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Por que a motivação para a adoção do veganismo é importante

14 de abril de 2011
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Muitas pessoas, dentre as quais me incluo, reconhecem que as consequências sobre os atingidos por nossas decisões (sejam ações, sejam omissões) desempenham um papel fundamental sobre o erro/acerto moral de nossas escolhas. Não significa que, uma vez que aceitamos esse ponto, temos de pensar que as conseqüências sejam a única coisa que importa em nossas deliberações morais. Como já argumentei em colunas anteriores, outras exigências que não dependem de conseqüências (imparcialidade, tratar casos semelhantes de maneira semelhante, oferecer um argumento que tenha premissas verdadeiras e seja logicamente válido, etc.), e que compõem a forma do raciocínio moral, também devem desempenhar um papel fundamental nas nossas deliberações morais. Além disso, não há nada no conseqüencialismo (seja lá de que tipo for: utilitarista, igualitarista, prioritarista, etc1. ) que nos impeça de fazer avaliações sobre a motivação e o caráter dos agentes morais, pois, embora tais características existam independentes das conseqüências, elas possuem uma forte influência nestas, como veremos a seguir.

Pretendo responder à seguinte afirmação, que frequentemente aparece nos debates: “se as consequências são o mais importante, então não há diferença entre ser vegano por motivos éticos ou por qualquer outro motivo (saúde, impacto ambiental, religião, etc.), afinal de contas, os animais serão beneficiados igualmente”. Esse argumento é geralmente endereçado em resposta a ativistas que fazem críticas ao vegetarianismo ou veganismo motivado pela saúde, impacto ambiental, religião, etc2. O argumento pode ser resumido assim:

(1)    Se as consequências são o mais importante numa decisão ética, então duas decisões que possuem exatamente as mesmas conseqüências, mas motivadas por causas diversas, são igualmente boas, de um ponto de vista ético;

(2)    O veganismo praticado por motivos éticos (a saber, respeito pelos animais) e o veganismo praticado por qualquer outro motivo possuem exatamente as mesmas conseqüências;

(3)    Logo, qualquer tipo de veganismo, independentemente de motivação, é igualmente bom, de um ponto de vista ético.

Minhas objeções ao argumento se dirigem à premissa número 2. Pretendo mostrar que adotar o veganismo motivado eticamente possui, se levarmos em conta os desdobramentos das conseqüências, uma probabilidade muito maior de ter resultados melhores do que o veganismo motivado por qualquer outra coisa. Com isso, pretendo mostrar que a premissa 1 também possui problemas. Se motivações diferentes possuem probabilidades diferentes de fomentar futuras decisões melhores, ainda que as decisões sejam igualmente boas quanto às conseqüências imediatas, então podemos dizer que duas decisões motivadas por causas diferentes possuem diferentes valores morais (tudo dependerá da tendência que tais motivações desempenham quanto a fomentar melhores desdobramentos de conseqüências). A conclusão se mantém mesmo que tais decisões possuam exatamente as mesmas conseqüências imediatas, e mesmo que avaliemos as motivações somente na medida em que elas têm influência nas conseqüências.

Tenho seis objeções à premissa número 2. Vejamos cada uma delas:

1) Eficácia: Há probabilidade maior de alguém abandonar o veganismo se este for aderido por outros motivos que não a ética. Note que não estou com isso afirmando que o veganismo é algo bom em si, independentemente das conseqüências. Pelo contrário, quero dizer que o veganismo só tem sentido porque pode beneficiar os animais. O perigo de se abandonar o veganismo é devido justamente às conseqüências negativas desse abandono para os atingidos (e os animais não-humanos são os mais diretamente atingidos e os que se encontram na pior situação, de todos os atingidos).

Se alguém adota o veganismo unicamente motivado por preocupações com o impacto ambiental, e depois descobre que certo tipo de produção que envolve explorar animais é, ao mesmo tempo, um exemplo de sustentabilidade, pode abandonar o veganismo e voltar a explorar animais. A mesma coisa pode acontecer facilmente com alguém motivado unicamente pela saúde. Assim que descobrirem que certas comidas de origem animal não fazem tão mal assim, e que é possível ser onívoro e ser saudável, dependendo de como seja feita a dieta, podem voltar a explorar animais. Caso adotem o veganismo por motivos religiosos, podem abandonar o veganismo caso mudem de religião, ou caso alguma revelação sagrada lhes mostre que o veganismo não está de acordo com a religião que seguem. Se, por sua vez, alguém adota o veganismo porque pensa que a dieta vegana é mais natural, abandonará o veganismo se descobrir o contrário (com veremos adiante, esse é a pior motivação para alguém fundar suas escolhas, pois muitas das coisas mais nefastas possíveis são naturais). Por último, se alguém adota o veganismo por simpatia por algum animal, pode concordar em matar outros animais pelos quais não tem simpatia. Esse último ponto mostra que, embora agir eticamente também envolva compaixão, não se limita a essa, pois a compaixão pode ser particular por algum indivíduo, enquanto que uma posição ética minimamente plausível exige universalidade (tratar todos os indivíduos atingidos por nossa decisão com igual consideração, independentemente do sentimento que se tenha por eles).

Do contrário, se alguém adota o veganismo porque reconhece como um dever não explorar e não causar dano injustificável, tem muito maiores chances de nunca voltar a ser explorador de animais, independentemente do que dizem as notícias sobre impacto ambiental, saúde, natureza, religião ou de suas inclinações pessoais. Onde houver dano aos animais, o vegano motivado eticamente fará sua objeção. É claro, tal motivação também não está livre de cometer erros. Mesmo as pessoas com as melhores das intenções podem errar em seus julgamentos, ou pode acontecer de alguém desistir de se importar com ética (ainda que isso seja algo raro). Ainda assim, o que importa é que tal motivação tem as maiores probabilidades de causar os melhores resultados, ainda que não seja perfeita.

2) Ensinando a pensar de maneira irracional: Quando defendemos uma idéia, outras idéias mais básicas, que dão sustentação à idéia defendida, também são reforçadas, ainda que estejam ocultas no discurso. Uma idéia básica que está por trás de todas as outras motivações para o veganismo, que não a motivação ética, é a de que os interesses dos animais são menos importantes, ou ainda, não são nem um pouco importantes. Vejamos por que faço essa afirmação:

O número de animais utilizados na produção de alimentos é gigante. Em termos da quantidade total de sofrimento envolvido, do número de mortes, do número de indivíduos sofrendo, e da quantidade de sofrimento por indivíduo, poucas coisas podem ser comparadas (se é que alguma) aos horrores das granjas industriais. Se levarmos em conta todos esses fatores, o massacre de animais supera, de longe, os horrores do holocausto. Quando dizemos que o motivo pelo qual deveríamos deixar de participar de tal massacre é qualquer outro que não o dano enorme que sofrem tais vítimas, estamos, ao mesmo tempo, incentivando que as pessoas continuem irracionais em termos éticos. Não é racional (muito menos, correto moralmente) afirmar que interesses menores (não-básicos) devam receber mais peso do que interesses maiores (básicos), assim como não é racional argumentar que tais interesses menores deveriam ter mais peso simplesmente porque se tratam de interesses de humanos (como sabemos, isso é especismo, o que é eticamente indefensável). Quando afirmo que tais posições são irracionais, é devido a não existir nenhum argumento plausível que demonstre que interesses mais básicos devam ser sacrificados em prol de interesses triviais, muito menos um que demonstre que seres humanos possuem valor maior.

Quando alguém diz que o motivo (ou, o motivo mais óbvio) pelo qual deveríamos nos tornar veganos é devido a preocupações ecológicas, saúde, agir de acordo com o que é natural, religião ou simpatia, está, ao mesmo tempo, passando a mensagem de que os interesses dos animais não são tão importantes quanto essas outras coisas. Analisemos cada uma das motivações:

Apelo à simpatia: Quando se afirma que a motivação deve ser a simpatia que alguém nutre por algum animal, está se dizendo, ainda que inconscientemente, que a coisa importante a ser levada em conta é o sentimento de quem decide, ou ainda, que o sentimento de quem decide é mais importante do que as conseqüências sobre o atingido pela decisão. Mas, será que não há problema em torturar e matar alguém, só porque não sentimos simpatia por esse alguém? Não pensamos assim quando humanos estão envolvidos. O incentivo da motivação pela simpatia inverte as coisas: foca nos estados mentais dos agentes, quando deveria estar preocupada com as conseqüências sobre os atingidos pela decisão. O erro em causar-lhes dano é independente do que possamos sentir por eles.

Apelo à religião: Quando se apela à religião, se está ao mesmo tempo passando a idéia (ainda que de maneira oculta) que devemos basear nossas decisões éticas de acordo com o que autoridades afirmam (um deus, ou um livro que é considerado sagrado). Vimos em outra coluna3 que isso é uma falácia; a conhecida falácia do apelo à autoridade. A falácia envolve a idéia de que as coisas se tornam certas ou erradas de acordo com o que alguma autoridade moral afirma. Mas, isso é uma inversão: se alguém é uma autoridade moral, é porque faz o que é certo, e não, que as coisas se tornam certas porque estão de acordo com a vontade dessa autoridade. Uma vez reconhecida essa falácia, entendemos que a melhor coisa a fazer, se queremos tomar a decisão correta, é usarmos nossa capacidade de raciocínio ético4. Assim, quando alguém afirma que o motivo pelo qual devemos nos tornar veganos se deve a estar de acordo com alguma religião, comete o erro de pensar que as crenças religiosas deveriam guiar nossas escolhas no mundo público. E o dano que os animais sofrem é real e independente de nossas crenças religiosas. Pior ainda, tal prescrição incentiva que as pessoas deixem sua capacidade de raciocínio ético de lado e escolham que uma autoridade tome as decisões por elas.

Apelo à ecologia: Quando, por sua vez, se afirma que o motivo principal pelo qual deveríamos nos tornar veganos se deve a preocupações ecológicas, afirma-se, conjuntamente, ou que os interesses dos animais não contam, ou contam apenas instrumentalmente (apenas na medida em que isso favorece ao “equilíbrio” dos ecossistemas). Muitas pessoas vêem uma conexão nos movimentos anti-especista e ecológico, e defendem que tais movimentos deveriam andar de mãos dadas. Esse é um dos erros mais graves que alguém pode cometer. Os fundamentos desses dois movimentos são exatamente opostos: o movimento anti-especista é centrado no valor dos indivíduos (a vida e bem-estar de cada ser senciente devem ser respeitados porque possuem valor para os seres sencientes); o movimento ecológico é centrado na idéia de que os indivíduos não possuem valor – seu valor se resume a meros instrumentos para a manutenção de algumas entidades que são entendidas como possuindo valor (ecossistemas, espécies, comunidades bióticas, leis naturais, o planeta, etc.). Isso não significa que anti-especistas tem de ser necessariamente contra preservar o meio ambiente. A diferença é que tal preservação se dará na medida em que isso for benéfico para os seres sencientes que ali vivem. Ecologistas, pelo contrário, defenderão preservar o meio-ambiente tal como ele é naturalmente, mesmo quando isso significar a pior das opções possíveis para os seres sencientes que ali vivem. Isso é assim porque ecologistas vêem os animais como parte do ambiente (aquilo que circunda os indivíduos). Mas, eles não são parte do ambiente, eles são os indivíduos cujo ambiente circunda5.

Para ilustrar a diferença, vejamos o seguinte exemplo: O anti-especista defenderá a preservação do meio ambiente porque tal preservação pode ser (e apenas na medida em que for) benéfica para os seres sencientes ali inseridos. Para o anti-especista, a preservação do meio-ambiente é instrumental aos interesses dos indivíduos. Supondo que fosse possível construir um meio ambiente artificial no qual os seres sencientes que ali vivem sofrerão menos e serão mais felizes do que em um natural. O anti-especista defenderá, todas as outras coisas sendo iguais, esse meio ambiente artificial em detrimento do natural, porque está preocupado com o bem dos animais. O ecologista, pelo contrário, defenderá que o meio-ambiente natural tem valor em si, e deve ser preservado mesmo quando isso pior coisa possível para os seres sencientes que ali vivem, ou, mesmo que, para isso, tenha que matar ou fazer sofrer incontáveis seres sencientes. Para o ecologista, a preservação dos indivíduos é instrumental à manutenção do meio ambiente. Espero que tenha ficado clara a oposição entre as duas correntes: no anti-especismo, o meio ambiente tem valor instrumental para os indivíduos; na ecologia (principalmente na ecologia profunda6), os indivíduos tem valor instrumental para o meio ambiente.

Isso explica por que os ecologistas normalmente não acham errado comer carne (aliás, a caça é vista como louvável por boa parte do movimento ecológico). “Mas, os ecologistas defendem alguns animais, não defendem?”. Alguns animais são defendidos pelo ecologista apenas porque são exemplares de uma configuração biológica (espécie) ameaçada de extinção. Para o movimento ecologista, o indivíduo (os animais mesmo) não tem valor.

Os pontos em oposições entre anti-especismo e ecologia são tantos, que merecem um artigo à parte. Estando as duas correntes em extrema oposição, qual deveríamos escolher? Penso que, se a necessidade de pensarmos bem antes de tomarmos uma decisão deve-se ao fato de que podermos prejudicar ou beneficiar seres que são afetados por tal decisão, e já que são os indivíduos sencientes justamente o tipo de seres que podem ser prejudicados ou beneficiados por nossas decisões (espécies, enquanto tais, não possuem nenhum tipo de experiência, sendo, inclusive, classificações um tanto imprecisas criadas por nós ), então devemos ser anti-especistas e dar igual consideração aos interesses de todos os seres sencientes.

Quando o ecologista afirma que não se sente obrigado a dar igual consideração aos interesses dos seres sencientes, ele não erra enquanto ecologista (porque não há nada na ecologia que prescreva o respeito pelo valor dos indivíduos enquanto tais); o erro é adotar o a perspectiva ecologista, em primeiro lugar. É por esse motivo que “ecologistas coerentes”, como Pentti Linkola8, defendem coisas hediondas como o genocídio e o holocausto. Isso mostra que é possível ser coerente e estar moralmente errado.

Apelo ao natural: Já quando afirma-se que o motivo pelo qual alguém deve se tornar vegano é porque tal prática é mais natural, a premissa que embasa tal raciocínio é a de que “devemos nos inspirar no que é natural”. Como John Stuart Mill9 apontou no clássico On Nature, não pode haver pior erro do que enxergar valor moral naquilo que é natural: todas aquelas coisas que consideramos hediondas quando praticadas por nós são a regra das leis naturais. Sofrimento, morte, injustiça, lei-do-mais-forte, estupro, roubo, miséria, doenças, inanição, parasitismo, enfim, todas as conseqüências nefastas  que reconhecemos como possuindo valor moral negativo são a regra das leis naturais. E, não poderia ser diferente, haja vista que as leis naturais são produto da seleção genética cega, e não de uma vontade bondosa, racional e imparcial. Na natureza, o sofrimento, a injustiça e o malefício aos indivíduos são maximizados, em favorecimento da adaptação dos genes. Existem coisas naturais que também são boas (como, por exemplo, o instinto de cooperação presente em algumas espécies), mas isso é mera coincidência: tal coisa é boa e coincidentemente também é natural, mas não se torna boa porque é natural.

Aqueles que afirmam que julgamentos só se aplicam a decisões de agentes morais, e de que é errado fazer juízos avaliatórios sobre as forças naturais, cometem uma confusão. Simplesmente não é verdade que julgamentos morais aplicam-se somente a decisões. Eles podem ser aplicados a avaliações de caráter, motivações, metas, estados de coisas, estados mentais, conseqüências, etc. Esses últimos aspectos (estados de coisas, estados mentais, conseqüências) são de extrema importância, porque só faz sentido julgar as decisões de agentes morais com base nesses estados de coisas. É porque o sofrimento (um estado mental) tem valor moral negativo que as ações que causam sofrimento estão erradas, e não o contrário. Além disso, mesmo que fosse verdade que as conseqüências dos processos naturais fossem neutras com relação ao valor moral que carregam, não poderia ser derivada daí a conclusão de que, então, não devemos intervir nesse processo. Esse erro é comum. Aparece em frases como “a idéia de valor moral não se aplica à natureza; logo, não devemos intervir nela”. Ora, se algo não possui valor, não pode ser errado modificá-lo. A prescrição de que não devemos intervir em processos naturais que possuem conseqüências ruins só pode vir da idéia de que tais conseqüências de processos naturais possuem valor moral positivo. Mas, como vimos, isso é falso. A natureza produz inúmeras conseqüências de valor moral negativo, ainda que não seja um agente consciente.

Além disso, o apelo ao que é natural sempre esteve por trás dos preconceitos mais hediondos de toda a história: a defesa da lei-do-mais-forte, da homofobia, do especismo, do machismo e até mesmo por trás de argumentos contra o uso de anestesia10, quando esta foi inventada, na base de que “sofrer é natural”. Tal apelo poderia ser perdoável numa época onde se pensava que os processos naturais fossem produto de uma vontade divina (bondosa e onisciente). Contudo, a existência de tamanha magnitude de sofrimento devido a causas naturais (independentes de ação humana) sempre foi um problema para os que acreditavam em tal vontade criadora. Como poderia uma vontade onisciente, onipotente e de pura bondade querer a existência de sofrimento inútil em extremos de quantidade, que supera, de longe o bem-estar mínimo11? A única saída possível para conseguir salvar a idéia de uma vontade divina bondosa é admitir que, então, ela não é onipotente e as leis naturais seriam coisas que saíram do controle de tal vontade. Assim sendo, se alguém acredita em tal vontade bondosa e deseja colaborar com ela, a regra não deveria ser copiar as leis naturais, mas sim, pelo contrário, corrigi-las e proteger as vítimas de tais processos.

Contudo, com o melhor conhecimento científico que possuímos hoje, desde Darwin, temos boas razões para supor que os processos genéticos são cegos. Se já é problemático buscar inspiração moral nos processos naturais mesmo pressupondo uma vontade divina por trás de tais processos (porque, ou temos de supor uma vontade onipotente maléfica, ou uma vontade benéfica e impotente que não deseja as leis naturais), é mais problemático ainda buscar tal inspiração reconhecendo que tais processos são cegos (principalmente moralmente cegos). Se mandar uma autoridade moral tomar nossas decisões éticas por nós já é abdicar do nosso papel enquanto agentes responsáveis, imagine mandar processos cegos assumir o mesmo papel.

Diante da percepção de que as forças naturais são amorais quanto ao processo de decisão (simplesmente porque não há ninguém ali decidindo) e geralmente imorais quanto ao valor das conseqüências (das forças naturais, geralmente se seguem conseqüências de valor moral negativo, ainda que não haja agência consciente), é de se espantar que as pessoas percam tempo discutindo se é o onivorismo que é natural para o ser humano ou o veganismo. O que é errado é achar que aquilo que é natural deva dar alguma orientação nas nossas decisões, em primeiro lugar.

Apelo à saúde: Por fim, se é afirmado que o motivo principal pelo qual deveríamos nos tornar veganos é nossa própria saúde, a idéia básica que está por trás de tal prescrição é a de que “eu em primeiro lugar!”. A idéia do “eu em primeiro lugar”, ou, mais precisamente “eu sou mais importante que os outros” é o principal obstáculo à ética. Tal idéia tem nome, chama-se egoísmo12. O egoísmo é a base de todos os outros preconceitos, como o especismo, o machismo, o racismo, a homofobia, a xenofobia, o geracionismo, entre outras coisas que fazem desse mundo um inferno. Por trás de todos esses preconceitos, está a idéia de que os indivíduos da minha espécie, do meu gênero, da minha raça, da minha opção sexual, do meu lugar, da minha geração, devem ser respeitados  (ou, devam ser respeitados em maior grau) e os outros não (ou, o devam ser em menor grau). Se o objetivo com a prática do veganismo é fazer com que alguém beneficie os animais, e sabemos que os animais estão nessa situação devido ao nosso especismo (que é produto do egoísmo), como é que esperamos atingir tal objetivo se reforçamos, com nossas campanhas, as tendências egoístas das pessoas? Como podemos esperar que alguém mude a visão que tem dos animais, e que passe a considerar com seriedade seus interesses se dizemos “diante de um massacre de tamanha magnitude, o motivo principal pelo qual você não deve colaborar com tal massacre é o benefício para você mesmo, e não para as vítimas”?

Nesse ponto, podem surgir algumas objeções. Vejamos:

(a) Alguém pode dizer que, se queremos estar ativos para lutar pelos outros, temos de nos preocupar com nossa saúde; afinal de contas, um ativista doente não ajuda muito. Isso é verdade. Contudo, não é essa preocupação que está por trás do discurso de “torne-se vegano porque é melhor para a sua saúde”. Os que adotam o veganismo por motivos de saúde geralmente não o fazem como motivo secundário visando o bem dos animais – fazem como motivo principal, e (infelizmente) na maioria das vezes, como único motivo. Já que minha crítica se direciona a motivação pela saúde como motivo principal, e não secundário, tal objeção perde o foco.

(b) Alguém pode dizer que um agente tem deveres para consigo próprio, e como a ética exige imparcialidade, não podemos dizer que o benefício aos outros é mais importante do que os benefícios para o próprio agente. Assim, a objeção conclui, a motivação pela saúde é tão importante quanto a motivação pelo bem dos animais. À primeira vista, essa objeção parece estar correta. Contudo, há um grave problema com ela. E, para reconhecer tal problema, não precisamos negar a existência de deveres para consigo. Reconheço que tenho deveres para comigo mesmo. Por mais estranho que isso pareça à primeira vista, eis minha razão para pensar assim: no futuro, serei um indivíduo com outros interesses (qualitativamente, serei outro indivíduo); quando tomo uma decisão, tenho de me colocar no lugar de todos os atingidos por ela, e dar igual consideração a todos (e isso inclui o meu “eu futuro”, que possuirá determinadas preferências). Assim, visto que meu “eu futuro” possuirá o interesse básico em não sofrer, e meu “eu presente” possui agora o interesse não-básico em ingerir algum tipo de substância (sem a qual posso passar muito bem) que implicará sofrimento no meu “eu futuro”, penso que é meu dever não ingerir tal substância, em consideração pelo meu “eu futuro”. E isso é assim não porque meu eu futuro tem mais valor do que meu eu presente, mas sim porque interesses básicos têm mais valor que interesses não-básicos, e porque a prioridade deve ser prevenir o sofrimento maior.

Se isso explica porque temos deveres para conosco, explica, ao mesmo tempo, por que, no caso do veganismo, a adoção motivada pelo bem dos animais deveria ser a razão primária, e não a preocupação com a própria saúde. Se entendemos que o alívio do maior sofrimento deve ter prioridade e que a alternativa que tem maiores chances de beneficiar um número maior de indivíduos que estão na pior situação também deve ser prioritária, então entendemos que a razão principal para adotar o veganismo deve ser a preocupação com os animais, mesmo que a imparcialidade exija que eu leve em conta também o impacto que minha decisão terá sobre minha própria saúde. E isso é assim porque, se digo que a preocupação principal deve ser minha saúde, estou dizendo que o dano menor provável (mas ainda não real) de um indivíduo deve ter mais peso do que o dano infinitamente maior real de bilhões de indivíduos – o que é um grave erro moral.

3) A questão do ativismo: Alguém que adota o veganismo por motivos éticos (a saber, a consideração igualitária pelos interesses dos animais) reconhecerá que tal consideração é um dever moral, e não uma mera preferência pessoal. Isso porque, do ponto de vista daquele que será escravizado, massacrado, torturado e morto, não faz diferença quem ou o que lhe causa dano; se sou eu ou você que mata o animal, para o animal é indiferente. Se a razão pela qual reconheço que devo ser vegano é o dano para os animais derivado de seu consumo, não posso dizer, então, que os outros agentes não tem o mesmo dever (pois a mesma razão se apresenta quando eles consomem animais). É por isso que dizemos que, para uma decisão ser correta, precisa ser mantida a mesma independentemente do agente que a causa. A mesma decisão, nas mesmas circunstâncias, não se torna correta quando sou eu que decido e errada quando é você que decide, uma vez que temos diferentes posições quanto à questão. Os agentes morais não possuem o poder mágico de tornar as coisas certas ou erradas de acordo com seus desejos. Se assim o fosse, a moralidade seria apenas uma brincadeira idiota. Assim, se o que faz com que seja errado matar um animal quando o assassino sou eu é o dano para o próprio animal, então a mesma coisa é errada quando praticada por qualquer outro agente, haja vista que aquilo que torna errado o ato (o dano para o animal) não muda de acordo com a opinião diferente de cada agente. Vimos em mais detalhes esse tópico em outros textos com críticas às posições relativistas, subjetivistas e emotivistas na ética13.

Sendo assim, é por isso que todo agente moral sério reconhece que deve tentar convencer os outros agentes a fazer a coisa correta. Isso não significa que aquilo que estamos tentando convencer os outros agentes a fazerem está necessariamente correto. Como agentes imperfeitos, podemos errar. Felizmente, existe o raciocínio ético. Num debate, podemos esclarecer nossas posições, analisar e avaliar os argumentos de ambos os lados. Por isso, o debate é tão importante. Isso mostra que é totalmente equivocada a idéia de que os debates em ética são meras divergências de opinião, e que não há posição moral melhor do que outra, nem como demonstrar isso com base em argumentos. Isso pode ser verdade quanto a escolher um time de futebol para torcer, mas questões de ética são muito diferentes disso. Uma diferença crucial é que a existência de um raciocínio ético pode revelar preconceitos, atitudes tendenciosas, parciais, falhas de lógica – o que torna possível existir argumentação em questões de ética.

Dessa maneira, um agente moral sério que reconhece o dever de praticar o veganismo terá de reconhecer imediatamente o dever de fazer ativismo (no sentido de trazer para o debate a consideração moral pelos animais, com vistas a mudar a situação que os animais se encontram atualmente). As outras motivações listadas não possuem essa implicação. E é exatamente isso que geralmente acontece: muitos dos que adotam o veganismo por algum motivo que não a ética acham que é errado tentar convencer os outros a pararem de explorar os animais. Essas pessoas, talvez por estarem acostumadas a tomar suas decisões com base em crenças religiosas, confundem ética com religião. Para essas pessoas, colocar um ponto de interrogação na posição moral de alguém é uma ofensa grave, enquanto que permitir que, baseado nessa posição moral (imoral, na verdade), a pessoa pratique o massacre de bilhões de indivíduos sencientes, não causa a mínima inquietação. Mas, isso não pode estar correto. E não está porque é especista, já que vê como tendo maior peso a preferência tirânica do humano em não ter suas convicções desafiadas em relação à preferência básica dos não-humanos em não sofrer e não morrer. Tal posição está errada também porque se baseia na distinção irrelevante entre ação e omissão (o dano de deixar alguém infeliz por ser contrariado num debate pesa na consciência, mas o dano de causar o sofrimento e morte a bilhões de criaturas por não querer debater com alguém não pesa, por se tratar de um dano por omissão).

Tal absurdo moral é evidente em comentários do tipo “veganos estão impondo suas preferências pessoais aos outros”. Tal afirmação é errada por dois motivos: a prática do veganismo não é defendida como uma preferência pessoal, mas como uma posição ética (espero que, com os comentários acima, tenha ficado clara a distinção entre as duas coisas); e, na realidade, quem está impondo suas preferências pessoais (que são eticamente indefensáveis) e causando morte e sofrimento de bilhões de seres, são os que consomem animais (e os que se opõem a desafiar suas crenças). Essa estratégia é muito comum: inverter a descrição dos fatos para mascarar a real imposição.

Assim, por implicar o debate ético e o ativismo, a motivação ética para o veganismo tem maiores probabilidades de trazer à tona melhores conseqüências. Se, nesse ponto, for objetado que debater sobre o assunto, por mais respeitosamente que seja feito, pode deixar as pessoas tão revoltadas a ponto de jamais quererem respeitar os animais, sugiro que tomemos como exemplo nossa própria história: por milhares de anos o especismo não foi desafiado, e o resultado disso é o massacre diário de bilhões de animais; a maioria das pessoas que deixou de praticar o especismo assim o fez porque alguma vez na vida se deparou com algo que colocava o especismo contra a parede. Isso mostra o quão urgente é combater o especismo.

4) Exploração em outras áreas: Os animais não-humanos são danados em inúmeras outras áreas, para além da alimentação: experiências médicas, testes de produtos, entretenimento, vestuário, fabricação e venda de animais para companhia, abandono de animais, etc. Alguém que adota uma alimentação vegana movido pela consideração pelos animais automaticamente se oporá também a essas práticas, pois o motivo que fundamenta sua oposição num caso aparece também no outro. A mesma coisa não acontece necessariamente nas outras motivações.

Quanto a esse ponto é importante mencionar que, em alguns momentos, o movimento de defesa animal acaba passando a idéia de que sua causa é idêntica (e se resume) ao veganismo (em termos de abstenção da alimentação de origem animal). A ênfase no veganismo é compreensível, pois o uso de animais para consumo envolve, de longe, o maior número de mortes e provavelmente os sofrimentos mais extremos. Se a ênfase se dá por esse motivo, segundo entendo, está correta. O problema surge quando se passa, ainda que inconscientemente, a idéia de que a luta contra o especismo se resume a isso. Talvez daí venha a idéia enganosa, de que, em termos de conseqüências para os animais, qualquer motivação para a prática do veganismo dá na mesma. Tal confusão acabou criando outra, muito ruim para os animais: a de se pensar que o movimento pelo vegetarianismo (ou veganismo) e o movimento pela igualdade animal são a mesma coisa. Assim, é criada uma falsa esperança: a de que as coisas melhorem para os animais a partir de ações de um movimento que, apesar de ter em comum com o movimento anti-especista o fato de não consumir animais, difere radicalmente deste por não ter como meta abolir a mentalidade e o modo de vida especista. O veganismo é uma parte (uma parte bem importante) do movimento pela igualdade animal – mas abolir o especismo não se resume a isso. Abolir o especismo, infelizmente, não é uma parte importante (sequer é uma parte) do movimento pelo vegetarianismo (ou veganismo) em geral.

5) Danos naturais: Como vimos anteriormente, a vida natural é resultado dos processos cegos evolutivos que favorecem a adaptação dos genes, e não o bem dos indivíduos portadores desses genes. Isso implica que a vida natural contém, independentemente da intervenção humana, sofrimentos inimagináveis a quantidades gigantes de indivíduos sencientes – de tal modo que, no geral, a quantidade de sofrimento supera, de longe, a quantidade de satisfação. Predação, inanição, doenças, parasitismo, afogamento, congelamento e morte por queimadura são a norma do dia-a-dia na vida natural (independentemente de intervenção humana). Pode ser que, se levarmos em conta o nível de sofrimento por indivíduo, a vida numa granja industrial seja um pouco pior. Contudo, a vida no mundo silvestre não fica longe. E, se levarmos em conta o número de indivíduos sofrendo em situações extremas, a vida silvestre é infinitamente pior14.

Aquela pessoa que adota o veganismo por uma consideração ética pelos animais não-humanos considerará esse sofrimento como digno de atenção moral. Se aquilo que torna errado causarmos dano aos animais é a malignidade do dano enquanto tal, como pode estar correta uma decisão que termina em danos semelhantes, com a única diferença de que são causados por nossa omissão? Novamente, para o animal que sofre o dano, lhe é indiferente se o dano é causado por mim, você, uma criança humana, um psicopata, outro animal, uma doença ou desastre natural. O tipo de agente causal final não muda a gravidade do dano. Se temos condições de pensar numa maneira de intervir com vistas a diminuir o dano e escolhemos nos omitir, somos agentes causais intermediários de tal dano15.

Essa questão é ainda, infelizmente, a questão mais negligenciada (e até mesmo ridicularizada) dentro do movimento anti-especista. Contudo, felizmente, o debate vem crescendo nos últimos anos16. O que quero apontar é que uma preocupação moral séria com os animais conduz inevitavelmente a essa questão, coisa que não acontece com as outras motivações – principalmente quando a motivação para o veganismo se baseia numa veneração pelos processos naturais ou por motivos ecológicos. Como vimos acima, tais posições são injustificáveis.

6) Outras questões éticas: Alguns defensores de outras motivações para adoção do veganismo costumam alegar que não devemos isolar uma questão de outras. O veganismo, argumentam, tem impacto sobre a vida dos animais, mas também têm impacto sobre outras questões (ambientais, sociais, de saúde, etc.) com as quais deveríamos estar igualmente preocupados. A premissa por trás de tal alegação é a de que devemos nos preocupar igualmente com os problemas éticos de igual gravidade. Penso que tal premissa está correta. Contudo, o que quero apontar é que uma preocupação ética para com os animais não-humanos implica necessariamente em levar em conta outros problemas éticos, coisa que não acontece com as outras motivações. Vejamos um exemplo:

Se alguém adota o veganismo por motivos éticos, têm de se embasar na rejeição do especismo. O especismo é um preconceito similar ao racismo, sexismo, egoísmo e outros de mesma ordem. A rejeição do especismo requer a rejeição desses preconceitos também. Alguém que adota o veganismo por consideração ética pelos animais tem de reconhecer que a vida e o bem-estar desses seres importam moralmente, e importam em igual medida ao dos outros indivíduos. Em termos mais básicos, isso implica em reconhecer que temos um dever de evitar causa malefício e de causar benefício aos indivíduos atingidos por nossas decisões; e que devemos dar igual consideração a esses indivíduos. Assim sendo, alguém que reconhece esse aspecto automaticamente precisa reconhecer o dever de se preocupar com e raciocinar sobre outras questões éticas importantes. Por exemplo, em quais casos um pedido de eutanásia deve ser atendido? Sob quais condições um aborto se justifica? Qual deve ser nossa prioridade de doações de recursos? O quanto deveríamos doar? Quanto de tempo do nosso dia a dia deveríamos passar preocupando-nos com nossa vida pessoal e o quanto deveríamos passar dedicando-nos a ajudar os que não conhecemos?

Essas e outras questões estão implicadas para alguém que reconhece o dever de levar os outros com consideração imparcial. O agente moral normalmente constrói um projeto de uma vida ética. Ou seja, não se resume a uma única questão. Desnecessário dizer que isso não está necessariamente implicado nas outras motivações. Pior, alguém quem adota algumas das outras motivações mencionadas já possui uma resposta pronta (e, geralmente, errada) aos problemas éticos importantes: “o correto a fazer é o que beneficia minha saúde” ou, “devemos deixar a natureza seguir o seu curso”, ou “na Bíblia está escrito que não pode!” ou “Que importância tem o sofrimento dos indivíduos?” ou “Mas, eu não tenho simpatia por esses indivíduos; por que deveria me importar com isso?”.

CONCLUSÃO

Afirmar que a preocupação ética pelos animais deveria ser o motivo principal para a adoção do veganismo não exclui outros motivos secundários – desde que fique claro o seu papel secundário. Como vimos, a preocupação consigo próprio pode também ser um dever, e, além disso, pode tornar alguém mais forte para lutar pelos outros. O fomento da simpatia por seres específicos, por sua vez, pode ser o primeiro passo de alguém rumo a uma consideração igualitária por todos os seres sencientes. Contudo, nem todos os motivos alegados possuem essas implicações benéficas. Vimos que o apelo à autoridade; a perspectiva adotada pelo movimento ecologista de que o indivíduo não possui valor em si; e a veneração por processos naturais são um completo obstáculo ao bom raciocínio ético.

A pluralidade de motivações é boa somente na medida em que proporciona melhores conseqüências para os atingidos pelas decisões advindas dessas motivações, ou quando tais motivações fomentam outras coisas que possuem valor (como o debate racional de idéias, a compaixão, etc.). Assim sendo, não podemos escapar à tarefa de “filtrar” quais dessas motivações têm um bom impacto nas conseqüências e quais não têm. Afirmar que deveríamos fomentar todo tipo de motivação é jogar fora tal responsabilidade.

É compreensível que muitos ativistas adotem a estratégia de não tocar no cerne do problema. Eles pensam: “será extremamente difícil conseguir com que as pessoas larguem o seu especismo, seu egoísmo, seus apelos a autoridades, seus preconceitos naturalistas, etc. – quem sabe não consigo fazer com que elas, apesar disso, beneficiem indiretamente os animais?”. A tentação de adotar tal estratégia é pela sua aparência de “solução provisória a curto prazo”. Apesar de compreensível, durante todo o artigo vimos muitas razões para se pensar que tal estratégia não é eficaz nem em curto nem em longo prazo, assim como não é eficaz nenhuma estratégia que “não corta o mal pela raiz”. A “raiz do mal”, no caso, é o especismo, o egoísmo, a busca por inspiração moral nos processos naturais, o apelo à autoridade, etc. Os problemas não serão resolvidos enquanto tais coisas permanecerem intactas, protegidas por tabus, ocultas por trás de afirmações que também tem como base os mesmo preconceitos.

Não é mera mesquinharia daqueles que partem de uma motivação ética para adotar o veganismo, afirmar que todos devam ter a mesma motivação. Como vimos acima, é descabida a acusação de que “os veganos por ética são narcisistas por quererem que todos tenham sua mesma motivação”. Quando digo que você também tem o dever de adotar o veganismo por motivos éticos não é porque isso o fará se tornar igual a mim nessa característica (isso é totalmente irrelevante; se eu não fosse vegano você ainda teria esse mesmo dever), mas sim porque, caso continue a consumir animais ou adote o veganismo por outros motivos, você causará dano a outros seres sencientes – danos estes que você não conseguirá justificar com argumento plausível algum. A reivindicação da motivação ética é vista como extremamente importante porque tem maiores chances de ter as melhores conseqüências para os atingidos, de uma maneira imparcial – e isso é o que todo agente responsável deveria ver como tendo importância principal. Assim, é descabida a acusação de narcisismo.

Quando se trata de acessar a imoralidade do estupro, da exploração infantil ou da escravidão, ninguém exige mais do que a presença de dano para as vítimas para considerar tais práticas como injustificáveis. Os defensores dos direitos humanos  soariam ridículos se dissessem que a imoralidade do estupro se encontra em algum risco para o torturador, e não para a vítima. Mas, com relação à defesa do veganismo, muitas vezes os defensores dos animais adotam uma postura assim. Com relação à imoralidade de se matar, torturar e escravizar animais não-humanos, os próprios auto-intutulados “defensores dos animais” alegam dezenas de outros motivos para se defender o veganismo, que não o reconhecimento de dano para as vítimas não-humanas. Por que será que, num caso, reconhece-se que o fato de haver dano para a vítima já basta para a prática ser injustificável e em outro coloca-se esse motivo (quando coloca-se) como último em uma lista com inúmeros outros? Isso fica evidente em casos onde aparenta existir uma certa vergonha de defender que é o dano sobre os animais que cria o dever de se adotar o veganismo – e não qualquer outra coisa. Por que isso acontece? Infelizmente, a resposta é: porque mesmo muitos daqueles que se dispõem a defender os animais ainda são muito especistas, ainda que inconscientemente.

Não vamos combater o especismo contornando-o e evitando de tocar o dedo na ferida.

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Notas:

1) Para uma introdução aos tipos de consequencialismo, e como eles se aplicam à ética animal, ver o artigo do filósofo Oscar Horta intitulado “O Igualitarismo e os animais não-humanos”, dividido em duas partes, disponíveis em: http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/20/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-i/http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/30/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-ii/

2) Vários artigos do historiador e ativista Bruno Müller defendem o veganismo motivado eticamente e apresentam argumentos contra a adoção do veganismo motivado por outros fatores: https://www.anda.jor.br/2010/09/22/abaixo-o-vegetarianismo-pela-saude/ ;https://www.anda.jor.br/2010/09/29/vegetarianismo-etico-um-vegetarianismo-integral/ ; https://www.anda.jor.br/2011/02/11/o-sentido-do-vegetarianismo/; https://www.anda.jor.br/2010/10/27/a-redefinicao-de-vegetarianismo-o-horizonte-dos-direitos-animais/

3) Cf. https://www.anda.jor.br/2011/04/04/o-apelo-a-autoridade-nas-campanhas-de-defesa-animal/

4) Mais sobre o assunto em: https://www.anda.jor.br/2010/02/05/sobre-o-raciocinio-etico-a-forma-parte-1/

5) A oposição entre anti-especismo e ecologia é discutida em OLIVIER, David. Por que não sou ecologista? Disponível em: http://www.olharanimal.net/capa/1136-david-olivier/1313-porque-eu-nao-sou-ecologista;  BONNARDEL, Yves. Coelhos sem documento. Disponível em http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1310-coelhos-sem-documentos; Ibid., Quem vai à caça não perde o lugar. Disponível em http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1232-quem-vai-a-caca; Ibid., Contra o Apartheid das espécies: sobre a oposição entre ecologia e libertação animal. Disponível em: http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1121-contra-o-apartheid; Ibid., Para acabar com a idéia de natureza e reatarmos com a ética e a política. Disponível em: http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1239-para-acabar-com-a-ideia ; Ibid., A predação, símbolo da natureza. Disponível em http://www.olharanimal.net/capa/1119-yvesbonnardel/1245-a-predacao-simbolo-da-natureza.

6) Ver, por exemplo CALLICOTT, B. Animal Liberation and Environmental Ethics: Back Together Again. In: HARGROVE, E (ed.). The Animal Rights/Environmental Ethics Debate. Albany: State University of New York Press,
1992.

7) Segundo Jeff McMahan: “the claim that suffering is bad for those who experience it and thus ought in general to be prevented when possible cannot be seriously doubted. Yet the idea that individual animal species have value in themselves is less obvious. What, after all, are species? According to Darwin, they “are merely artificial combinations made for convenience.” They are collections of individuals distinguished by biologists that shade into one another over time and sometimes blur together even among contemporaneous individuals, as in the case of ring species. There are no universally agreed criteria for their individuation. In practice, the most commonly invoked criterion is the capacity for interbreeding, yet this is well known to be imperfect and to entail intransitivities of classification when applied to ring species. Nor has it ever been satisfactorily explained why a special sort of value should inhere in a collection of individuals simply by virtue of their ability to produce fertile offspring. If it is good, as I think it is, that animal life should continue, then it is instrumentally good that some animals can breed with one another. But I can see no reason to suppose that donkeys, as a group, have a special impersonal value that mules lack. Even if animal species did have impersonal value, it would not follow that they were irreplaceable. Since animals first appeared on earth, an indefinite number of species have become extinct while an indefinite number of new species have arisen. If the appearance of new species cannot make up for the extinction of others, and if the earth could not simultaneously sustain all the species that have ever existed, it seems that it would have been better if the earliest species had never become extinct, with the consequence that the later ones would never have existed. But few of us, with our high regard for our own species, are likely to embrace that implication”. Cf. MCMAHAN, J. The Meat Eaters. In: New York Times. September 19, 2010. Disponível em http://opinionator.blogs.nytimes.com/2010/09/19/the-meat-eaters/

8 ) Cf. LINKOLA, P. Can life prevail?: A radical approach to the environmental crisis. London: Integral Tradition Publishing, 2009.

9) MILL, J. S. On Nature. In Nature, The Utility of Religion and Theism. Rationalist Press, 1904, pp. 07- 33. Disponível em http://www.lancs.ac.uk/users/philosophy/texts/mill_on.htm

10) Cf. PEARCE, David. Utopian Surgery: Early Arguments Against Anaesthesia in Surgery, Dentistry and Childbirth. Disponível em: http://www.general-anaesthesia.com/

11) Cf. DAWRST, A. The predominance of wild-animal suffering over happiness: An open problem. In: Essays on Reducing Suffering, 2009b. http://www.utilitarian-essays.com/wild-animals.pdf. Cf. NG, Yew-Kwang. Towards Welfare Biology: Evolutionary Economics of Animal Consciousness and Suffering. In: Biology and Philosophy, 10, 3, 1995, pp. 255−85.

12) Para uma crítica ao egoísmo, ver:  https://www.anda.jor.br/2011/01/03/explicando-por-que-o-egoismo-nao-e-etico/

13) Cf. https://www.anda.jor.br/2009/12/05/e-a-etica-relativa/ e https://www.anda.jor.br/2010/01/05/e-a-etica-subjetiva/

14) O economista Allan Dawrst nos lembra desse problema ao observar a quantidade de insetos. Segundo comentário do filósofo Oscar Horta “As Dawrst claims, this number is so high that it outweighs doubts regarding sentience of insects. Suppose that the odds that insects are sentient were 0.01 measured on a scale between 0 and 1 (this, in my view, is a radically conservative estimate, I would claim that the odds would be far more closer to 1, but let us just accept it for the sake of the argument). Now, there are an estimated 10^18 to 10^19 insects. This means that concern for insects in the world should count as much as concern for at least 10^16 animals that we knew could suffer. It could be claimed that even if insects were sentient, their interests would not count as much as those of mammals. This may be claimed by assuming that mammals’ capacity for wellbeing and suffering would be higher than that of insects. However, this would not change the matter significantly. Suppose that the wellbeing of mammals counted 10,000 times more than that of small animals such as insects. Than would mean that concern for the latter should count as concern for 10^12 mammals, which is still a very significant figure. Cf. HORTA, Oscar. Disvalue in Nature and Intervention. Disponível em http://www.olharanimal.net/pensata-painel/1138-devemos-intervir-na-predacao/1350-oscar-horta

15) Para mais sobre esse tema, ver o meu artigo Sobre Danos Naturais. Disponível em: http://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf

16) Três ótimos artigos sobre o tema são: HORTA, O. Disvalue in Nature and Intervention. In: Pensata Animal, 2010a. http://www.pensataanimal.net/painel/138-devemos-intervir-na-predacao/350-oscar-horta e HORTA, O. The Ethics of the Ecology of Fear against the Nonspeciesist Paradigm: A Shift in the Aims of Intervention in Nature. In: Between the Species 10, 2010b, pp. 163-187. http://cla.calpoly.edu/bts/issue_10/10horta.pdf e BONNARDEL, Yves. Contra o Apartheid das Espécies: Sobre a Oposição entre Ecologia e Liberação Animal. Disponível  em http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=121&Itemid=1

Muitas pessoas, dentre as quais me incluo, reconhecem que as conseqüências sobre os atingidos por nossas decisões (sejam ações, sejam omissões) desempenham um papel fundamental sobre o erro/acerto moral de nossas escolhas. Não significa que, uma vez que aceitamos esse ponto, temos de pensar que as conseqüências sejam a única coisa que importa em nossas deliberações morais. Como já argumentei em colunas anteriores, outras exigências que não dependem de conseqüências (imparcialidade, tratar casos semelhantes de maneira semelhante, oferecer um argumento que tenha premissas verdadeiras e seja logicamente válido, etc.), e que compõem a forma do raciocínio moral, também devem desempenhar um papel fundamental nas nossas deliberações morais. Além disso, não há nada no conseqüencialismo (seja lá de que tipo for: utilitarista, igualitarista, prioritarista, etc.[1]) que nos impeça de fazer avaliações sobre a motivação e o caráter dos agentes morais, pois, embora tais características existam independentes das conseqüências, elas possuem uma forte influência nestas, como veremos a seguir.


[1] Para uma introdução aos tipos de consequencialismo, e como eles se aplicam à ética animal, ver o artigo do filósofo Oscar Horta intitulado “O Igualitarismo e os animais não-humanos”, dividido em duas partes, disponíveis em: http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/20/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-i/ e http://masalladelaespecie.wordpress.com/2010/04/30/el-igualitarismo-y-los-animales-no-humanos-ii/

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