No atual governo, as taxas de derrubada de florestas na Amazônia alcançaram patamares alarmantes, não registrados desde 14 anos atrás. Entre 2019 e 2021, o desmatamento ultrapassou os 10 mil km² ao ano, 56,6% mais do que a média anual do período anterior. Mas não só. Um estudo inédito revela que o perfil da devastação mudou. Se antes as áreas privadas eram as mais afetadas pelos criminosos, agora as terras públicas são os alvos preferidos. Nos últimos três anos, mais da metade (51%) do desmatamento do bioma ocorreu em terras indígenas, unidades de conservação e nas chamadas florestas públicas não destinadas (FPNDs).
O levantamento mostra que essa última categoria foi a mais prejudicada pela ação dos grileiros. Áreas que ainda aguardam uma destinação pelos governos para conservação ou uso sustentável de seus recursos, as FPNDs somam 56,5 milhões de hectares no país, o equivalente a duas vezes o tamanho do estado de São Paulo. Até 2020, pelo menos 3,4 milhões de hectares dessas florestas haviam sido derrubadas ilegalmente. As conclusões estão num estudo exclusivo do Projeto Amazônia 2030, uma iniciativa do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, da Climate Policy Initiative (CPI) e do Departamento de Economia da PUC-Rio.
– Está em curso hoje no país a maior usurpação de patrimônio público da história – afirmou Paulo Moutinho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e um dos condutores da pesquisa. – O processo todo é subsidiado por investidores, que desembolsam um bocado de dinheiro para o grileiro desmatar. E estimulado pela perspectiva futura de legalização da posse da terra pública.
Para Moutinho, o avanço da derrubada em terras públicas é explicado pelo desmonte do aparato de governança ambiental, ocorrido a partir de 2019. Associado a isso, segundo ele, estão fatores como a demanda crescente por produção e a flexibilização das regras pelo Congresso e assembleias estaduais, que sinalizam aos grileiros que podem ser legalizados.
Grileiros modernos
Desde a Lei de Terras, de 1850, criminosos usavam de um mecanismo criativo para falsificar o título da propriedade e reivindicar sua posse: colocavam o documento dentro de uma caixa com grilos, que comiam as bordas do papel e defecavam nele, para dar uma aspecto amarelado e envelhecido, como se já tivessem o papel de longa data – daí a expressão grileiro. Uma das descobertas do atual estudo, segundo Moutinho, é que os grileiros se “modernizaram”.
Para forjar a posse de terras públicas invadidas, os grileiros estão usando uma ferramenta criada pelo próprio governo, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), um mecanismo do Código Florestal para regularização ambiental dos imóveis rurais. Autodeclaratório, o CAR necessita da validação de órgão ambientais municipais e estaduais para conferir o que foi informado pelo requerente do imóvel. Como essa verificação não avançou no país, os criminosos aproveitam o CAR para comprovar a posse fundiária.
A dinâmica de invasão dos grileiros é conhecida. Primeiro, eles escolhem a terra pública que vale a pena invadir, com base na topografia da área e da proximidade de estradas. Em seguida, conseguem um grupo de financiadores, a maioria de fora e que permanece com a identidade oculta. Com o dinheiro em mãos, derrubam a floresta com agilidade, colocam fogo para limpar a área e facilitar o preparo do solo. Em boa parte das áreas desmatadas, usam a pecuária para dar uma “legalidade ilusória” à terra. Por fim, eles registram o imóvel em sistemas oficiais, com o CAR, de modo a forjar a posse.
Uma ação inédita movida pelo Ministério Público Federal do Amazonas contra um grileiro que usou o CAR para forjar a posse de um imóvel exigiu indenização por danos climáticos. De 2011 a 2018, cerca de 2.400 hectares de floresta intocada foram desmatados ilegalmente em uma área protegida no sul do Amazonas, no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Antimary. Na ação, o MP estimou, com base na calculadora de crédito de carbono desenvolvida pelo Ipam, que o desmatamento da floresta na região causou um dano climático estimado em R$ 44,7 milhões. Em decisão liminar de abril passado, a Justiça reconheceu a existência de desmatamento ilegal e embargou a venda de gado criado na área.
Para conter o avanço da devastação, os pesquisadores fazem uma série de recomendações no estudo, como cancelar todos os CARs sobrepostos a terras públicas, dar uma finalidade às florestas não destinadas, aumentar a fiscalização e a punição a grileiros que invadem e desmatam terras públicas, além de apoiar as ações do judiciário contra invasões.
Fonte: G1