“Cuidarei enquanto puder” – esse é o pensamento de muita gente que tem animais de estimação. Porém, dessa forma, esses tutores se comprometem apenas com o presente e não com o futuro de seus amados companheiros. É preciso ter em mente que muitos tutores, não importa a idade, morrem antes de seus cães e gatos, e os bens acabam indo, muitas vezes, para familiares que deixam os animais à própria sorte.
Além disso, nem sempre a família tem condições de assumir os animais do falecido e, aliás, nem tem obrigação, ainda mais quando são muitos os “órfãos de quatro patas”. Por isso é importante fazer um testamento designando, conforme a lei brasileira permite, até 50% da herança a uma pessoa ou entidade de confiança que possa cuidar dos animais. Os outros 50% ficam obrigatoriamente para descendentes, salvo casos em que essas pessoas possam ser deserdadas ou excluídas da herança.
Para ajudar os tutores a garantirem um futuro mais digno para os seus animais no caso de repentina e definitiva ausência, a ANDA entrevistou três advogados:
Wanderlyn Wharton de Araújo Fernandes
Advogado Membro da Comissão de Direito Civil da Associação Brasileira de Advogados – ABA/RN. Voluntário na Associação Caicoense de Proteção aos Animais e Meio Ambiente – ACAPAM
“No Brasil crescem casos em que bens lavrados em testamentos são destinados aos animais. O milionário paulista Chiquinho Scarpa, por exemplo, já declarou ter deixado altos valores ao seu cachorro Pafúncio. Somente pessoas físicas ou jurídicas podem ser herdeiras, descartando qualquer possibilidade testamentária direta ao animal. Contudo, o inciso III, do artigo 1.799, do Código Civil, possibilita a sucessão testamentária às fundações ou ONGs que lidam com animais. Os bens também podem ser deixados a uma pessoa incumbindo-a de cuidar dos animais”.
“O Código Civil limita em 50% a doação testamentária para garantir que os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge) não fiquem desamparados após a morte do autor da herança. Na inexistência desses podem receber a herança os parentes de até 4º grau. E caso não sejam encontrados parentes nem mesmo distantes, o destino será a União”.
O advogado salienta que apenas uma minoria consegue destinar parte de seus bens aos animais por falta de conhecimento desse direito: “Precisamos de campanhas educativas que incentivem as pessoas a reconhecerem que o que foi adquirido em vida poderá ter uma destinação bem significativa a uma causa nobre e eficaz, após a sua morte”.
Lucas França Bressanin – Advogado Membro da Comissão de Proteção e Defesa Animal da OAB de Presidente Prudente/SP
“A herança não pode ser deixada de forma direta para os animais porque no Brasil eles não são reconhecidos como sujeitos de direitos, mas uma pessoa pode ser nomeada para recebimento dos bens em troca de cuidar deles. O herdeiro fica sujeito a não usufruir desse patrimônio caso não cumpra as exigências estabelecidas pelo falecido”.
“O testamento precisa ser registrado em cartório para que tenha toda segurança jurídica, não sendo recomendado o testamento de gaveta, que pode trazer inúmeras discussões jurídicas e divergências sobre sua validade e conteúdo”.
“Portanto, aconselho aqueles que detém animais explanar em testamento o seu desejo ou, como no meu caso, que amo e vivo a proteção animal em meu dia a dia, deixar isso clarividente para seus familiares e amigos, o que fará com que cuidem de meus animais como se deles fossem, me dando a mais absoluta segurança que estarão com ótimos e amorosos tutores”.
O advogado salienta que são bem comuns os casos em que, por ausência de testamento, os familiares se desfazem dos animais abandonando-os e até mesmo praticando maus-tratos.
Antônio Delgado – Advogado em Portugal e diretor da Miau Magazine
“Em Portugal existe um mecanismo legal que assegura o futuro de um animal de estimação após a morte do seu tutor. A lei portuguesa define, como limite, que dois terços estejam reservados para os filhos e cônjuge. Portanto, o autor da sucessão pode deixar um terço da herança a alguém sob a condição dessa pessoa se comprometer a cuidar do animal. Ela só poderá administrar esses bens (dinheiro, móveis ou imóveis) a favor do animal”.
Gatinha de Lagerfeld ficará com herança?
O tema de herança deixada para os animais reacendeu em todo o mundo com a notícia de que a gatinha Choupette teria herdado 195 milhões de dólares do estilista Karl Lagerfeld por ocasião de sua recente morte, mas não poderia ter sido designada como herdeira segundo as leis francesas.
Na França, assim como em muitos países, os bens só podem ser designados a pessoas físicas e jurídicas, parentes ou não do falecido, e o fato da Choupette ser citada como herdeira direta poderia causar o anulamento do testamento.
“Sabe-se que o estilista não tem filhos biológicos e, de família direta, apenas se conhece uma irmã e uma meia-irmã com as quais não falava há décadas. Aliás, Lagerfeld disse mesmo ao New York Times que a sua verdadeira família eram os modelos e assistentes com quem trabalhava”, comenta o advogado Antônio Delgado.
“Assim, perante este cenário, o familiar mais próximo seria o afilhado Hudson Kroenig. Filho de Brad Kroenig, um dos modelos preferidos de Lagerfeld, Hudson tornou-se, desde muito cedo, uma companhia habitual de Lagerfeld nos desfiles, nos quais estreou com apenas 2 anos. Esse rapaz perfilava-se como um dos herdeiros do estilista”, diz Delgado. Portanto, Choupette, embora milionária, dependerá dos cuidados dos herdeiros reconhecidos pela lei francesa.
Se fosse na Alemanha, por exemplo, toda a fortuna poderia ser deixada para alguém que se incumbisse de cuidar de Choupette por toda sua vida. Foi o que fez a condessa alemã Carlotta Liebenstein, em 1991, deixando a seu pastor alemão Gunther III, 60 milhões de dólares. Ele ficou aos cuidados de dois funcionários da condessa. Gunther IV, filho do pastor da condessa, herdou do pai outra fortuna, sabiamente multiplicada pelos herdeiros humanos, e é hoje considerado o animal mais rico do mundo com 372 milhões de dólares.
Freddie Mercury, da banda Queen, destinou boa parte de sua herança a sua amiga Mary Austin em testamento e, principalmente, a mansão onde ficavam seus gatos. Outras celebridades pelo mundo afora também já manifestaram publicamente seus desejos de deixarem os animais de estimação com uma farta conta bancária. É o caso da apresentadora Oprah Winfrey que já destinou 30 milhões de dólares aos seus cães e da atriz Drew Barrymore que deixará para sua cadelinha Flossie um imóvel avaliado em US$ 3 milhões.
Vagner Ramires Bittencourt, de Suzano (SP) e amante de gatos, diz: “Creio que a lei brasileira a respeito de herança é justa perante o desejo do falecido demonstrado em testamento, desde que ele siga algumas regras para não ter sua vontade anulada por escolhas estapafúrdias. A vontade testamentada tem que estar dentro das regras da lei, pois, um testamento mal elaborado pode ser nulo conforme o entendimento do juiz”.
“O correto para não prejudicar os bichos e ter a certeza da feitura de sua vontade é registrar devidamente em cartório. Eu, por exemplo, não tenho bens e sobre o pouco que tenho já deixei minha vontade revelada a entes queridos. Já decidi quem ficará e cuidará de meus gatos. Como não envolve valores financeiros, deixo-os pelo amor que os meus escolhidos têm pelos animais”.
Sandra Bond, de Portugal, também prefere não fazer um testamento formal: “Não pretendo deixar testamento a beneficiar os meus animais. Para quem ficariam os meus bens após a morte do animal? O que pretendo é preparar a minha partida de forma a deixar os meus animais bem entregues, se os tiver, no dia em que partir, pois, infelizmente, o que mais vejo aqui em Portugal são donos que amam os seus animais, mas que quando partem as famílias não respeitam esse amor e os abandonam”.
Herdeiros peludos
2017
A escritora americana Ellen Frey-Wouter morreu aos 88 anos, em Nova York. Não tinha filhos e deixou parte de sua herança para Troy e Tiger, seus gatinhos de estimação por meio de duas de suas cuidadoras. Eles ficaram com US$ 300 mil da herança total de US$ 3 milhões.
2015
A cachorrinha de três anos, Mia, herdou cerca de quatro milhões de reais após a morte de Rose Ann Bolsany, aos 60. A tutora chamava Mia de “presente de Deus”.
Glenda Taylor DeLawder, dos EUA, deixou todo seu patrimônio, de 1,2 milhão de dólares, para ajudar os cães e gatos do condado de Carter, onde viveu.
Bob Wetzell determinou que seus bens fossem vendidos e o dinheiro doado para o abrigo da Animal Welfare League, no Condado de Champaign.
2011
O gato Tommaso herdou de sua tutora, uma viúva de 94 anos, 24 milhões de reais após a morte dela na Itália. Uma enfermeira foi a nomeada para herdar o montante já que gostava muito de gatos, ajudava uma instituição de felinos e havia conhecido a viúva pouco antes de sua morte.
2013
O advogado Brian Russell Kirchoff, EUA, não tinha familiares e deixou 800 mil dólares em testamento à ONG Marin Humane Society que resgata felinos das ruas. Seus dois gatos, Chelsea e Tarka ficaram aos cuidados de um santuário de felinos na cidade de Santa Rosa que recebeu 20 mil dólares para cuidar deles. Na época o casal de gatos já tinha 18 anos e faleceu poucos anos depois. O curioso é que o testamento, de seis páginas, foi escrito à mão e assinado por Brian como ele gostava de ser chamado, ou seja, de “pai de gatos”.
2010
A milionária Gail Posner morreu aos 67 anos deixando para seus três cães 21 milhões de reais e uma mansão em Miami. A fortuna foi designada aos funcionários garantindo-lhes volumoso salário enquanto cuidassem dos animais. Seu filho, o cineasta Bret Carr, ficou com 1,7 milhão de reais.
2007
Leona Helmsley, dona de um império imobiliário nos EUA, deserdou os dois netos e deixou 12 milhões de dólares para o cachorro Trouble. Ela designou a irmã para cuidar de seu amado cachorro e a recompensou com um “cachê” de 10 milhões para uso pessoal.
2003
A inglesa Margareth Layne, de 89 anos, deixou 160 mil dólares para seu gato Tinker, além de uma mansão avaliada em 700 mil euros. A fortuna foi passada para um casal de vizinhos que também tinha dois gatos. Todos passaram a viver na mesma casa.
Atenção à lei brasileira sobre testamento:
- O testamento só tem efeito sobre 50% da herança e nele a pessoa pode destinar essa parcela de seus bens a uma pessoa ou instituição que cuide de seus animais
- Os outros 50% da herança serão obrigatoriamente destinados ao cônjuge e descendentes
- Se não existirem herdeiros, metade da herança atenderá o testamento e a outra metade ficará com a União
- Herdeiros podem ser excluídos ou deserdados. Exemplo de exclusão é o caso de Suzane Von Richtofen, acusada de matar barbaramente os pais. Já a deserdação deve constar do testamento com a apresentação dos motivos
- Para a partilha dos bens é preciso a análise do testamento e o inventário (levantamento do patrimônio da pessoa falecida). Após a conclusão do inventário tem início a partilha de bens. Quando a partilha é amigável não é necessário recorrer ao Judiciário, sendo apenas recomendável o acompanhamento de um advogado
*Fátima ChuEcco é jornalista ambientalista e atuante na causa animal