Anderson França é um escritor com muitos seguidores no Facebook. Admito que até pouco tempo atrás eu não sabia quem ele era, até que alguém me mostrou algumas de suas publicações fazendo críticas e oposição aos veganos e ao veganismo. Antes de escrever este texto, decidi dar uma rápida olhada no trabalho dele. Me parece um autor com uma perspectiva interessante da vida e do mundo, que tem uma preocupação com a questão da justiça racial e social; que não recorre a subterfúgios para abordar a realidade como é, de forma direta e clara. Porém, quando publica alguma crítica a veganos ou ao veganismo revela falta de entendimento do assunto, talvez por pré-conceito baseado em recortes unilaterais.
No dia 6 de fevereiro, ele publicou um texto declarando que “quando veganos dizem ‘humanos’, eles não querem assumir a responsabilidade dos humanos BRANCOS pelo consumo em massa de carnes. Eles mandam um ‘humanos’ pra tu pegar no ar.” Desculpe-me, mas essa interpretação não condiz com a realidade. O uso do termo “humanos” se sustenta em uma questão óbvia de semântica e literalidade. O veganismo é sobre nossas responsabilidades enquanto espécie, independente de cor, etnia ou qualquer outra coisa. Não se trata de amortização de responsabilidades, e isso parece incomodá-lo.
A questão é que se dizemos que os “brancos são os grandes culpados pela exploração de animais”, isso significa então que está tudo bem se os outros continuarem explorando e consumindo animais porque pretensamente a responsabilidade deles seria menor. Não, isso não é coerente e justo. Do ponto de vista do veganismo, qualquer ser humano envolvido na desnecessária exploração e objetificação animal contribui com esse sistema, de forma consciente ou inconsciente, já que atua como um reforçador dessa trivialização em menor ou maior proporção. Se me alimento de animais, não interessa a qual grupo étnico eu pertenço, porque evidentemente ajudo a endossar esse sistema exploratório.
Sim, “os brancos” foram os maiores responsáveis pela introdução do sistema industrial de criação de animais após a Segunda Revolução Industrial, até por uma questão óbvia de maior controle dos meios de produção. Não creio que isso seja novidade para vegetarianos e veganos. Não conheço ninguém que negue isso. Contudo, em menor ou maior nível, praticamente todos os povos humanos contemporâneos estão envolvidos na exploração e na objetificação animal.
O que muda basicamente são as motivações dessa exploração e desse consumo. Há minorias, como os inuítes e alguns outros povos nativos que vivem em áreas remotas, que fazem isso, de fato, por uma questão de sobrevivência. E há populações maiores, de bilhões de pessoas, às quais pertencemos, que estão nessa por fatores históricos e culturais. Afinal, desde muito cedo, nós, assim como nossos ancestrais, somos motivados a consumir animais porque estamos imersos na ilusão de que se alimentar de seres não humanos é essencial, por força de uma propaganda que visa apenas o lucro e que se fortaleceu a partir do início do século 20.
Segundo Anderson França em 18 de março de 2017: “São 9 da manhã, e Maria, vó de 4 filhos, pede pra um deles ir no mercadinho comprar uma caixinha de Nuggets. Ou como minha mãe, que no aperto, era linguiça da mais barata, UMA, pras bocas dividirem com arroz. Seco. Ou na família de milhões de pessoas, onde ‘a opção da proteína’ não é uma opção, as pessoas não comem carne porque querem, veganos.” O exemplo acima se enquadra na frágil crença na necessidade da proteína de origem animal. A população humana tem necessidades proteicas bem modestas, com exceção de atletas e praticantes de atividades físicas de alta intensidade. Se Maria ou a mãe de Anderson França tivessem descartado os nuggets ou a linguiça, a refeição teria sido mais saudável. Mas não o fizeram por costume e desconhecimento, o que é muito comum.
Negamos que, por falta de informação ou não, muitos comem animais porque gostam ou por hábito, e até mesmo quando escolhem as chamadas “piores opções” ou as “opções mais baratas”. Afinal, que tipo de nutriente essencial à vida alguém pode obter consumindo empanados, linguiças e salsichão? Não seria um gesto de amor ou altruísmo alertar as pessoas sobre os malefícios desses alimentos em vez de defender esse consumo apenas para fazer oposição ao veganismo?
E por que as pessoas insistem no discurso que devemos comer arroz, feijão e carne? Mero costume, e a carne quase sempre é destacada até com mais importância do que outros alimentos vegetais nutritivos e mais baratos. Duvida? Procure por promoções em feiras e mercados. Eu, por exemplo, compro mais de 10 quilos de vegetais com R$ 15 a R$ 20 em promoções semanais; e são alimentos que suprem diversas das minhas necessidades nutricionais. Acha isso impossível? No Facebook, há grupos e páginas como Veganismo Popular, Veganos Pobres Brasil, Vegana Pobre e outros que auxiliam quem acredita que não tem condições financeiras para ser vegetariano ou vegano. Os participantes podem inclusive interagir com moradores da mesma cidade, tirarem dúvidas, etc.
Quando me falam da impossibilidade em ser vegano, costumo contar a história do poeta sírio cego Al Ma’arri que viveu no século XI e enfrentou grandes períodos de miséria em sua vida. Ele se alimentava principalmente de feijões e teve uma velhice tranquila. Al Ma’arri não consumia nada de origem animal. Então como alguém pode dizer que hoje é impossível não se alimentar de animais? Que hoje é difícil ser vegano se há centenas de anos outros trilharam esse caminho?
Em crítica aos veganos, Anderson França declarou em 18 de março de 2017 que “O agricultor SOCA veneno na fruta, e você compra, no seu supermercado da Zona Sul, após uma sessão de meditação no Jardim Botânico, tudo em harmonia, coloca na egobag, vai de bicicleta, passa sem falar com o porteiro, continua sendo um/uma egoísta que, agora, acha que é o momento de dizer pra milhões de pessoas, o quanto você estava certo. Que vida mesquinha, caras. Sai desse quadrado. Milhões de trabalhadores comem mal, comem comida processada, porque o tempo que gastam no trânsito, no trem, ônibus, BRT, Kombi, ida e volta, e o tempo no trabalho, lavando, descascando, embalando a fruta que você come depois do Ioga, isso tudo tira deles o momento com a família, tipo Fátima Bernardes no comercial com sorriso de orelha a orelha, servindo um prato com comida de plástico feita na agência de publicidade, com carininha, cenorinha, poesiazinha.”
Bom, eu não sei em quem o autor se baseou para fazer tal afirmação, mas é estranho usar um exemplo tão caricato e pejorativo para se referir a veganos de forma generalizada. Quem se preocupa com vidas não humanas é egoísta? Todos os veganos vivem na “Zona Sul”? Todos os veganos ignoram o porteiro? Todos os veganos têm tempo de sobra? É importante entender que veganos também lutam contra o uso de agrotóxicos, que por sinal é consumido em maior quantidade por quem consome animais do que por quem não consome, já que os animais criados para consumo se alimentam de enormes quantidades de vegetais contaminados com defensivos agrícolas, para não dizer pesticidas, praguicidas ou biocidas. Afinal, o ser humano tem predileção por matar e consumir animais herbívoros, já que a ideia de consumir um animal que comeu outro animal o enoja, a não ser quando ele é o próprio comedor de animais, o que é um ruidoso paradoxo.
Sobre as pessoas se alimentarem mal, como citado pelo escritor, creio que tenha mais relação com desinformação do que com tempo. Não considero a falta de tempo uma justificativa válida para não se alimentar um pouquinho melhor. A maioria dos veganos que conheço têm uma rotina bem atribulada. Há aqueles que saem de casa às 4h e retornam à noite. Quando o tempo é escasso, dedicam algumas horas do final de semana a prepararem alimentos e congelá-los para consumirem no decorrer da semana. Ou então improvisam com alimentos de rápido consumo, até mesmo frutas. Sou da seguinte opinião, se você não se importa com a sua própria vida, e prefere sabotá-la, siga em frente, mas saiba que talvez amanhã você não esteja aqui para amparar seus filhos e outros familiares. Não há nada que justifique o consumo de animais no mundo em que vivemos, muito menos o pretexto da saúde.
Também me chamou a atenção uma publicação de Anderson França do dia 27 de junho de 2017 em que ele faz publicidade de um prato de “salmão com arroz basmati e legumes” por R$ 38 + taxa de entrega. Partindo de alguém que publica textos sobre acessibilidade e critica o veganismo por ser um “movimento elitista” e inacessível, reconheço que foi uma estranha surpresa. Fiquei imaginando quantas frutas, legumes, tubérculos e leguminosas eu poderia comprar com R$ 38 + taxa de entrega. Daria para alimentar ocasionalmente vários veganos. Provavelmente, eu compraria mais de 30 quilos de vegetais em um bom dia de promoção, e sem incentivar a exploração animal ou desconsiderar o risco de intoxicação por consumo de salmão criado em cativeiro e colorido artificialmente.
Outro ponto de reflexão é que a idealização de “qualidade de vida” associada ao consumo de “carnes nobres”, que parte de um equivocado senso comum, e é reproduzida por tanta gente, é a mesma dos glutões burgueses britânicos da era vitoriana, dos abastados da Grécia Antiga e dos imperadores romanos, que faziam da carne um símbolo de ostentação, de segregação social. Sendo assim, será que é coerente o oprimido buscar tomar parte em hábitos perpetuados a partir de uma consciência opressora? Não seria isso uma contradição? Ou será que o discurso de oprimido deve girar apenas em torno do que não diz respeito às nossas próprias inconsistências?
Anderson França enfatizou também que veganos brancos fazem parte de “uma civilização baseada na conquista e submissão de outros povos, e criam narrativas que sempre os coloca no centro.” Como veganos podem se colocar no centro se eles lutam contra o antropocentrismo e o especismo? Tomar para si o protagonismo de algo pode ser uma falha humana, mas sem relação com ser vegano. Uma rápida consulta sobre o conceito de veganismo rebate essa concepção não apenas incorreta como capciosa.
Eu já acredito que ao defender o consumo de animais o autor está endossando exatamente o que critica: “a civilização baseada na conquista e submissão de outros povos”. Se uma pessoa financia esse sistema, usufruindo do que ele oferece, ela tem responsabilidade sobre isso, não importando sua cor ou etnia, já que quando falamos em objetificação ou coisificação visando lucro o que importa é apenas uma coisa – números, tanto faz a cor ou etnia de quem está consumindo ou pagando.
Segundo Anderson França sobre o “pensamento eurocentrado” e o veganismo em 6 de fevereiro: “Visa manter os privilégios do sujeito branco, e de seus descendentes. Portanto, não seria demais revisitarmos o que estamos chamando de SISTEMA nos últimos 2 mil anos, uma vez que esse sistema passa por cima de outros para manter a sua narrativa. É aí que mora o perigo. Não é nem sobre o que você põe na sua boca ou no seu corpo, ou porque ‘ama’ animais, ou porque entende que isso seria justo com o ecossistema. É porque, por trás disso, ainda persiste a mão dessa cultura sobre outras.”
Veganos podem ter atitudes equivocadas como qualquer pessoa que luta por outra causa. No entanto, é importante ter o cuidado de não reproduzir inverdades, dando a entender que o veganismo é um movimento de “perpetuação do poder dos brancos”. Em 1944, o movimento vegano surgiu sim e formalmente por iniciativa de um inglês, logo caucasiano, chamado Donald Watson. Sim, em uma realidade europeia, mas por interesse de um carpinteiro que vivia na pequena Keswick, e que não tinha qualquer pretensão financeira em criar um movimento, mas apenas um anseio de fazer com que outras pessoas, assim como ele, passassem a reconhecer os animais como sujeitos de uma vida. Watson não pertencia a qualquer elite e se dedicava a isso voluntariamente.
Não vejo sentido em rivalidades desnecessárias que tencionam desmerecer uma causa simplesmente porque do alto de nossas predileções individuais não nos interessa porque não são sobre nós, mas sim sobre outras espécies. Todo tipo de exploração é tema de grande urgência se envolve vidas imersas em um universo de desconsideração. E nesse momento, o mais importante talvez seja um outro olhar para além do que chamamos de “nossas prioridades”.
Há muitas pessoas de causas humanitárias, e me incluo entre elas, que se tornaram veganas e ativistas dos direitos animais. O veganismo, como uma questão de justiça social não concorre com outras causas. Muito pelo contrário. Sobre o veganismo ser elitista, sim, isso é inegável se partirmos de uma perspectiva de acesso à informação e oferta de produtos industrializados. Há produtos que realmente são caros, até porque a oferta corresponde à demanda. Porém, é possível viver muito bem sendo vegano sem consumir esses produtos.
Para reforçar a minha contrariedade em relação a esse discurso do Anderson França, de que o veganismo é inacessível, cito o exemplo de Thallita Xavier, autora do artigo “Como é ser vegana e favelada”. Thallita inclusive ministra palestras simplificando o veganismo, mostrando como ele é facilmente praticável – bastando querer. Anderson França aparenta desconhecer a existência do Movimento Afro Vegano e da Feira Afro Vegan, realizada no Rio de Janeiro, e que tem motivado a criação de outras feiras nos mesmos moldes em outras capitais brasileiras.
O escritor ignora também que a defesa dos direitos animais não é sobre privilégios para não humanos, mas sim sobre o direito à vida, o direito de não sofrer por intervenção humana. Veganos têm o claro entendimento de que os animais são sencientes, conscientes e inteligentes; e não existem para nos servir, já que isso demanda privação, sofrimento e morte. Infelizmente, matamos por ano cerca de 60 bilhões de animais terrestres e pelo menos um trilhão de animais marinhos. Isso deveria ser aceitável? É um motivo bastante justo para abdicar desse consumo.
Sempre que me deparo com alguém publicando algo contra o veganismo, imagino se essa pessoa tem ideia do impacto de seu discurso; se ela sabe a quem está beneficiando. Por quê? Porque veganos lutam contra a desvalorização da vida animal, e quem se empenha em desqualificar o veganismo, dependendo do discurso, pode contribuir involuntariamente com quem realmente se beneficia disso. Um exemplo? Muitas pessoas que dizem lutar por justiça social ignoram o fato de que a criação de animais para consumo e a produção de alimentos para nutrir esses animais movimenta muito dinheiro no mundo todo.
Além disso, fora as consequências para os animais, há também a comprovada agressão ao meio ambiente, como registrada na Amazônia, onde a pecuária responde por 65% do desmatamento, invadindo inclusive áreas protegidas, de acordo com o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Creio que não seja nenhuma novidade que grandes produtores e empresas desse ramo buscam favorecimento e flexibilização legal para crescerem e lucrarem cada vez mais. Então, o que eles fazem? Eles patrocinam políticos ou até mesmo se lançam na política para legislarem em causa própria – claramente perenizando as desigualdades sociais. E nesse cenário, quem são os maiores prejudicados? A população humana, os animais e a natureza.