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O "hemato-vegetariano" e o "zoófago-maníaco"

22 de setembro de 2010
7 min. de leitura
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Fomos invadidos recentemente por uma verdadeira onda vampiresca que se espalhou pela televisão, pelo cinema e pela literatura. O que começou com a saga Crepúsculo, a série de romances jovens de Stephenie Meyer, teve continuidade com as séries televisivas The Vampire Diaries, baseada nos romances de L. J. Smith, True Blood, Buffy, entre tantas outras.

Confesso que, particularmente, não me sinto atraído por estas novas versões “James Deanianas” dos vampiros, iniciada pelo personagem Lestat, de Anne Rice, na década de 80. Prefiro a versão folclórica tradicional, gótica, soturna, Bela Lugosiana.

Dentro deste espírito de renascimento da temática, me animei a reler o clássico Drácula, de Bram Stoker, publicado em 1897, e me espantei com a grande quantidade de referências animais em sua obra, o que me motivou a escrever este breve relato.

O escritor Abraham Stoker, de origem irlandesa, valendo-se de mitos provenientes do Leste Europeu sobre seres que voltavam da morte e se alimentavam do sangue dos vivos, bem como da fascinante figura histórica de Vlad III (1431-1476), príncipe da Valáquia (atual Romênia), constrói a imagem do famigerado “Conde Drácula”, que se tornaria o vampiro mais popular do planeta. O nome Drácula significava “filho de Dracul” (ou “filho do dragão”), isso porque a família de Vlad III pertencia, de fato, à “Ordem do Dragão”, irmandade cristã destinada a combater a temida invasão turca.

A existência de seres sugadores de sangue integrava as culturas de muitos povos da Antiguidade, como mesopotâmios, babilônios, hebreus, gregos e romanos. No entanto, o termo “vampiro”, com sua conotação mais atual, surge na Idade Média, muito provavelmente proveniente de línguas eslavas que adaptaram o termo de uma palavra turca que significa bruxa (ubyr).

O vampirismo como temática literária aparece mais fortemente nos séculos XVIII e XIX, em poemas de autores como S.T.Coleridge, Goethe e Heinrich August Osenfelder, bem como nos livros The Vampyre (de John William Polidori, 1819), Varney the Vampire (de James Malcom Rymer, 1847) e Carmilla (de Joseph Sheridan Le Fanu, 1872), entre outros.

Conforme mencionado, a obra de Stoker é recheada de referências animalistas. A primeira delas diz respeito aos hábitos alimentares da sociedade londrina do século XIX. Ao tratar da viagem de um dos personagens (Jonathan Harker) à Transilvânia, o autor relata que “a minha refeição constou do que lá chama de ‘fatia roubada’ – isto é, pedaços de toucinho, cebolas e carne de vaca, temperados com pimenta vermelha, tudo enfiado num espeto e assado sobre brasas, segundo o estilo simples do churrasco londrino de carne de gato!” (STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 14).

Interessante aspecto este relacionado à ingestão de cães e gatos. Costumamos pensar que comê-los seria algo distinto de comer outras espécies animais e que esta repugnante tradição culinária seria restrita a alguns países asiáticos. Ambas as constatações são equivocadas. Historicamente esses animais eram apreciados e comidos também no Ocidente. Na Idade Média havia uma certa tradição de cozinhar gatos vivos antes das refeições, odiosa prática que, segundo consta, trazia “sorte” aos integrantes da mesa. Outros aterradores relatos sobre o assunto podem ser encontrados em obras como o Libro de Cozina, de Ruperto de Nola, de 1529, onde há grande detalhamento de receitas felinas. Durante a Revolução Industrial, o Livestock Journal and Fancier’s Gazette publicou um artigo intitulado “Eating Cats in West Bromwich” (comendo gatos em West Bromwich). Mais recentemente, temos notícias de que gatos são utilizados para o comércio de peles e seus cadáveres são vendidos como genuína carne de lebre para alguns mercados. A própria expressão “comprar gato por lebre” tem origem nesta prática.

A íntima correlação entre a figura do vampiro e dos animais é consubstanciada em diversos aspectos, especialmente na sua capacidade de controle e mesmo de metamorfose nos intitulados “seres da noite”, como lobos, morcegos e ratos, tidos como seres abjetos, perigosos e “inferiores”. Fica muito claro que o vampiro é diretamente associado a uma  natureza “selvagem”, instintiva e cruel, enquanto os personagens ingleses são vistos como mais evoluídos e “civilizados”, já tendo rompido esta relação supostamente “primitiva” com o mundo natural.

A seguinte passagem, quando o Conde exalta a figura dos lobos e com elas se identifica, denota a polarização de opiniões sobre os animais e é bastante ilustrativa a esse respeito: “Ouça-os, são os guardiães da noite. Que monumental protofonia! – E percebendo, talvez, alguma expressão de desapontamento que transparecia em minha face a ponto de perturbá-lo, acrescentou: – Ah, senhor, vocês habitantes das cidades jamais conseguirão penetrar nos mais íntimos segredos de nós, caçadores” (op. cit., p. 32).

Ao mesmo tempo, os hábitos alimentares do Conde são bastante peculiares e envolviam a ingestão de sangue para que se mantivesse paradoxalmente “vivo”. O sangue sempre foi associado como o símbolo da vida e daí a razão folclórica para que tenha se tornado o alimento dos seres que ressurgem da morte. Nenhum outro alimento de origem animal ou vegetal integra a dieta vampiresca. Assim é que, servida a ceia, o personagem recusa polidamente a refeição nos seguintes termos: “rogo-lhe que se sente e se sirva a seu bel-prazer. Espero desculpar-me por não poder acompanhá-lo à mesa. Na verdade, eu já jantei e não costumo cear” (op.cit., p. 30).

Desta constatação surge uma inafastável associação com o vegetarianismo, na sua versão “ovolacto”, dado que o vampiro, apesar da ausência da carne, se nutre se líquidos vitais de outros seres, tornando-os, com isto, seus escravos, numa estranha relação de amor e subjugação que parece também atualmente atormentar os “sugadores de leite” e “comedores de ovos”.

Em várias passagens, ainda que subliminarmente, Stoker faz questão de deixar em evidência uma clara posição de afastamento e de distinção moral entre homens e animais. Exemplificativamente, quando da fuga de Jonathan Harker dos domínios do Conde, o autor afirma: “Correrei o risco. Na pior das hipóteses aventuro a morte. Mas é a morte de um homem e não de um bezerro, e as terríveis portas do porvir talvez ainda se abram para mim” (op.cit., p. 72).

Mais adiante, já em Londres, o Conde conta com o suporte do onívoro radical Renfield, um lunático classificado curiosamente pelo autor como “zoófago-maníaco” (devorador de animais vivos). “Sua preocupação consiste em absorver tantas vidas quanto puder, e ele planejou um esquema capaz de satisfazê-lo cumulativamente. Ele alimentava uma aranha com numerosas moscas; depois dava muitas aranhas ao pássaro, que as comia; e, finalmente, precisava de um gato a fim de devorar todos os pássaros” (op.cit., p. 105). Mais à frente, Renfield desdenha dos animais devorados: “ratos e camundongos e outras alimárias miúdas, segundo o grande Shakespeare, ‘rações próprias para a dispensa dos pintainhos’, é o que merecem ser chamados. Já estou livre de todos esses absurdos. O senhor pode perfeitamente pedir a um homem para ingerir moléculas acompanhadas de umas boas costeletas, numa tentativa de interessar-me a respeito de um regime menos carnívoro, mas sei exatamente o que tenho diante de mim. Compreendo – disse eu.  – O senhor prefere seres mais avantajadso, em cujas entranhas possa cravar melhor seus dentes? O que me diz de almoçar um elefante?” (op. cit., p. 400). Suas tiradas predatórias não acabam por aí: “ratos, ratos, ratos! Centenas, milhares, milhões deles, e cada um uma vida; e cães para os devorar, e gatos também.  Com sangue vermelho e quente, preciosos depositários de anos e anos de vida; não mais simplórias moscas, que mal conseguem zumbir” (op.cit., p. 411).

As referências à temática animal na obra de Stoker não param por aí. Logo em seguida à primeira descrição do comportamento maníaco de Renfield, o escritor faz uma infeliz e equivocada defesa da vivissecção: “O homem zomba da vivissecção, mas ainda recorre a seus resultados hoje em dia!” (op. cit., p. 106).

Como último exemplo dos variados temas animais tratados perifericamente pelo livro, quando da visita ao Jardim Zoológico sobre uma possível fuga de um lobo do local, o zelador discursa pretensamente em favor dos animais no sentido de que compartilhariam conosco algumas características fundamentais: “no íntimo de cada um de nós ainda existia uma boa parcela desta mesma natureza, que sabemos exteriorizar o temperamento destes irracionais” (op. cit., p. 201).

A atração pelos vampiros vem de talvez de um desejo inconsciente de sermos monstros que nunca poderemos ser, “Períodos de guerra, crise econômica e mudanças culturais aumentam a produtividade de ficção vampiresca”, disse Thomas Garza, presidente do departamento de estudos Eslavos e Eurasiáticos da Universidade do Texas em Austin, e especialista na cultura dos vampiros. “Com a recessão e a guerra, o conflito parece se tornar interno, e buscamos por este tipo de publicação  conforme questionamos a nós mesmos nossa posição fiscal, política e moral. ‘Fomos excessivos demais? Precisamos de mais restrições?’  Agora estamos questionando novamente estes valores fundamentais” (New York Times, de 2/7/2009, “Do Cinema à Moda, os Vampiros viram Tendência”).

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