No primeiro semestre deste ano, a senadora Marina Silva defendeu o ensino do criacionismo nas escolas, após participar de um simpósio sobre o assunto, ainda como ministra do Meio Ambiente. Pois o criacionismo, que é uma das inúmeras crenças religiosas a respeito do surgimento da vida, passaria a ser comparado à Evolução, ciência que explica por meio de claras evidências ao longo da história, e na própria composição dos organismos atuais, a trajetória da formação de novas espécies ao longo dos milhares de anos. O criacionismo é apenas um dos mitos sobre a criação do mundo e do ser humano e deve ser respeitado como qualquer outro de qualquer religião, mas nunca comparado a uma teoria que é base da Biologia e de tantas outras ciências, até hoje nunca refutada. Muito ao contrário, com as descobertas mais recentes sobre o código genético, a teoria de Charles Darwin fica a cada dia mais consistente e fascinante.
As descobertas do naturalista Darwin seguem até hoje como uma espada que corta, provoca e derruba nosso orgulho mais básico. Concordo com os pesquisadores Richard Wrangham e Dale Peterson, que escreveram o livro O Macho Demoníaco: As Origens da Agressividade Humana, que talvez o orgulho seja a principal característica dos grandes primatas – e, neste grupo, estamos incluídos. Uma característica que turva a percepção.
Aí entra a aprovação da Lei Arouca. Pois como explicar que ainda hoje, em face de tantas tecnologias e formas de obter novos conhecimentos, ainda se pratique a barbárie do uso de animais sencientes em pesquisas científicas – de caráter nem sempre claro, nem para os próprios pesquisadores? E como explicar que, embora existam muitas alternativas ao uso de animais de laboratório, e que na Europa estas já venham sendo usadas em diversos hospitais, centros de pesquisas e centros veterinários, aqui no nosso Terceiro Mundo preferimos pagar mais caro por ‘modelos vivos’ que dão lucro à imensa indústria de animais?
Uma explicação para que a humanidade siga sobrepujando os animais, negando-lhes o estado de direito, humilhando suas necessidades mais básicas, pode ser a vergonha de admitir que os animais pertencem à mesma natureza humana ou que o ser humano é, enfim, um animal. O ser humano nega estender os direitos morais por diversas razões, desde o preconceito chamado especismo, até porque reconhecer que os animais têm direitos fere mais uma vez o orgulho humano, como muitas vezes na história já aconteceu. Desde o século de Darwin, é deveras difícil assimilar e admitir que não somos o centro do Universo e, se requeremos direitos de sermos respeitados e valorizados nos nossos instintos mais básicos, nada mais natural que estender esses direitos a animais que, como nós, ou como muitos de nós, sentem medo, dor, afeto e possuem até capacidade de abstração.
Nada mais lógico que, se nos regalamos seres dotados de capacidade intelectual, devemos por essa mesma razão aguçar nossa percepção para as necessidades dos outros animais, e não continuar seguindo no egoísmo puramente preconceituoso de colocar a humanidade em primeiro lugar. De fato, colocar o ser humano em primeiro plano não contribuiu para que ele ficasse ileso das consequências de seus atos diante da Natureza. A cada dia, percebemos que nossas ações, ao contrário do que gostaríamos, nos colocam como seres frágeis diante de um cataclisma ambiental.
Imaginar que o criacionismo deva ser ensinado nas escolas junto com as ideias evolucionistas, desprezando as demais crenças religiosas e misturando-as com fatos comprováveis e básicos da ciência, é querer preservar o pseudopoder que nos arrogamos há muitos séculos, quando tais disparates até eram admissíveis ante a ignorância da época. Mas, hoje, não.
Ora, quem hoje considera plausível a teoria de Charles Darwin – e ela é, pois constitui a base da Biologia e de muitos estudos a ela relacionados – certamente precisa considerar as implicações morais dessa brilhante descoberta. Tom Regan defende que não é apenaes o sofrimento que infligimos aos animais que está errado. “O que está fundamentalmente errado, em vez, é o sistema inteiro, e não seus detalhes. Pela mesma razão que mulheres não existem para servir aos homens, os pobres para os ricos, e os fracos para os fortes, os animais também não existem para nos servir”, aponta. Que já nos serviram, e muito, durante o desenvolvimento humano, não é justificativa para que sigamos explorando, mesmo com tecnologia e inteligência suficientes para utilizar alternativas – que já existem – e criar novas. Não há justificativa moral para a traição que lhes causamos.
Nossa responsabilidade moral por sermos sujeitos que modificam o mundo não nos confere o direito da tirania sobre os animais. Muito ao contrário, nos coloca a obrigação moral de libertar e reparar, se é que é possível, nossos erros. Mas, para tanto, é preciso percebê-los.
Bibliografia
RACHELS, J. Created from animals: the moral implication of Darwinism. Oxford: Oxford University Press, 1990.
WRANGHAM, R.;, PETERSON, D. O Macho Demoníaco: As Origens da Agressividade Humana. Comportamento, 1998.
REGAN, T. The Philosophy of Animal Rights by Dr. Tom Regan. Em: www.cultureandanimals.org/animalrights.
“DIREITO DOS ANIMAIS – PERGUNTAS E RESPOSTAS”, em www.vegetarianismo.com.br
NACONECY, C. M. Ética e Animais: um guia de argumentação filosófica. EDIPUCRS, 2006.