáveis pelo fenômeno, mas aponta uma associação de causas possíveis.
Especialistas comentam que o levantamento deixa clara a importância da manutenção da saúde do rio para a sobrevivência de vários peixes. Explosões de dinamites para a construção das barragens também são apontados como causadores de problemas.
O relatório, assinado pela pesquisadora do Laboratório de Ictiologia da Universidade Federal de Rondônia (Unir) Carolina da Costa Doria, reconhece a falta de dados regionais sobre hábitos e necessidades de peixes migradores e aponta que o declínio nos estoques naquele período pode ter ocorrido mais por influência da poderosa cheia que atingiu o rio, mudanças no esforço de pesca e aumento da fiscalização.
“Observa-se variações na produção intra e interanuais as quais são grandemente influenciadas pelo pulso de inundação. Estas variações já eram esperadas e são reconhecidas como padrões em Rondônia. As variações de produção entre os anos pode estar relacionada a fatores ambientais, a variações no esforço de pesca, aumento da fiscalização e até mesmo ausência de registro do desembarque e/ou desse registro pelos pescadores”, diz o relatório.
O texto também alega que as migrações de peixes não teriam sofrido impactos até o momento, mesmo com queda na quantidade capturada.
Dano certo
Para o pesquisador em biologia aquática Jansen Zuanon, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), apesar de inconclusivo sobre as causas no declínio da pesca naquele período, o relatório atesta a estreita ligação entre os peixes do Madeira e seus ciclos de cheias e vazantes. “O estudo mostra que esses peixes dependem da dinâmica hidrológica e de indicadores ambientais relacionados à qualidade da água para completar suas migrações ao longo do rio. Isso significa que não só a barragem, mas também as alterações na dinâmica hidrológica do rio provocadas pelas obras podem afetar negativamente as populações de grandes bagres e de diversas outras espécies de peixes que habitam aquela bacia”, disse.
Conforme Flávio Lima, especialista em peixes do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), não há dúvida de que, quando construídas, as hidrelétricas do Madeira prejudicarão os peixes migradores, numa magnitude que por enquanto não se pode avaliar. Mas, com grande probabilidade, de forma bastante severa. “Agora, com o rio ainda não barrado, é um pouco difícil estabelecer uma relação causa/efeito entre hidrelétrica em construção e descréscimo nas populações de peixes, porque hidrologicamente o Madeira continuará “natural” até o momento em que o primeiro barramento for fechado. Antes disso, é até possível que as obras estejam “espantando” os peixes”, disse. “E não se pode esquecer de impactos cumulativos de outras origens, como desmatamento, mudanças nas chuvas, poluição de garimpos e sobrepesca, que devem influenciar na diminuição dos peixes”.
Já o doutor em planejamento energético e professor da Unir, Artur Moret, a conclusão é de que as migrações de peixes poderão ser duramente afetadas pelo barramento do rio. Mas para ele, a falta crônica de informações sobre a ecologia da Amazônia ainda impede um veredicto sobre os efeitos das usinas. “A não existência de dados históricos e regionais confiáveis indica que não existem informações suficientes para afirmar que os empreendimentos irão alterar positivamente ou negativamente” a quantidade de peixes, comentou o coordenador do Fórum de Debates sobre Energia de Rondônia.
Por isso Zuanon alerta que o estudo é um importante indicador da necessidade de monitoramentos constantes e de longo prazo sobre o comportamento dos peixes no rio Madeira, durante e após a conclusão das hidrelétricas, até para se avaliar a eficiência de equipamentos como escadas para peixes e canais artificiais na manutenção de migrações. “Os impactos negativos aos grandes bagres e outras espécies são certos. Por isso, avaliações como essas têm que fazer parte dos empreendimentos, têm que entrar na sua conta”, salientou.
Geração de extinções
As obras no rio Madeira ainda são tratadas pelo governo e empreendedores como mera ameaça a grandes peixes que dependem da saúde dos rios para sobreviver. Mas não faltam exemplos de prejuízos concretos à fauna aquática, causados por hidrelétricas, dentro e fora do Brasil.
Estudos do Departamento de Ictiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostraram que um em cada quatro tipos de peixes foram extintos no rio Paraíba do Sul com a construção de barragens, incluindo dourados e surubins e outras espécies migratórias.
À época do lançamento da pesquisa, em outubro de 2005, o então presidente da Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, deputado Carlos Minc (PT), comentou que as barragens interromperam o rio, mudando a qualidade da água e fazendo com que os peixes perdessem o contato com áreas de reprodução. “Das 135 espécies de água doce na lista de ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente, barragens ameaçam 51 delas. A Ossubtus xinguense e a Hypancistrus zebra só existem nas corredeiras de Altamira, e dançarão com a usina de Belo Monte”, lembrou Fábio Olmos, biólogo e colunista de O Eco.
Há trinta anos, as obras e enchimento do lago da hidrelétrica de Sobradinho, na Bahia, levaram degradação a florestas na região entre Remanso e Santo Sé, onde desde o início do século vinte foram registradas populações da ararinha-azul (Cyanopsitta spixi). Esses locais foram completamente destruídos, sem maiores avaliações sobre outros animais e plantas que haviam por lá. A ararinha está hoje extinta na natureza e seu retorno depende de um programa de reprodução no Qatar (Oriente Médio).
Em Minas Gerais, a ampliação da pequena central hidrelétrica de Brito a ameaça o surubim-do-doce (Steindachneridion doceanum), peixe de couro que pode alcançar um metro de comprimento e pesar mais de vinte quilos. Era encontrado antigamente em toda a bacia do rio Doce, hoje apenas em trechos daqueles rios. No pontal do Paranapanema, o antigo Pantanal Paulista foi afogado por hidrelétricas, acabando com áres naturais onde vivia o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). Na região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás, 22 projetos de pequenas centrais hidrelétricas podem dar cabo do pato-mergulhão. A manutenção de suas maiores populações está nas mãos do Brasil.
Na China, país com crescimento econômico e modelo de desenvolvimento capaz de arrancar suspiros em governistas daqui, a história se repete. Desde o represamento do rio Yangtze pela hidrelétrica de Gehzouba, em 1983, a vida do peixe-espátula (Psephurus gladius) ficou mais complicada. Um último adulto foi avistado em 2003 e, desde 1995, nenhum jovem foi registrado. A espécie é uma das maiores de água doce do mundo, podendo chegar a meia tonelada e medir sete metros de comprimento. A barragem dividiu o rio em dois, isolando áreas de alimentação e reprodução do gigante fadado ao desaparecimento.Por motivos semelhantes, o simpático golfinho do Yangtze, o baiji, também está ameaçado de extinção.
Um estudo do governo chinês mostrou que um terço das 150 espécies de peixes antes encontradas no rio Amarelo foram extintas. Os motivos apontados para tamanha degradação são pesca e poluição excessivas associadas à construção de hidrelétricas.
Fonte: O Eco