Dos filósofos gregos da Antiguidade, é provável que Plutarco, a quem costumeiramente é atribuído o entendimento moderno do que foi a Grécia Antiga, tenha sido o mais enfático e o mais pontual na crítica à exploração animal. Autor de “De Esu Carnium”, ou “Do Consumo da Carne”, escrito no século I, que integra uma de suas obras mais importantes – “Moralia”, o filósofo platonista, biógrafo e ensaísta grego, que se voltava para a discussão das questões morais, escreveu que o “hábito selvagem” do consumo de carne inclina a mente à brutalidade, ao derramamento de sangue e à destruição quando o endossamos e o reconhecemos como parte de uma realidade natural.
No capítulo “Do Consumo da Carne”, da obra “Moralia”, Plutarco defende que desde que o ser humano teve acesso a uma praticamente inesgotável fonte de alimentos de origem vegetal é inaceitável o consumo da carne de animais que não seria possível “sem mascarar o sabor do sangue com milhares de especiarias”. A contrariedade do filósofo grego, que mais tarde influenciaria o vegetarianismo ético no Ocidente, era baseada em uma recusa moral, já que a sua rejeição à carne como alimento era uma consequência da ponderação de que o consumo de carne depende do sofrimento e da morte dos animais, logo uma desconsideração do valor da vida não humana.
Plutarco também escreveu que, ao assar ou ferver a carne, o ser humano altera o seu gosto natural e depois se intruja usando especiarias e mel para cobrir o sabor do sangue e “esconder a sua culpa por comer algo que tinha uma alma”: “Me pergunto qual foi a sensação do primeiro homem que colocou a carne de um animal assassinado em sua boca. […] Ele chamou de iguarias as partes que um animal usava para rugir, falar, mover e ver.” […] Como seus olhos podem admirar o sangue de criaturas abatidas, esfoladas e esquartejadas? Como seu nariz pôde suportar o mau cheiro?”
Para o filósofo grego, se uma pessoa realmente acredita que nasceu para consumir carne, ela deve pelo menos assumir a responsabilidade de matar o que há de comer. Ele diz que quem se considera, de fato, carnívoro, precisa abdicar do uso da faca, da marreta ou do machado; e agir como os lobos, os ursos e os leões, que se alimentam ao mesmo tempo em que matam. Plutarco desafia as pessoas a “rasgarem um boi com os dentes”, “roerem um porco ainda vivo” ou a reduzirem “um cordeiro ou uma lebre em pedaços” usando apenas as mãos e a boca.
Tal costume de não assumir a responsabilidade sobre o abate é o que permite a dissociação entre a morte animal e o consumo de carne. Assim permitindo que o paladar esteja em acordo com a barbárie alimentar. Plutarco cita um episódio em que um lacedemônio comprou um peixe em uma pousada e o entregou ao seu senhorio. O homem então exigiu que o preparasse com queijo, vinagre e óleo. O lacedemônio respondeu que se tivesse todos esses ingredientes, não teria porque comprar o peixe:
“Mas somos tão despreocupados em relação ao nosso luxo sangrento que atribuímos à carne o nome de carne; e então exigimos outro tempero para a mesma carne, misturando óleo, vinho, mel, salmoura e vinagre, com especiarias árabes.” Na perspectiva plutarquiana, Pitágoras se absteve do consumo de carne com razão, ponderando que aquilo a que as pessoas chamam simplesmente de “carne” era parte do corpo de um animal não humano, logo importante a ele. Plutarco condenava a banalização do sangue dos corpos abatidos, esfolados e maculados, observando que o mau cheiro era sempre ofuscado como forma de “não ofender o paladar”.
Ele admite que em outros tempos talvez o consumo de carne pudesse ser justificado pela escassez de alimentos vegetais, dependendo da localização geográfica. Porém, em sua época, o consumo de carne já não era visto como essencial, mas somente uma reafirmação de status, distinção social, e expressão de extravagantes concupiscências. “O seu crescente e despreocupado capricho relacionado à variedade excessiva de provisões [de origem animal] trouxe prazeres tão insociáveis como estes contra a natureza”, anotou Plutarco. Tal observação foi feita pelo filósofo arrazoando que à época uma minoria estava imersa nos excessos da carne. Por isso, ele a considerava também um costume insociável, bravio e segregacionista.
“Que abundância de coisas brotam para o seu uso! De quantas vinhas frutíferas você pode desfrutar! Que riqueza você recolhe dos campos! Que iguarias das árvores e das plantas, você pode reunir! Você pode fluir e preencher-se sem poluir. […] Quanto a nós, caímos sobre a parte mais triste e assustadora do tempo, na qual fomos expostos a desejos múltiplos e inextricáveis.”
O filósofo defendia que todos poderiam viver melhor, de forma mais justa e pacífica, se partilhassem da mesma nutrição sem alimentos de origem animal. No seu entendimento, a exaltação do consumo da carne trouxe a gula e a regeneração, e transformou o racional em irracional. “Que refeição não é cara? Aquela em que nenhum animal é morto”, afirma. Valendo-se dos ensinamentos de Empedócles, Plutarco cita que não devemos ignorar o sentimento, a visão, a audição, a imaginação e a intelecção que cada animal recebeu da natureza para adquirir o que é aceitável e evitar o que é desagradável.
Ele reconhecia a grande diversidade dos alimentos de origem vegetal, assim não vendo qualquer justificativa para que os humanos transgredissem o que ele definia como “lei da natureza”, que era a não intervenção na vida não humana visando o abate que nada atende além dos vícios do paladar. “Por que se deixar levar pela voracidade e pelo frenesi nesses dias, contaminando-se com o sangue, quando há abundância de alimentos necessários à sua subsistência? Por que você acredita que a terra não é capaz de mantê-lo vivo? […] Você não se envergonha de misturar as frutas e os vegetais com sangue e morte?”, questiona.
Plutarco associava à naturalização do consumo de carne e da violência contra não humanos com os hábitos dos mais abastados, porque esses representavam a maior parte dos glutões consumidores de carne de seu tempo, que foram os responsáveis por despertar o mesmo ímpio desejo entre os plebeus e miseráveis. “Ó, terrível crueldade! É verdadeiramente uma visão desconfortável a mesa de pessoas ricas que mantêm cozinheiros e fornecedores à sua disposição para abastecê-los com corpos mortos em sua alimentação diária. Mas é ainda pior ver que os mamíferos são afastados da natureza para que os matem em quantidade que nem mesmo consumirão. Estes, portanto, foram mortos sem propósito”, critica.
Ele qualificava como um equívoco o ser humano se intitular carnívoro, ponderando que nos falta a aptidão e as características dos animais naturalmente carnívoros: “Não temos o bico de um falcão, garras e dentes afiados, nem mesmo um estômago apto a digerir adequadamente uma alimentação pesada de carne. Partindo da suavidade da língua e da lentidão do estômago para digeri-la, a natureza parece renunciar toda a pretensão dos víveres carnudos. […] Uma vez, Diógenes arriscou-se a comer um grande contingente de carne crua, para que pudesse se desfazer da carne preparada no fogo; e enquanto vários sacerdotes estavam ao seu redor, ele colocou a cabeça na sua plataforma, o peixe na boca e disse: ‘É por sua causa, senhores, que me coloco em perigo e corro esse risco.’”
Plutarco não negava que o ser humano é capaz de consumir carne, porém reconhecia que a tolerância humana para o consumo de carne é bem diferente daquela dos animais carnívoros, já que nossas limitações são muito mais axiomáticas: “Temos os prejuízos provocados tanto no corpo como na alma dos consumidores. Os incômodos da digestão e aquela desconfortável sensação de peso.” O filósofo grego acreditava que o consumo de carne brutificava a mente e o intelecto humano. Por isso, frisa em “Do Consumo da Carne”, que o próprio estômago não é culpado pelo derramamento de sangue, mas é involuntariamente maculado pela nossa intemperança.
Ele narra que os primeiros homens a alegarem que não devemos justiça aos animais foram os primeiros a baterem o “aço maldito”, fazendo com o que o boi sentisse a lâmina penetrando sua carne. Baseando-se em suas pesquisas, Plutarco concluiu que tiranos e opressores foram os primeiros a legitimarem o derramamento de sangue. Cita como exemplo o primeiro homem que os atenienses mataram deliberadamente. Mais tarde, incorrendo na prática de matarem outros sem direito a um julgamento justo.
Logo passaram a violentar desnecessariamente animais selvagens e a comê-los. Insatisfeitos com a carne das “feras”, os atenienses passaram a matar pequenas aves e peixes: “E o desejo do abate, pela primeira vez experimentado e exercitado, chegou ao cordial boi, às ovelhas que nos vestem, e ao pobre galo que guarda a casa. Até que, pouco a pouco, a força insaciável fora fortalecida pelo uso, e os homens chegaram ao abate de homens, e ao derramamento de sangue, e às guerras.”
O filósofo grego via o hábito de criar animais dóceis com fins de abate, ou seja, seres indefesos, incapazes de escaparem da crueldade humana, como um exemplo clássico da tirania e da vilania em relação às outras espécies. E mais do que isso, como uma prova incontendível da ação humana em arbitrariedade aos desígnios da natureza. Afinal, sempre escolhiam os animais mais fáceis de serem domesticados fora da natureza selvagem. E a esses animais era legado um destino cruel. Ferros incandescentes eram espetados nas gargantas dos suínos, visando garantir uma carne mais tenra e macia conforme o sangue fluía com mais facilidade em decorrência dos golpes.
Também era costume saltar sobre os ventres e os úberes de porcas prenhas, pouco antes destas parirem, fazendo com que o sangue se misturasse ao leite e aos fetos – o que deixava a “carne mais suculenta”. Os homens cegavam cisnes e outras aves criadas em cativeiro, com a finalidade de as condicionarem a uma alimentação forçada que pudesse enriquecer pratos exóticos. E nada disso tinha relação com a necessidade, mas simplesmente com a glutonaria, o prazer da vilania, na concepção plutarquiana. “O início de uma dieta viciosa é acompanhado por todos os tipos de luxo e carência”, censura.
Dentre os filósofos gregos da Antiguidade, Plutarco recomenda em “Do Consumo da Carne” que aqueles que buscam uma formação humana mais civilizada devem seguir os ensinamentos de Pitágoras e Empedócles, em uma clara referência à defesa da abstenção do consumo de animais. São pensadores que, segundo ele, “incitam os seres humanos a se aproximarem dos outros membros da criação”:
“Chamas selvagens e ferozes outros carnívoros, os tigres, os leões e as serpentes, enquanto manchas no sangue as tuas mãos, e em espécie alguma de barbárie lhes ficas inferior. E para eles, todavia, o assassinato é apenas o meio de se sustentarem; para ti, é uma lascívia supérflua. Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa — a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções, quando na realidade são instâncias e súplicas e rogos que cada um deles nos dirige dizendo: ‘Não é da verdadeira satisfação das vossas reais necessidades que queremos livrar-nos, mas da complacente luxúria dos vossos apetites.’”
Saiba mais
Plutarco nasceu em Queroneia, na Beócia, na Grécia Central, no ano de 46, e faleceu em Delfos, também na Grécia, no ano 120.
Além de “Moralia”, outra obra importante do filósofo grego é “Vidas Paralelas”.
Referências
Plutarchus, Moralia: Volume VI, Fascicle 1 (Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana). C. Hubert. H. Drexler. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. K.G. SAUR VERLAG. Segunda reimpressão da segunda edição de 1958 (2002).