Após uma juíza da 3ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, decidir que oito gatos e três cães vítimas de maus-tratos não poderiam processar seus antigos tutores, juristas entrevistados pela Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA) apresentaram argumentos em defesa do direito de animais moverem ações judiciais.
Na decisão, a magistrada argumentou que, embora o artigo 216 do Código do Meio Ambiente do Estado do Rio Grande do Sul (Lei 15.434/20) reconheça que os animais são seres sencientes – isso é, capazes de sentir sensações e experimentar sentimentos de maneira consciente -, eles são sujeitos apenas de direitos despersonificados.
“Referido dispositivo legal, apesar de estabelecer a natureza sui generis dos animais domésticos, não prevê a capacidade processual dessa categoria, o que nem poderia, sob pena de inconstitucionalidade formal e material, uma vez que compete privativamente à União legislar sobre Direito Processual, assim como sobre Direito Civil, conforme disposto no art. 22, I, da Constituição da República”, afirmou a juíza Jane Maria Köhler Vidal no despacho liminar.
O argumento da magistrada é oposto ao posicionamento do juiz federal Vicente de Paula Ataíde Jr., professor adjunto do Departamento de Direito Civil e Processual Civil da UFPR. Para ele, a decisão da juíza “é um contrassenso”.
“Se reconhece que os animais são sujeitos de direitos, torna-se implícita a capacidade de ser parte em processo judicial. No Brasil, a Constituição garante a todos os sujeitos de direitos o acesso à Justiça, ou seja, quem tem direitos tem o direito de ir a juízo para defendê-los”, explicou.
“Essa é uma lição elementar de Direito Processual Civil. Além disso, os entes despersonalizados, ou seja, sujeitos de direitos sem personalidade jurídica, sempre tiveram reconhecida a sua capacidade de ser parte. Não é diferente em relação aos animais. Desde 1934, o Decreto 24.645 garante a capacidade processual aos animais. Esse Decreto tem natureza de lei e nunca foi revogado por lei posterior”, completou.
A advogada Letícia Filpi também defende a premissa de que animais podem ser autores de ações judiciais. Segundo ela, o animal é sujeito de direito, possui senciência e, por isso, é passível de sofrer dano moral. “Porque o dano moral é a dor da alma e isso está na doutrina jurídica”, explicou.
E como o animal é passível de sofrer o dano, ele também pode, segundo a jurista, pedir indenização. “A conduta de maus-tratos também envolve danos psicológicos. Afinal, os animais têm essa questão íntima e complexa que todo ser senciente tem, então eles podem pedir indenização por dano moral”, argumentou.
Letícia explicou que o artigo 5º da Constituição Federal aborda os sujeitos e que não importa se é um sujeito humano ou não humano. “O indivíduo tem direito ao acesso ao Judiciário”, disse a advogada, que reforçou ainda que uma lei não pode prever tudo o que acontece, então há “uma flexibilidade de interpretação”. “Como há um mandamento constitucional no artigo 5º, o magistrado pode interpretar o Código Civil à luz desses princípios da Constituição Federal. Às vezes não está expresso na lei, mas o juiz pode flexibilizar a interpretação da lei. Então, sim, o animal pode ser autor de ação e pode receber indenização por dano moral”, reforçou.
Letícia citou ainda uma frase do jurista e filósofo Miguel Reale, que diz que “os direitos da personalidade são inatos”. “São direitos que nascem com o sujeito. Então, nem sempre o ordenamento jurídico positivado vai prever todas as hipóteses que podem acontecer. Como agora o Direito Animal está crescendo, o ordenamento jurídico não tem como prever as novas situações que estão ocorrendo. Isso não significa que o animal não tenha direito, o animal tem esse direito. E é por isso que é preciso flexibilizar a interpretação para a lei acolher esses novos sujeitos. E isso a juíza não fez. Ela foi apenas uma mera aplicadora da lei”, explicou.
A advogada comparou as pessoas jurídicas, consideradas sujeitos despersonificados, com os animais, que recebem o mesmo título, para mostrar que não há equívoco algum na tentativa de processar seus antigos tutores realizada pelos cães e gatos no Rio Grande do Sul. Letícia citou o argumento da juíza sobre os animais não poderem estar no polo ativo da ação porque são sujeitos apenas de direitos despersonificados e rebateu: “a pessoa jurídica também é sujeito de direito sui generis, mas pode mover uma ação por abalo de sua imagem”.
“Se uma pessoa jurídica tem direitos, o animal também tem. Uma pessoa jurídica é uma abstração, o animal não. Ele é um sujeito que sente, que sofre, que existe na vida real, é palpável. Então, se a pessoa jurídica pode entrar com uma ação, porque o animal não pode? Ele pode sim”, disse.
Os motivos que embasam o direito do animal ser autor de uma ação, segundo a advogada, são: possuem direitos naturais inerentes à sua existência; possuem capacidade de sentir dor física e emocional; são sujeitos de direitos da personalidade, embora não previstos como tal pelo Código Civil, posto que possuem existência autônoma e não são coisas semoventes; são sujeitos de uma vida (Tom Regan), com existência autônoma. O tema é debatido por Letícia Filpi no artigo “O dano moral em relação aos animais”.