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O grande silêncio climático: ignoramos que estamos à beira do abismo

16 de maio de 2017
6 min. de leitura
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Depois de 200 mil anos de humanos modernos em uma Terra de 4.5 bilhões de anos de idade, nós chegamos em um novo ponto da história: o Antropoceno, período em que as atividades humanas começaram a ter um impacto global significativo no clima da Terra e no funcionamento dos seus ecossistemas.

A mudança ocorreu em uma velocidade desorientadora para nós, sendo que normalmente demora de duas a quatro gerações para se estabelecer.

Como podemos compreender o miserável fracasso do pensamento contemporâneo para enfrentar o que nos confronta?
Foto: Piyal Adhikary/EPA

Nossos melhores cientistas nos dizem insistentemente que uma calamidade está prestes a acontecer e que os sistemas que suportam a vida na Terra estão sendo destruídos de maneiras que ameaçam nossa sobrevivência. Porém, mesmo com esses fatos, encaramos tudo com normalidade.

A maioria da população ignora ou minimiza os avisos; muitos de nossos intelectuais se entregam a ilusões; e algumas vozes influentes declaram que nada está acontecendo, que os cientistas estão nos enganando.

No entanto, as evidências apontam que os seres humanos se tornaram tão poderosos que entramos nesta nova e perigosa época geológica, definida pelo fato de que a marca humana no ambiente global se tornou tão grande e ativa que rivaliza com algumas das grandes forças da natureza em seu impacto sobre o funcionamento do sistema terrestre.

Esta situação bizarra, na qual nos tornamos suficientemente potentes para mudar o curso da Terra, mas aparentemente incapazes de nos regularmos, contradiz todas as crenças modernas sobre o tipo de criatura que o ser humano é. Por isso, para alguns, é absurdo sugerir que a humanidade possa sair dos limites da história e inscrever-se como uma força geológica no tempo.

Eles insistem que os seres humanos são muito insignificantes para mudar o clima. Por isso é estranho sugerir que poderíamos mudar a escala de tempo geológica. Outros atribuem a Terra e sua evolução ao reino divino, de modo que não é meramente impertinência sugerir que os seres humanos podem anular o Todo-Poderoso, mas blasfêmia.

Muitos intelectuais das ciências sociais e humanas não admitem que os cientistas da Terra tenham algo a dizer que possa interferir na sua compreensão do mundo, porque o “mundo” consiste apenas em seres humanos envolvidos com seres humanos, e sua relação com a natureza nada mais seria do que um pano de fundo passivo para aproveitarmos como quisermos.

Essa ideia de “apenas humanos” das ciências sociais e humanas é reforçada pela nossa absorção total nas representações da realidade derivadas da mídia, encorajando-nos a encarar a crise ecológica como um espetáculo que se realiza fora da bolha da nossa existência, diz Clive Hamilton, em artigo publicado no The Guardian.

É verdade que compreender a escala do que está acontecendo requer não apenas estourar a bolha, mas também fazer o salto cognitivo para o “pensamento do sistema terrestre” – isto é, conceber a Terra como um sistema único, complexo e dinâmico. Uma coisa é aceitar que a influência humana se espalhou por toda a paisagem, oceanos e atmosfera, mas outra bem diferente, para dar o salto para a compreensão, é perceber que as atividades humanas estão perturbando o funcionamento da Terra como uma totalidade dinâmica, composta por uma infinidade de processos interligados.

Considere este fato surpreendente: com o conhecimento dos ciclos que governam a rotação da Terra, incluindo sua inclinação e oscilação, os paleo-climatologistas são capazes de prever com razoável certeza que a próxima era glacial deve acontecer em cerca de 50 mil anos. No entanto, como o dióxido de carbono persiste na atmosfera por milênios, espera-se que o aquecimento global causado pela atividade humana nos séculos 20 e 21 suprima essa era do gelo e muito possivelmente a seguinte, esperada em 130 mil anos.

Se a atividade humana que ocorre ao longo de um século ou dois pode transformar irreversivelmente o clima global por dezenas de milhares de anos, somos levados a repensar a história e a análise social como um caso puramente intra-humano.

Como devemos compreender o fato inquietante de que uma massa de evidências científicas sobre o Antropoceno, um acontecimento que se desdobra em proporções colossais, foi insuficiente para induzir uma resposta razoável e adequada?

Para muitos, o acúmulo de fatos sobre a perturbação ecológica parece ter um efeito anestésico muito aparente nas atitudes populares em relação à crise do sistema terrestre e, especialmente, entre os formadores de opinião e os líderes políticos. Alguns abriram-se para o pleno significado do Antropoceno, atravessando um limiar por meio de um processo gradual, mas cada vez mais perturbador, de assimilação de evidências ou, em alguns casos, após uma realização que rompe de repente e com grande força em resposta para um evento ou peça de informação em si muito pequena.

Além da ciência, outros poucos alertam para o sofrimento da Terra, que sente que algo extraordinariamente grande está ocorrendo, consciente de que enfrentamos uma luta entre a ruína e a possibilidade de algum tipo de salvação.

Atualmente, a maior tragédia é a ausência de uma sensação de tragédia. A indiferença da maioria em relação ao sistema terrestre pode ser atribuída a uma falha da razão ou fraquezas psicológicas; mas isso parece inadequado para explicar por que nos encontramos à beira do abismo.

Como podemos compreender o fracasso do pensamento contemporâneo para enfrentar o que agora nos confronta? Poucos anos após a queda da segunda bomba atômica, Kazuo Ishiguro escreveu um romance sobre o povo de Nagasaki, um romance no qual a bomba nunca é mencionada, cuja sombra cai sobre todos. A sombra do Antropoceno também cai sobre todos nós.

No entanto, as livrarias são regularmente reabastecidas com exemplares sobre o futuro do planeta, escrito pelos nossos principais intelectuais de esquerda e direita, em que a crise ecológica é apenas mencionada.

Eles escrevem sobre a ascensão da China, o enfrentamento de civilizações e máquinas que dominam o mundo, criadas e apresentadas como se os cientistas climáticos não existissem. Eles prognosticam sobre um futuro do qual os fatos dominantes foram expurgados, futurologistas presos em um passado obsoleto. É o grande silêncio.

Ouvi falar de um jantar durante o qual um dos mais eminentes psicanalistas da Europa argumentou ardentemente em todos os tópicos, mas ficou mudo quando o tema das mudanças climáticas foi levantado. Ele não tinha nada a dizer. Para a maioria dos intelectuais, é como se as projeções dos cientistas da Terra fossem tão absurdas que poderiam ser ignoradas com segurança.

Talvez a rendição intelectual esteja tão completa porque as forças que esperávamos tornar o mundo um lugar mais civilizado – liberdades pessoais, democracia, avanço material, poder tecnológico – estão, na verdade, abrindo o caminho para a sua destruição. Os poderes que mais confiamos nos traíram; o que acreditamos que nos salvaria agora ameaça nos devorar.

Para alguns, a tensão é resolvida rejeitando a evidência, ou seja, descartando o “Iluminismo”. Para outros, a resposta é minimizar os apelos para ver o perigo como uma perda de fé na humanidade, como se a angústia pela Terra fosse uma ilusão romântica ou uma regressão supersticiosa.

No entanto, os cientistas da Terra continuam a nos assombrar, seguindo-nos como aparições, lamentando enquanto nós nos apressamos preocupados com nossas vidas, aparecendo ocasionalmente com irritação para sustentar o crucifixo do Progresso.

*Este é um extrato editado do texto Defiant Earth, de Clive Hamilton: O destino dos humanos no Antropoceno.

* Traduzido por Laura Dourado

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