EnglishEspañolPortuguês

Por que a visão popular dos animais que vivem na natureza está errada?

23 de outubro de 2021
10 min. de leitura
A-
A+

Nos últimos tempos, houve um crescimento significativo da preocupação com os animai selvagens, provavelmente despertada pela poderosa mídia visual, como fotografias de animais selvagem, vídeos online e documentários. As pessoas cada vez mais querem saber como podemos ajudar a reduzir os danos sofridos pelos animais tanto em decorrência da ação humanas quanto por motivos naturais.

Apesar disso, muitas pessoas ainda têm uma visão otimista e irrealista dos animais que vivem na natureza, segundo a qual a felicidade de que desfrutam supera o sofrimento pelo qual passam. Uma das principais razões para isso é que a maioria das pessoas não tem uma imagem precisa dos animais que vivem em ambiente selvagem e de seus números populacionais relativos. Quando alguém lhes pede para imaginarem animais vivendo na natureza, as pessoas geralmente pensam em animais grandes e exóticos, na maioria das vezes mamíferos e, às vezes, aves, que de forma alguma são representativos dos animais selvagens.

Uma visão nada representativa dos animais

Imagens com forte carga emocional em conjunto com narrativas apelativas envolvendo animais selvagens ajudam a criar e reforçar essa visão distorcida das populações animais vivendo na natureza. Algum tempo atrás, a National Geographic1, um periódico geralmente considerado como autoridade nas suas representações do mundo natural, conduziu um estudo dos animais destacados nas suas capas ao longo dos últimos 55 anos. 153 de suas 665 capas ilustradas destacavam imagens de animais. O que é interessante aqui é quais animais foram destacados. A intenção da revista ao escolher os animais para suas capas era representar os animais sobre os quais as matérias abordavam, ou aqueles que simbolizavam as histórias que queriam retratar. Sua intenção não era apresentar os animais de uma forma representativa de suas populações relativas. Entretanto, os animais que as pessoas veem retratando a natureza tendem a ser vistos como os animais representativos da natureza.

O gráfico a seguir, produzido pela National Geographic, mostra isso:

Animals in nature

[Aves – 30 capas; Grandes primatas e chimpanzés – 13; Ursos – 12; Peixes – 8; Cavalos – 7; Insetos – 7; Cães – 6; Elefantes – 6; Guepardos – 5; Macacos – 5; Focas – 5; Tubarões – 5; Leões – 4; Tigres – 4; Lobos – 4; Camelos – 3; Cervos – 3; Raposas – 3; Sapos – 3; Baleias – 3; Búfalos – 2; Golfinhos – 2; Lagartos – 2; Moluscos – 2; Pinguins – 2; Porcos – 2; cobras – 2; Búfalos-asiáticos – 2; Ouriço – 1]

Para ver até que ponto os números no gráfico são diferentes dos números reais de animais que vivem na Terra, considere as seguintes estimativas dos números totais de diferentes animais na natureza: 2

  • Aves: entre 6 x 1010 e 4 x 1011
  • Mamíferos: entre 1011 e 1012
  • Répteis: entre 1012 e 1013
  • Anfíbios: entre 1012 e 1013
  • Peixes: acima de 1013
  • Insetos: entre 1018 e 1019
  • Outros artrópodes: entre 1018 e 1021
  • Outros invertebrados: acima de 1022

O gráfico da revista mostra que apenas 9 capas destacaram invertebrados (7 insetos e 2 moluscos), ou seja, 5,88% do total, apesar do fato de os invertebrados corresponderem a mais de 99,999999% de todos os animais na natureza.

A forma como os animais estão agrupados no gráfico também é esclarecedora. Em seu relatório, a National Geographic declara que as “aves lideram a competição das capas”. Mas isso é assim apenas porque, com exceção de uma espécie, todas as aves estão classificadas em um único grupo, enquanto que os mamíferos estão separados em grupos diferentes (grandes primatas, ursos, elefantes, macacos, leões, tigres etc.) nas 92 capas com mamíferos.

Os mamíferos correspondem a mais de 60% dos animais destacados, embora eles sejam menos de 0,0000001% dos animais existentes no planeta. Aves foram destacadas em quase 20% das capas da National Geographic, quando elas são menos de 0,00000001% dos animais que vivem na natureza.

Mesmo se considerássemos apenas vertebrados, os números reais de animais ainda não seriam bem representados. Entre os 144 vertebrados destacados, apenas 4 eram répteis, 3 anfíbios e 13 peixes, enquanto os animais assim classificados podem ser dez vezes mais numerosos que os mamíferos e mais de vinte vezes mais numerosos que as aves.

O gráfico exibe pinguins separadamente como se eles não fossem aves, e tubarões como se não fossem peixes. Provavelmente, isso é feito simplesmente porque esses animais são interessantes para o público, ainda que sejam minorias e não constituam categorias separadas. Diferentes espécies de felinos também são mostradas separadamente, enquanto que todos os insetos estão agrupados juntos, apesar de se estimar que existam vários milhões de espécies de insetos, enquanto existem cerca de 40 espécies de felinos3.

Ainda que a intenção da revista fosse mostrar animais que seriam representativos de suas matérias e não necessariamente representativos da natureza como tal, a escolha das matérias e dos animais a serem retratados na revista contribuem para uma visão distorcida dos animais na natureza e de como a vida tipicamente é para eles.

 

Por que saber os números relativos de tipos de animais selvagens é crucial para entender as quantidades relativas de sofrimento e felicidade na natureza?

A quantidade de sofrimento que existe no mundo selvagem depende das diferentes taxas de sobrevivência dos animais que nele vivem. A National Geographic tende a destacar os animais mais icônicos, enquanto deixa de dar prioridade a histórias que destacam animais menos populares.

No entanto, por reproduzirem-se tendo ninhadas enormes ou botando quantidades enormes de ovos, os animais menos populares estão entre os que apresentam as taxas de sobrevivência mais baixas. Essa estratégia reprodutiva, tradicionalmente conhecida como seleção-r, é seguida por quase todos os animais4. Ratos, por exemplo, dão à luz centenas de filhotes durante e vida; sapos podem botar milhares de ovos, e os ovos dos peixes podem chegar a milhões. Mas, em média, apenas um animal por progenitor sobrevive. Os outros morrem, muitos quando já são totalmente sencientes e de forma dolorosa (como de inanição ou sendo mortos por outros animais). Isso significa que a grande maioria de animais que vem à existência vive vidas muito curtas em que vivenciam pouca coisa além de sofrimento. Em muitos casos, a agonia de morrer imediatamente após vir à existência permeia toda sua experiência vivida.

Apenas um número relativamente minúsculo de animais na natureza (basicamente alguns mamíferos e aves) produzem um descendente por vez e investem esforços para cuidar dele, aumentando muito suas chances de sobrevivência. Isso foi chamado, tradicionalmente, seleção-K5. Outras espécies seguem uma estratégia reprodutiva mista, tendo vários descendentes que recebem algum cuidado parental. Entretanto, como vimos, a maioria dos animais na natureza são invertebrados, a maior parte dos quais tem números enormes de descendentes e, portanto, chances minúsculas de sobreviver. Até mesmo a maioria dos vertebrados são peixes que também têm números enormes de descendentes. E o mesmo ocorre com os roedores, que são maioria entre os mamíferos.

Isso não significa que apenas animais jovens sofram na natureza. Animais adultos também sofrem por inúmeras razões, como condições meteorológicas extremasdoençasfome e sede, e também acidentes e ferimentos. Ainda assim, a principal razão pela qual o sofrimento excede em muito a felicidade na natureza é a proporção minúscula de animais que sobrevivem, o que se dá devido à estratégia reprodutiva seguida pela maioria deles. Mais de 99,999999999% dos animais, em números, são membros de espécies que se reproduzem gerando números enormes de descendentes, ou seja, aquelas tradicionalmente chamadas de r-estrategistas. Como resultado, a maioria morre logo depois de nascer, muitas vezes de forma dolorosa.

Por outro lado, a lista de capas com animais da National Geographic inclui 63 mamíferos e 2 aves tradicionalmente classificados como K-estrategistas, 29 mamíferos que seguem uma estratégia mista de reprodução e 30 outras aves com estratégias reprodutivas não especificadas. Por fim, 4 répteis, 3 anfíbios, 13 peixes, 7 insetos e 2 moluscos, todos os quais se reproduzem gerando ninhadas enormes, completam a seleção.

Por que isso é um problema? Uma visão distorcida das populações de animais que vivem na natureza manifesta uma falta de preocupação sobre os danos que sofrem e uma falta de interesse em descobrir formas de ajudá-los. Essa visão imprecisa é prejudicial para os animais, já que contribui para o equívoco de que os animais na maioria dos casos desfrutam de boas vidas na natureza.

Essa visão existente entre o público é reforçada e perpetuada quando os animais destacados mais tipicamente em revistas populares de ciência como a National Geographic não refletem os animais mais comuns. Você pode ajudar educando a si mesmo e a outros sobre as reais populações de animais na natureza e as situações que enfrentam. Se você trabalha ou interage com revistas científicas ou com a mídia, ou se você pode escrever cartas para os editores, incentive-os a dar mais cobertura à maioria ignorada dos animais e a explicar que a natureza não é um lugar idílico para eles.


Notas

1 Newman, C. (2014) “Graphic: What animals appear most on National Geographic’s covers?”, National Geographic, December 31 [acessado em 2 de janeiro de 2015].

2 National Museum of Natural History & Smithsonian Institution (ca. 2008) “Numbers of insects (species and individuals)”, Encyclopedia Smithsonian [acessado em 5 January 2015]. Tomasik, B. (2009) “How many wild animals are there?”, Essays on Reducing Suffering [acessado em 15 de dezembro de 2016]. Tomasik, B. (2012) “One trillion fish”, Essays on Reducing Suffering [acessado em 5 de janeiro de 2015].

3 Gaston, K. J. (1991) “The magnitude of global insect species richness”, Conservation Biology, 5, pp. 183-196. Chapman, A. D. (2009) Numbers of living species in Australia and the World, 2nd ed., Toowoomba: Australian Biodiversity Information Services [acessado em 6 de janeiro de 2017]. Hamilton, A. J.; Basset, Y.; Benke, K. K.; Grimbacher, P. S.; Miller, S. E.; Novotný, V.; Allan Samuelson, G. A.; Stork, N. E.; Weiblen, G. D. & Yen, J. D. L. (2010) “Quantifying uncertainty in estimation of tropical arthropod species richness”, The American Naturalist, 176, pp. 90-95. Mora, C.; Tittensor, D. P.; Adlf, S.; Simpson, A. G. & Worm, B. (2011) “How many species are there on Earth and in the ocean?”, PLOS Biology, 9 (8) [acessado em 6 de janeiro de 2017].

4 Gould, S. J. (1982) “Nonmoral nature”, Natural History, 91, pp. 19-26. Sagoff, M. (1984) “Animal liberation and environmental ethics: Bad marriage, quick divorce”, Osgoode Hall Law Journal, 22, pp. 297-307 [acessado em 6 de janeiro de 2017]. Ng, Y.-K. (1995) “Towards welfare biology: Evolutionary economics of animal consciousness and suffering”, Biology and Philosophy, 10, pp. 255-285. Clarke, M. & Ng, Y.-K. (2006) “Population dynamics and animal welfare: Issues raised by the culling of kangaroos in Puckapunyal”, Social Choice and Welfare, 27, pp. 407-422. Horta, O. (2010) “Debunking the idyllic view of natural processes: Population dynamics and suffering in the wild”, Télos, 17 (1), pp. 73-88 [acessado em 5 de janeiro de 2017]; (2015) “The problem of evil in nature: Evolutionary bases of the prevalence of disvalue”, Relations: Beyond Anthropocentrism, 3, pp. 17-32 [acessado em 6 de novembro de 2015].

5 A razão pela qual esses termos não são mais usados é que eles eram tipicamente usados para se referir não somente a se certos organismos reproduzem-se gerando prole em pequenos ou em grandes números, mas também a outras características de sua história de vida, como com que idade se reproduzem, por quanto tempo vivem etc., e, mais tarde, descobriu-se que algumas dessas características não eram precisas. Sobre isso, ver Pianka, E. R. (1970) “On r– and K-selection”, The American Naturalist, 104, pp. 592-597; Pianka, E. R. (1972) “r and K selection or b and d selection?”, The American Naturalist, 106, pp. 581-588 [acessado em 11 de dezembro de 2013]; Parry, G. D. (1981) “The meanings of r- and K- selection”, Oecologia, 48, pp. 260-264 [acessado em 15 de fevereiro de 2013]; Boyce, M. S. (1984) “Restitution of r- and K–selection as a model of density-dependent natural selection”, Annual Review of Ecology and Systematics, 15, pp. 427-447 [acessado em 15 de fevereiro de 2014]; Stearns, S. C. (1992) The evolution of life histories, Oxford: Oxford University Press. See also: Reznick, D.; Bryant, M. J. & Bashey, F. (2002) “r-and K-selection revisited: The role of population regulation in life-history evolution”, Ecology, 83, pp. 1509-1520.

Você viu?

Ir para o topo