Considere o seguinte argumento:
“Comer produtos de origem animal é necessário para os humanos. É por isso que não há dever de praticar o veganismo e nem de abolir a exploração animal”
Podemos organizar o argumento da seguinte maneira:
(1) Se causar um dano é necessário, então causá-lo está justificado e não há obrigação de torná-lo não necessário;
(2) É necessário comer comida de origem animal;
(3) Logo, é justificado causar dano por comer comida de origem animal e não há obrigação de tornar tal prática não necessária.
Comecemos pela premissa descritiva (segunda). Não é verdade que comer produtos de origem animal é necessário para os seres humanos. A dieta vegana é saudável e nutritiva. De acordo com o parecer da Associação Dietética Americana [1], é um tipo de dieta adequada para qualquer estágio da vida, e, além disso, de acordo com tal parecer, a saúde pode ser beneficiada de várias maneiras, em comparação à uma dieta onívora.
Mas, supondo que não fosse assim. Supondo que alguém objete, por exemplo, que os veganos têm que repor a vitamina B12, o que mostra que a dieta vegana não é completa. Nesse caso, basta fazer uma reposição de vitamina B12. O dano sobre os humanos em terem de fazer tal reposição é mínimo, comparado ao dano que os animais não humanos tem de padecer para que os humanos comam comida de origem animal. Além disso, normalmente quem tem uma dieta onívora necessita também de reposição de alguns nutrientes, mas não sabe devido a acreditar que, por ser onívoro, não precisa se preocupar em ter uma alimentação balanceada. A balança da justiça pende para o lado de favorecer aqueles cujo dano individual é maior, e pende mais ainda se são muitos a estarem a padecer desse dano. Tal exigência se intensifica, como é o caso, se os indivíduos em questão estão a ser assassinados depois de viver vidas inteiras de sofrimento extremo em todos os momentos, e que a razão oferecida para tal diferenciação na consideração é a adoção de um critério irrelevante como o pertencimento a esta ou aquela espécie. Assim, a balança da justiça, nesse caso, pende para favorecer os animais não humanos.
Mas, supondo que não fosse assim. Supondo que não fôssemos ficar tão saudáveis com uma dieta vegana quanto ficaríamos com uma dieta onívora. Ainda assim, haveria a obrigação moral de se abolir o uso de animais não humanos, pois ainda assim esses danos seriam infinitamente menores do que os danos padecidos pelos animais não humanos (que, além de morrerem, normalmente passariam uma vida inteira de sofrimento extremo a cada segundo nas granjas industriais). Talvez fosse o caso, como argumentou o filósofo Stephen Law [2], de que ficarmos não tão saudáveis fosse um preço mínimo a ser pago para fazer a coisa justa. Mas, felizmente, como a dieta vegana supre as nossas necessidades, não precisamos nos preocupar com esse ponto. Apesar disso, tal exercício imaginativo mostra que alegar que causar um dano é necessário não justifica automaticamente causar esse dano.
Mas, supondo, para efeito de argumentação, que comer comida de origem animal fosse realmente necessário. Ou seja, que fôssemos realmente morrer se ficássemos um dia sequer sem comer comida de origem animal. Qual a conclusão justa se as coisas fossem dessa maneira?
(1) Não segue daí a conclusão que não há obrigação de se abolir o consumo de animais. Para entender, imagine um caso hipotético: supondo que fosse estritamente necessário para os seres humanos comerem outros seres humanos. Imagine que, se ficássemos um dia sem comer outros seres humanos, morreríamos, e que, devido a isso, humanos estariam a predar humanos o tempo todo (inclusive a criá-los em granjas industriais, aos bilhões, com sofrimento extremo em todos os instantes de suas vidas). Segue daí que essa prática é justa, só porque é necessária à sobrevivência e que não deveríamos buscar meios de abolí-la e torná-la não necessária? Qualquer um com o mínimo de senso de justiça concordaria que haveria a obrigação de se criar logo uma alternativa a esse tipo de comida, e que haveria o dever de abolir tal uso (alguns de nós diriam até mesmo que, se não houvesse uma alternativa, a obrigação seria de morrer, ao invés comer outros seres humanos). Assim sendo, mesmo se fosse necessário comer comida de origem animal, ainda assim haveria o dever de abolir o uso de animais, buscando tornar tal uso não necessário (e, um detalhe interessante: se fosse realmente necessário comer comida de origem animal, nada indica que necessariamente haveriam melhores razões para comer animais não humanos, ao invés de humanos). Ou seja, haveria a mesma obrigação moral de abolir o uso, a única diferença é que realizá-la seria tecnicamente mais difícil. Mas, felizmente, como não é necessário, essa obrigação de abolir é maior ainda, pois as razões para se perdoar tal uso são ainda mais fracas, já que de modo algum é necessário.
(2) Em situações onde é necessário causar a morte de outros para que alguns possam sobreviver não se segue necessariamente disso que então é justo causar a morte em questão.
Imagine, por exemplo, que é necessário, para salvar a vida de vários humanos, causar a morte de um humano. Imagine ainda que essas cinco pessoas já tiveram vidas boas e longas, enquanto que o que seria morto viveu pouco e com uma qualidade de vida muito baixa, mas tem chances, se continuar vivo, de desfrutar muitos anos com uma qualidade de vida boa. Parece realmente injusto matar esse indivíduo para salvar os outros, mesmo que isso seja necessário para salvar vidas. Mas, se tudo o que fosse necessário fosse também automaticamente justo, não pensaríamos assim; aliás, não teríamos dilema algum nesse caso. Então, isso mostra que o fato de uma coisa ser necessária não a torna automaticamente justa.
(3) Se existir justificativa para matar alguém para salvar outro, não se segue daí que a decisão justa é necessariamente que o humano sobreviva.
Imagine, por exemplo, que houvesse uma situação onde temos de realmente escolher quem deve sobreviver e quem deve morrer. Não há nenhuma boa razão para se pensar que, automaticamente, a prioridade é do humano. Novamente, imagine que alguém já viveu uma vida longa e boa, mas, para sobreviver, precisa matar alguém que viveu uma vida curta e muito ruim (sendo que este tem chances ainda de viver vários anos com uma qualidade de vida boa pela frente).
Nesse caso, pelo menos no que diz respeito à distribuição justa do tempo e qualidade de vida, a prioridade deve ser de quem viveu menos tempo e teve menor qualidade de vida (em uma decisão justa, se manda dar mais a quem tem menos). Mudaria alguma coisa de relevante se um dos dois fosse de outra espécie, que não a humana? Não. Porque o que está em jogo é a perda que alguém sofre ao morrer, que é função do tempo e da qualidade de vida (computando o tempo que já passou e que é possível no futuro), e isso é independente da espécie à qual alguém pertence.
Mas, felizmente, na questão do uso de animais para consumo, não precisamos nos preocupar com esses dilemas, pois consumir produtos de origem animal não é necessário.
Assim sendo, nossas desculpas para continuar com tal uso são ainda mais fracas do que parecem inicialmente.
Notas:
[1] CRAIG, Winston J. y MANGELS, Ann Reed (2009): “Position of the American Dietetic Association: Vegetarian Diets”, Journal of the American Dietetic Association, vol. 109, 1266-1282.
Disponível em: http://www.eatright.org/WorkArea/linkit.aspx?LinkIdentifier=id&ItemID=8417
[2] LAW, Stephen. Os Arquivos Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 24.