Em cada cidade brasileira existe a figura do promotor de justiça, membro do Ministério Público Estadual, a quem compete – dentre outras coisas – defender a sociedade, zelar pelo cumprimento das leis e proteger os chamados interesses difusos, nos quais se inclui a tutela do ambiente e dos animais. Tais funções, com a Constituição de 1988, passaram a ser consideradas essenciais à realização da Justiça. Isso significa que os promotores, integrantes de uma instituição autônoma, independente e fundamental ao regime democrático, devem sempre agir na busca de um mundo mais pacífico e justo para todos, olhando, principalmente, por aqueles que estão em situação de maior vulnerabilidade.
Para alcançar esses objetivos, o legislador pôs à disposição do Ministério Público mecanismos que permitem o pleno exercício de suas funções institucionais, seja na área criminal, seja no âmbito cível, seja na esfera administrativa. Dentre eles a possibilidade de oferecer denúncia criminal, de requisitar providências policiais, de abrir inquérito civil, de propor ação civil pública, de celebrar termo de ajustamento de conduta, de expedir recomendações etc. Importa dizer que a defesa do ambiente, no qual se incluem os animais silvestres, os domésticos e os domesticados, é atribuição exclusiva da promotoria (artigo 127 da CF). Isso significa que os animais têm direitos e merecem ser protegidos.
O dever de o Ministério Público representar os animais em juízo remonta ao Decreto 24.645/34 (artigo 2º, par. 3º). Já o fundamento jurídico para a defesa dos animais está na Constituição Federal de 1988, onde o legislador incumbiu ao poder público “proteger a fauna e flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade” (artigo 225 par. 1º, inciso VII), reconhecendo com isto que os animais são seres sensíveis suscetíveis de representação. A conduta de quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, tornou-se crime previsto no artigo 32 da Lei 9.605/98. Apesar desses avanços legislativos, os animais continuam discriminados pela indiferença humana, pelo estigma da insignificância jurídica e pela vala comum destinada às condutas de menor potencial ofensivo.
Surgem, então, perguntas que não querem calar: por que o Brasil ainda compactua com tantas situações de crueldades para com animais, como agressões, confinamentos, exploração etc.? Por que se mostra tão difícil coibir a ação de pessoas que maltratam, torturam e matam animais? Seria possível defender os animais enquanto seres sensíveis, individualmente considerados, mesmo que eles não tenham relevância ecológica? Respostas a essas questões, que tanto angustiam as pessoas de bem, estão relacionadas ao paradigma sócio-cultural em que vivemos. Conscientemente ou não, nós decretamos a miséria dos animais. As escolhas que fazemos têm sempre um viés de dominação, como se as outras espécies – tidas, preconceituosamente, como criaturas inferiores -, estivessem no mundo apenas para nos servir. Os índices de crueldade aos animais, que nem sempre chegam ao conhecimento do promotor, são alarmantes. Isso precisa mudar.
A melhor solução para o drama dos animais pode partir do próprio Ministério Público, pela criação de uma inédita promotoria especializada de defesa animal. Afinal, os animais não são coisas ou objetos, mas criaturas capazes de sentir e de sofrer, que merecem a devida atenção da instituição legalmente incumbida de defendê-los. Se na capital paulista, por exemplo, há promotorias especializadas em meio ambiente, cidadania, infância e juventude, idosos, consumidor, falência, sonegação fiscal, direitos humanos, todas elas de grande repercussão social, de rigor que se instale também uma promotoria de defesa animal, exclusiva para tratar dos interesses daqueles que tanto precisam de amparo e que, na prática, têm sido ignorados em seus anseios mais legítimos.
A relevância de uma promotoria especializada na tutela animal, afora seus aspectos sociais e humanitários, vem das estatísticas reveladoras de autênticos genocídios de animais, a maioria impune. Em São Paulo, por exemplo, calcula-se que haja um cão para cada sete pessoas e um gato para cada dezesseis habitantes. Milhares de cães vivem em estado de abandono, sob condições hostis, sujeitos a fome, sede, frio, agressões, doenças, reprodução incontrolada e atropelamentos. Quanto aos gatos, no meio urbano eles têm sido vítimas constantes de envenenamentos e mutilações. Isso sem falar nos cavalos covardemente açoitados para puxar carroças, nos pássaros confinados em gaiolas ou nas incontáveis vítimas do sistema de criação industrial. A lista das perversidades parece não ter fim. Não há como o promotor de justiça, a quem incumbe a tutela dos animais, permanecer alheio a essa dura realidade.
Os animais merecem ser tratados com dignidade, em razão de seu valor inerente, pouco importando sua relevância ambiental ou a eventual serventia que nos possam propiciar. Sua proteção deve permanecer afeita a uma promotoria especializada, dotada de estrutura material e humana suficiente para fazer valer o princípio da precaução, para processar malfeitores, para reverter os desmandos do poder público nesse setor, para enfrentar os poderosos interesses econômicos que ditam as regras da exploração animal e, enfim, para questionar o sistema cultural que transforma seres vivos em objetos descartáveis ou perpétuos escravos. Vê-se que trabalho não faltará a quem estiver à frente de uma promotoria com tantos projetos e desafios.
Daí a necessidade de o Ministério Público propor a criação, por lei, da Promotoria de Defesa dos Animais. Em nenhum país do mundo um órgão estatal possui à disposição tantos instrumentos administrativos e processuais hábeis a impedir situações de crueldade a animais. Ou, então, que seja capaz de atuar, concomitantemente, nos campos jurídico e pedagógico, em busca de um paradigma mais generoso, que reconheça a singularidade de todos os seres vivos e o seu direito ao bem-viver. Há de se lembrar, a propósito, que o tema dos direitos animais foi redação no vestibular da Unicamp 2009, suscitando reflexão em milhares de jovens estudantes. Também foi tema de questão no exame da Ordem dos Advogados do Brasil de janeiro de 2009. Por isso é que se propõe aqui, de modo pioneiro, o surgimento de uma Promotoria de Defesa Animal. Que essa iniciativa, tão urgente quanto necessária, dignifique ainda mais o Ministério Público, instituição historicamente voltada ao ideal ético e cujos membros detêm, com orgulho, a nobre missão de promover a justiça.
Fonte: Olhar Animal