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Por que devemos dar consideração moral a seres sencientes em vez de ecossistemas

23 de julho de 2021
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Deer walking through a forest

Uma ideia defendida com frequência por ambientalistas é que devemos nos preocupar principalmente com ecossistemas ou biocenoses, e que devemos estar prontos a sacrificar indivíduos por causa deles. Uma biocenose é a soma de todas as entidades vivas numa certa área ou ecossistema. Ecossistemas são sistemas que consistem de biocenoses e de entidades não vivas presentes nas áreas em que vivem e com as quais interagem. Ecossistemas  e grupos de seres vivos são diferentes de indivíduos sencientes em muitos aspectos, a diferença mais significativa sendo que apenas estes são capazes de ter experiências positivas e negativas. A ideia de que ecossistemas são o que importa é paralela a outras que alegam serem espécies ou entidades vivas, em vez de indivíduos sencientes, que importam. Esse ponto de vista é geralmente conhecido como ecocentrismo.

A base filosófica dessa posição é o holismo ético. Segundo essa posição, o “bem” do todo tem prioridade moral sobre os interesses das partes. Mas como o “bem” pode ser identificado aqui? Aldo Leopold afirmou que: “Uma coisa está certa quando tende a preservar a integridade, estabilidade e beleza da comunidade biótica. Está errada quando tende ao contrário”.1 Isso significaria que o que faz algo errado não é, em última análise, o dano causado a indivíduos, mas se altera ou não os ecossistemas dos quais eles fazem parte.

 

O que o ecocentrismo significa

Podemos pensar que o ecocentrismo significa respeitar os ecossistemas porque isso equivale a proteger os interesses de seus habitantes. Mas este não é o caso. Segundo o ecocentrismo, devemos respeitar ecossistemas independentemente de qualquer valor instrumental que eles possam ter para as vidas dos indivíduos vivendo neles. A “integridade, a estabilidade e a beleza” do ecossistema não são defendidas por aqueles que apoiam esse ponto de vista porque isso beneficia seres sencientes, mas sim porque os ecossistemas são considerados valiosos em si mesmos. Isso significa que devemos preservar a integridade dos ecossistemas independentemente de se fazê-lo beneficia ou prejudica seus habitantes. Além disso, esse ponto de vista prescreve que devemos estar dispostos a ignorar os interesses de humanos e não humanos sempre que houver um risco à preservação do ecossistema em sua forma atual ou preferida.

 

Por que ser um ecossistema não é relevante mas ser senciente é

Como pode ser visto no argumento da relevância, ao determinar se alguém ou algo é digno de respeito e proteção, o que importa é se esse indivíduo pode ser afetado positiva ou negativamente por nossas ações, o que só pode acontecer se esse indivíduo possuir a capacidade de ter experiências positivas ou negativas. Indivíduos podem ter experiências, enquanto ecossistemas e biocenoses não podem.

Lawrence E. Johnson argumentou que ecossistemas são entidades vivas com interesses moralmente significativos, porque assim como outras entidades vivas, incluindo seres humanos, eles têm um “interesse geral no funcionamento integrado de (seus) processos vitais como um todo.2 Entretanto, isso é enganoso, pois apesar de ser verdade que seres sencientes têm tal interesse, eles apenas o têm indiretamente, na medida em que o funcionamento integrado de sua vida tornar possível que eles tenham experiências positivas. Se fossemos privados da capacidade de ter experiências positivas (por exemplo, entrando em um estado de coma vegetativo irreversível) então mesmo se o funcionamento de nossos processos vitais permanecesse inalterado, o interesse em continuar com nossa vida desapareceria. Uma vida sem experiências seria um vazio sem sensações e inconsciente onde todas as coisas valiosas estão ausentes. Portanto, uma entidade que não pode possuir experiências positivas ou negativas não pode ter interesses moralmente relevantes e assim não pode ser uma entidade moralmente considerável.

 

Prejudicando indivíduos sencientes

Outro problema com essa visão holística ou ecocêntrica é também compartilhado pelos pontos de vista que afirmam que não são seres sencientes, mas entidades vivas ou espécies, que precisam ser tidas em conta. Tomada seriamente, essa posição nos comprometeria a participar de cenários morais inaceitáveis que envolvem prejudicar indivíduos em prol do todo. Segundo essa ideia, toda vez que o bem de um ecossistema estiver em jogo, devemos priorizar a “integridade, a estabilidade e a beleza da comunidade biótica” mesmo se ao fazê-lo possamos ter que prejudicar seus indivíduos constituintes, sejam eles humanos ou não humanos.

Entretanto, essas consequências são inaceitáveis sob um ponto de vista moral que tenha em conta experiências positivas e negativas, e portanto a consideração de indivíduos sencientes. Exemplos de consequências inaceitáveis podem ser observados em intervenções ecológicas nos processos naturais que têm como resultado o equilíbrio ecológico causando grande dano a muitos animais não humanos. Tais intervenções ocorrem frequentemente. Alguns exemplos podem ser encontrados em programas de restauração de ecossistemas3 e na gestão ambiental das assim chamadas “espécies invasoras”, entre outros.

Tendo em mente a “estabilidade da comunidade biótica”, imagine que a existência de uma certa planta num certo ecossistema está atualmente ameaçada pelo assim chamado “sobrepastoreio” por cervos. De uma perspectiva ecocentrista, deveríamos reduzir a população de cervos para promover a preservação da planta como uma forma de manter ou criar estabilidade no ecossistema.4 Isto é, deveríamos intervir nos processos naturais e matar indivíduos animais sencientes em favor da estabilidade ecossistêmica.

Segundo essa visão devemos efetuar tais intervenções que são prejudiciais a indivíduos não porque a estabilidade ecossistêmica pode ser instrumentalmente boa para as vidas de outros seres sencientes, mas porque a estabilidade ecossistêmica é considerada como sendo um bem em si mesma.

 

Inconsistência do ecocentrismo e sua subordinação ao antropocentrismo

Vimos a recém que esse ponto de vista leva a intervir na natureza para prejudicar animais sencientes em prol de ecossistemas. Entretanto, quando o bem de um ecossistema é ameaçado por humanos, os defensores dessas formas de intervenção não prescrevem a erradicação de seres humanos. Isso significa que a maioria dos apoiadores do ecocentrismo estão dispostos a aceitar suas consequências para indivíduos não humanos, mas com um excepcionalismo antropocêntrico. Isso é paradoxal, já que, na realidade, a espécie humana é aquela com impacto mais adverso sobre ecossistemas. Defensores desse ponto de vista simplesmente acreditam que interesses humanos devem ter prioridade sobre a proteção da estabilidade de ecossistemas. Isso nos ajuda a ver o quarto problema dos pontos de vista holistas, que é duplo. De um lado, há uma inconsistência entre princípios holistas e práticas ecocentristas comuns. Se o bem do todo trunfa os interesses de seus indivíduos constituintes, então segue-se que, em caso de conflito, os interesses humanos devem ser ignorados em prol dos ecossistemas. Entretanto, sempre que o bem de ecossistemas choca-se com interesses humanos, quase todos os ecocentristas favorecem os interesses humanos.5 Há uma clara contradição aqui. Se damos prioridade a interesses humanos não estamos mais mantendo uma visão ecocêntrica.

Há algo particular a essa inconsistência que, na verdade, a explica, isto é, sua base antropocêntrica. (Note que apesar de o antropocentrismo explicar a inconsistência, ele não a justifica.) A razão por que somos levados a uma inconsistência ao seguir esse ponto de vista é que, em algum ponto do conflito, ambientalistas que seguem esse ponto de vista apenas assumem que interesses humanos devem ter prioridade na deliberação moral. Isso significa que eles se recusam a tomar o holismo seriamente. Caso contrário, teríamos que aceitar o sacrifício de indivíduos humanos em prol do todo, assim como aceitamos no caso de animais não humanos.6

O principal problema com essa posição7 é que ela falha ao justificar uma distinção moralmente relevante entre humanos e não humanos e assim comete petição de princípio ao defender a centralidade dos interesses humanos. Isso mostra como a visão ecocêntrica, mesmo como argumentada por seus principais defensores, acaba sendo subordinada aos interesses humanos.

Sob um exame minucioso, o ecocentrismo torna-se indistinguível do antropocentrismo, e, na verdade, é uma forma deste.

 

Ecossistemas estão variando o tempo todo: outra forma de intervenção é necessária

Finalmente, precisamos notar que ecossistemas estão na verdade variando o tempo devido a motivos ecológicos. Isso aconteceu constantemente durante toda a história natural. A consequência que se segue disso é que a estabilidade dos ecossistemas não ocorrerá a menos que intervenhamos significativamente em seu funcionamento. Como vimos, muitas políticas ecocentristas intervêm. Mas então, se interviremos, parece que um objetivo diferente da preservação de ecossistemas deve ser buscado.

Isto é, em vez de intervir na natureza de formas que prejudicam animais para conservar ecossistemas como eles são atualmente e impedir que mudanças ocorram neles, o que devemos fazer é intervir a fim de beneficiar os seres sencientes que vivem na natureza. Dadas as muitas dificuldades que animais não humanos sofrem comumente na natureza, a intervenção na natureza em prol dos seres sencientes é algo que se provaria realmente benéfico, em contraste com os danos causados por intervenções que são motivadas por objetivos conservacionistas ecocentristas que não levam seres sencientes em consideração.


Leituras adicionais

Baxter, B. H. (1996) “Ecocentrism and persons”, Environmental Values, 5, 205-219.

Callicott, J. B. (1989) In defense of the land ethic: Essays in environmental philosophy, Albany: State University of New York Press.

Callicott, J. B. (1999) Beyond the land ethic: More essays in environmental philosophy, Albany: State University of New York Press.

Crisp, R. (1998) “Animal liberation is not an environmental ethic: A response to Dale Jamieson”, Environmental Values, 7, pp. 476-478.

Eckersley, R. (1992) Environmentalism and political theory: Toward an ecocentric approach, Albany: State University of New York.

Fieser, J. (1993) “Callicott and the metaphysical basis of ecocentric morality”, Environmental Ethics, 15, pp. 171-180.

Fox, W. (1995) Toward a transpersonal ecology: Developing new foundations for environmentalism, Albany: State University of New York.

Hargrove, E. C. (ed.) (1992) The animal rights/environmental ethics debate: The environmental perspective, Albany: State University of New York.

Hettinger, N. & Throop, B. (1999) “Refocusing ecocentrism”, Environmental Ethics, 21, pp. 3-21.

Horta, O. (2010) “The ethics of the ecology of fear against the nonspeciesist paradigm: A shift in the aims of intervention in nature”, Between the Species, 13 (10), pp. 163-187 [acessado em 5 de maio de 2013].

Johnson, E. (1981) “Animal liberation versus the Land Ethic”, Environmental Ethics, 3, pp. 265-273.

Schmidtz, D. & Willott, E. (2002) Environmental ethics: What really matters, what really works, New York: Oxford University Press.

Wade, M. L. (1990) “Animal liberationism, ecocentrism, and the morality of sport hunting”, Journal of the Philosophy of Sport, 17, pp. 15-27.

Warren, M. A. (2000) Moral status: Obligations to persons and other livings things, Oxford: Oxford University Press.


Notas

1 Leopold, A. (1989 [1949]) A sand county almanac, Oxford: Oxford University Press.

2 Johnson, L. E. (1993) A morally deep world: An essay on moral significance and environmental ethics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 142.

3 Shelton, J.-A. (2004) “Killing animals that don’t fit in: Moral dimensions of habitat restoration”, Between the Species, 13 (4) [acessado em 30 de janeiro de 2013].

4 Rolston III, H. (1999) “Respect for life: Counting what Singer finds of no account”, em Jamieson, D. (ed.) Singer and his critics, Oxford: Blackwell, pp. 247-268.

5 Exceptions can be found in Linkola, P. (2009) Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis, London: Integral Tradition. Pianka, E. R. The vanishing book of life on Earth [acessado em 11 de novembro de 2013].

6 Varner, G. (1991) “No holism without pluralism”, Environmental Ethics, 13, pp. 175-179.

7 Leopold, A. (1989 [1949]), op. cit., p. 135. Callicott, J. B. (1990) “The case against moral pluralism”, Environmental Ethics, 12, pp. 99-124; (2000) “The land ethic”, em Jamieson, D. (ed.) A companion to environmental philosophy, Oxford: Blackwell, pp. 204-217.

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