Padre Antonio Vieira, homônimo do célebre orador e jesuíta português do século XVII, nasceu no Ceará em 1919 e ali faleceu, há cinco anos, deixando como principal legado um livro que se tornou clássico, O Jumento, Nosso Irmão, publicado pela Livraria Freitas Bastos em 1964. Esta obra é um hino de amor aos jericos, vítimas das injúrias, dos preconceitos e da injustiça humana. Nasceu do inconformismo de Pe. Vieira em face da exploração servil e do extermínio dos jumentos, fato este que o levou, na época, a encaminhar carta aberta aos prefeitos cearenses, redigida em tom incisivo:
“Senhores Prefeitos: Tenho uma cousa muito importante a pedir. Um favor para o meu e o seu amigo Jumento. Um direito justo e líquido. Entra semana, haja domingo ou feriado, é o mesmo rojão. A mesma cangalha mordendo-lhe o espinhaço descarnado, o mesmo chicote ou pedaço de pau moendo-lhe os ossos, a mesma fome mastigando-lhe as entranhas. (…) Se o Ceará teve a glória ímpar de ser pioneiro da Libertação dos escravos, poderá alcançar mais este troféu para as páginas de sua história.”
Os editores desse raro livro, no texto de apresentação, lembraram que Pe. Vieira, a par de suas atividades eclesiásticas, era um homem de espírito irrequieto e revolucionário, exercendo habitualmente atividades de natureza literária e jornalística. Possuidor de vasta cultura humanística, o autor empenhou seus conhecimentos em prol da causa dos jumentos, tanto que seu livro mais conhecido foi todo ele dedicado aos animais: é uma verdadeira enciclopédia sobre o jerico, escrita ora com a suavidade de um Evangelho, ora com a inquietação de um libelo.
Pelo sumário é possível ter uma ideia do conteúdo do livro: etimologia do vocábulo Jumento, expressões literárias, adagiário dos jericos, literatura, fábulas, antologia, folclore, história do jumento no Brasil, anedotário e variedades sobre esses animais. Há também um capítulo sobre a personalidade do jumento, considerado pelo autor como animal proletário. Outro capítulo versa sobre as origens mais remotas do Jumento. Depois há preciosas informações acerca do Jumento na economia, na ciência e na religião. Trata-se, enfim, do mais completo tratado já escrito no mundo sobre os jericos.
Merecem transcrição alguns trechos do livro:
“Não haveria para a humanidade melhor código de moral e de conduta social que o exemplo do jumento. É um santo no mundo dos animais. Suas virtudes são básicas. Valem pelo melhor tratado de ética política e social. Nas Conferências de Paz, tão celebremente fracassadas, em vez de eméritos juristas e renomados diplomatas que arrazoam direitos dos mais fortes ou dos Quatro Grandes, seria mais oportuno e proveitoso que se levasse um jumento. Na sua paciente e indiferente pachorra, na sua filosófica quietude, estaria pregando: – aprendei de mim que sou manso e humilde de coração.”
E prossegue o autor:
“Mas o homem é superautossuficiente. Ostenta uma grandeza que desafia o próprio Deus. Cria leis. Formula códigos. Inventa sistemas filosóficos e teorias científicas. Fabrica credos religiosos e princípios políticos. E cada dia o mundo mais se afunda em ódios, em miséria, em incompreensões. Enquanto isso, no mundo dos jegues reina uma paz e quietude angelical. Não há invejas. Nem ciúmes, Nem ambições. Vivem felizes. Morrem de velhice. De estafa. De subnutrição, porque se esgotaram em servir ao mais desumano e ingrato dos animais.”
No Brasil o destino dos escravos e dos jumentos era semelhante: vara, carga e trabalho. Basta ver a classificação dada a eles, do ponto de vista jurídico: bens semoventes. Importa observar, aliás, que a primeira lei vigente no Brasil Colônia – as Ordenações Manuelinas – possuía um dispositivo comum a ambos: “De como se podem enjeitar os escravos e bestas, por se acharem doentes e mancos”. Pe. Vieira lamentou, neste aspecto, que nossa legislação se traduzia pelo signo do desprezo e do abandono:
“O escravo e o jumento tiveram no Brasil o mesmo destino: amassaram com seu suor e o seu sangue a argamassa da nacionalidade e cimentaram, com os seus ossos, os alicerces da economia. Açoitados e batidos, mutilados e desenhados. Um já teve o seu 13 de Maio. Mas o outro continua a expiar o triste fadário de animal maldito.”
Pe. Vieira já não está aqui para interceder em favor dos jumentos. Se vivo estivesse, ergueria voz pelos jericos, que ainda são explorados aos milhares, abandonados nas estradas e exterminados também pelo poder público, práticas estas que ocorrem ao arrepio da lei. Apesar de tudo, o livro O Jumento, Nosso Irmão – já traduzido no estrangeiro – torna perene a mensagem compassiva de um homem que, já na velhice, recebeu a honrosa indicação para o Prêmio Nobel da Paz. Que a memória de nosso padre sertanejo seja resgatada, em favor dos animais que tanto amou e defendeu.