A cena do crime é um “caldeirão” (provavelmente, um antigo lago) hoje coberto por um hotel na cidade de Araxá, em Minas Gerais. As vítimas são mastodontes sul-americanos (Stegomastodon waringi), cuja morte em massa há milênios está sendo elucidada passo a passo por uma equipe de paleontólogos. Os ossos dos paquidermes extintos dão pistas sobre todo tipo de fenômeno antes e depois da morte, como o tempo de exposição das carcaças (uns dois anos, a julgar pela presença de larvas de besouros), a idade dos animais, sua vida social e até a possível presença de caçadores humanos nas redondezas.
“Os mastodontes de Araxá são a maior assembleia [conjunto] de fósseis do tipo nas Américas e estavam parados desde os anos 1950, quando foram estudados pela última vez”, contou ao G1 o paleontólogo Leonardo Santos Avilla, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). “Por isso, nós achamos que seria interessante voltar a esse material e tentar reconstruir ao máximo a ecologia e o comportamento desses animais, e também a maneira como os restos deles acabaram sendo preservados.”
A abundância de restos mortais dos bichos, que em vida tinham tamanho equivalente ao de um elefante-asiático, facilita a vida dos pesquisadores na hora de estudar esses detalhes. A começar por um dos menos agradáveis: as larvas que comeram os finados mastodontes. Estudando cinco vértebras dos bichos, um dos alunos de Avilla, Victor Hugo Dominato, contou mais de 40 perfurações que muito provavelmente foram criadas por besouros comedores de carniça especialmente para seus “bebês”. As conclusões estão num artigo na “Revista Brasileira de Paleontologia”.
O formato e o tamanho dos buracos, estudados detalhadamente com a ajuda de moldes de biscuit, deixa claro que eles foram ocupados por esse tipo de inseto na fase de pupa. “Os besouros adultos têm um aparato bucal muito forte, adaptado para perfurar o osso”, explica Avilla. “Os pais abrem o buraco e colocam a larva lá dentro. Isso dá proteção à pupa e também bastante alimento, porque a fase medular [o popular tutano] do osso é muito nutritiva”, diz o paleontólogo. O curioso é que perfurações parecidas estão presentes em ossos de dinossauro, o que indica que a relação entre os besouros comedores de carniça e o cadáver de grandes animais tem dezenas de milhões de anos.
A fase larval dos bichos tem cerca de 7 mm, conta Dominato. Como os besouros não conseguem penetrar as camadas de carne e gordura do bicho ainda inteiro, os pesquisadores calculam que se passaram dois anos entre a morte dos mastodontes e a “colonização” de seus ossos pelas larvas. “É a fase final da necrofagia. Antes disso, outros carniceiros também parecem ter se aproveitado da carcaça. Nós achamos sinais de mordidas de canídeos [parentes selvagens do cão, como raposas e cachorros-do-mato], por exemplo”, afirma ele.
Sem culpados
Os indícios, porém, não apontam, ao menos por enquanto, para nenhum assassino em potencial — provavelmente porque não há um, dizem os pesquisadores. Dimila Mothé, também aluna de Avilla, explica que os sedimentos encontrados com os ossos no “caldeirão” de Araxá são uma mistura heterogênea de areia e pedras dos mais variados tamanhos — fenômeno cuja interpretação mais provável é uma única grande enchente que sepultou todos os indivíduos ao mesmo tempo.
Outra pista de que o fim da população de Araxá foi catastrófica vem dos dentes dos bichos. Mothé estudou os molares dos mastodontes, os quais, como os elefantes modernos, trocam periodicamente os dentes conforme eles vão se desgastando com a alimentação. Molares novos nascem constantemente no fundo da boca e vão sendo empurrados para a frente. Dependendo do padrão de desgaste no dente e da posição que ele ocupa na boca, é possível fazer uma estimativa razoavelmente precisa da idade do indivíduo.
Com base nesses dados etários, o que se pode dizer com certeza é que no “caldeirão” havia indivíduos de todas as idades, de bebês a idosos. Não é o que se espera de uma população que estivesse sendo caçada sistematicamente por seres humanos, por exemplo, que normalmente selecionariam uma certa faixa etária para atacar. Já um conjunto de todas as idades é o que se espera de uma matança indiscriminada ligada a uma catástrofe natural, diz Avilla. Os resultados estão num artigo submetido à revista científica “Paleobiology”.
Caçava ou não caçava?
O fato de não haver caça sistemática, no entanto, não significa que não houvesse caça nenhuma. Tomografias feitas em um dos ossos dos bichos indicam um corpo estranho alojado lá dentro. “O que dá para dizer é que não se trata de osso, e que a lesão cicatrizou totalmente, ou seja, o animal não morreu daquilo”, diz Avilla. Seria uma ponta de lança de um dos primeiros brasileiros?
Em tese, é algo possível, já que os mastodontes sumiram da América do Sul na época em que os primeiros humanos chegaram aqui — embora ninguém saiba com precisão a idade do grupo de Araxá. “Por enquanto, não temos nenhuma confirmação de caça desses grandes mamíferos por humanos no Brasil. Seria o primeiro caso”, diz Avilla. Mais análises, contudo, são necessárias para confirmar a hipótese.
Fonte: G1