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Inserção dos Direitos Animais nas aulas de Matemática: uma perspectiva Etnomatemática

30 de dezembro de 2014
13 min. de leitura
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  1. 1.      Como cheguei à Etnomatemática

Antes de optar por fazer Licenciatura em Matemática, sempre tive em mente colaborar para a causa animal em qualquer área que seguisse, então ao iniciar o curso pareceu-me um pouco complicado, pois a matemática escolar é vista como uma disciplina supraterrestre e separada do restante das matérias. No primeiro ano do curso foi um choquever que ao longo de 10 anos na escola pública não aprendi nada do que deveria ter aprendido, isso que sempre tive aptidão para a disciplina.
Eu era o tipo de aluna que não ficava perguntando o “pra que serve isso, professor?”, eu sempre gostei de resolver os exercícios que os professores passavam. Percebi que havia algo de errado com o modo que fui ensinada, pois quando se assimila, quando se aprende não se esquece de uma hora para outra. Foi na faculdade que me veio a pergunta “pra que serve isso?”, isso me fez começar a ler o Introdução à Filosofia da Matemática, de Bertrand Russel e pude ver que matemática não se resume a apenas fórmulas e exercícios. Acrescentando a leitura de Pedagogia da AutonomiaI, de Paulo Freire, cheguei à conclusão de que era necessário um ensino de matemática que dê significado e fui procurar algum material sobre isso. Cheguei ao livro Da Realidade à Ação, de Ubiratan D’Ambrosio, onde me deparei com sua proposta de uma Etnomatemática e fiquei feliz que alguém já havia feito a crítica ao ensino de matemática tradicional e que possibilitou a abertura para trabalhar os Direitos Animais.

  1. 2.      O que é Etnomatemática?

Na educação tradicional o aluno é visto como um recipiente vazio onde o professor deposita os conteúdos e só através da repetição do que o professor ensinou ele aprende. Essa visãoPaulo Freire (1987) chama de “educação bancária”, onde só o professor tem o poder da palavra e ocupa papel central no processo de ensino-aprendizagem. Apesar de ter escrito sobre isso na segunda metade do século XX, a crítica ainda é muito atual.
Na educação matemática, quem faz uma crítica parecida é Ubiratan D’Ambrosio, contemporaneamente a Paulo Freire. D’Ambrosio (1986) defende que o ensino de matemática está inserido dentro de um contexto sociocultural (e mesmo a Matemática pura serve a interesses políticos e econômicos) e não é uma disciplina politicamente neutra, um conjunto de ideias imutáveis, verdades absolutas. Para Freire o processo de ensino-aprendizagem é uma ação dialética intersubjetiva entre educador e educando, e só através do diálogo é que se pode construir uma educação que estimule uma criticidade no segundo. D’Ambrosio tem a mesma perspectiva que Freire ao enxergar que o centro do processo de ensino-aprendizagem é o aluno e não o professor e que esse aluno não entra vazio na escola, que ele carrega consigo uma bagagem cultural e que isso não pode ser ignorado por quem se diz educador.
O autor critica o ensino de matemática desvinculado do contexto sociocultural dos alunos como um ensino falho e desinteressante. Ele propõe mudarmos a estrutura de ensino de matemática onde a ênfase não seria nos conteúdos, mas sim numa metodologia que desenvolva a capacidade do educando de ter autonomia de matematizar situações reais e criar teorias para resolvê-las.
Em oposição ao modo tradicionalista de separar a matemática da realidade D’Ambrosiocriou o programa etnomatemática, que não é só uma matemática étnica, mas sim “[…] a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais.” (D’AMBROSIO, 1993, p. 5-6). Assim, para ele, esse programa se aproximaria de uma teoria do conhecimento, então define que: “[…] etnomatemática é um programa que visa explicar os processos de geração, organização e transmissão de conhecimentos em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem nos e entre os três processos.” (D’AMBROSIO, 1993, p. 7).
Essa proposta de D’Ambrosio acaba por reconhecer que fora da escola e da academia existem outras matemáticas. Em Etnomatemática Pesquisa em Movimento, GelsaKnijnik, Fernanda Wanderer, Ieda Maria Giongo e Claudia Glavam Duarte ao descrever o programa etnomatemática comentam:
Ao colocar o conhecimento matemático acadêmico somente como uma das formas possíveis de saber, a Etnomatemática põe em questão a universalidade da Matemática produzida pela academia, salientando que esta não é universal, na medida em que não é independente da cultura (2012, p.24).
Ainda nessa perspectiva, as autoras afirmam que a Etnomatemática está intimamente ligada com a Educação Matemática, e interessada em examinar as diferenças culturais que a envolvem.

  1. 3.      Etnomatemática e Direitos Humanos.

D’Ambrosio (1997) propõe um ensino transdisciplinar que possa transmitir uma nova ética, onde conscientize os seres humanos e faça-os parar com todas as destruições que vêm sendo causadas, como as guerras, exploração desenfreada do meio ambiente, etc.Ele define transdisciplinaridade como: “Um enfoque holístico ao conhecimento que se apoia na recuperação de várias dimensões do ser humano para compreensão do mundo na sua integridade.” (D’AMBROSIO, 2009, p.19)
Na teoria de D’Ambrosio percebe-se uma grande preocupação em estabelecer uma ciência que deixe de ser arrogante e que apenas seja mantida por uma busca incessante do conhecimento. Uma preocupação em que a ciência seja uma forma de combater as injustiças sociais, que amenize as mazelas humanas, logo que proporcione um estado de bem-estar social, adotando um modelo politico democrático. Como assim diz em Da Realidade à Ação:
Parafraseando Brecht, quando colocou na boca de Galileu as palavras: ‘Eu afirmo que o único objetivo da ciência é aliviar a dureza da existência humana’, o ensino de matemática ou de qualquer outra disciplina de nossos currículos escolares, só se justifica dentro de um contexto próprio, de objetos bem delineados dentro de um quadro das prioridades nacionais (1986, p. 14).
Ao propor um modo de ensino que ultrapasse os muros da matemática, e da escola, D’Ambrosio propõe um modo que se baseie no “próprio conceito de vida” (2009, p.22), onde o fenômeno vida é resultado de uma interação entre o individuo, a sociedade e a natureza. Nesse modelo de ensino que o autor propõe vê-se grande influência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pois é justamente o bem-estar social um dos objetivos dela, como pode se ver no artigo XXII (p. 12):
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
E também no artigo XXVI (p. 14):
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
Através da citação anterior e ao compará-la com a proposta de D’Ambrosio ao longo de suas obras vemos que seu objetivo maior é o proposto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, ou seja, uma educação cidadã que eduque para a paz, ou em conceitos do autor: “a Paz Total” (1997, p.87).

  1. 4.      Etnomatemática: porta de entrada para os Direitos Animais

Em Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer (1993, p. 24) D’Ambrosio faz o seguinte apontamento:
Nossas responsabilidades, como educadores numa democracia, vão além de reproduzir o passado e os modelos atuais. Estamos preocupados em construir um futuro que poderá ser de diferentes formas, mas deverá ser melhor que o presente. Esse é nosso objetivo. Pergunta: O que tem a matemática a ver com isso? Nossa resposta é, sem dúvida: tudo.
Seguindo as orientações do autor podemos inserir na Educação Matemática a temática dos Direitos Animais, pois o que há de mais atual do que a exclusão dos animais não humanos do nosso circulo moral? Sendo que essa desconsideração com eles é basicamente justificada por ser cultural e, portanto, imutável; ou seja, uma reprodução do passado.
Como foi abordado anteriormente no artigo Etnomatemática: porta de entrada para os Direitos Animais, um dos argumentos especistas de “superioridade” dos seres humanos perante os outros animais é a sua capacidade matemática como exemplo de racionalidade. Assim, a matemática é a técnica que faz o homem ter o domínio da natureza, “achar seus segredos”. Essa é a ideologia transmitida nas aulas de matemática na escola, por trás da matemática acadêmica e, como foi pontuado no artigo citado, mostra que a matemática não é neutra. Ela reafirma a exploração dos animais não humanos, mas com a educação vegana formal é possível reverter isso e transformá-la numa forma de libertação.
A Etnomatemática é uma abertura para trabalhar a temática e questionar essa visão. No seu livro Transdisciplinaridade, D’Ambrosio diz que precisamos buscar uma nova ética, uma que respeite a diversidade, mas essa nova ética que ele propõe que apenas pensa em “respeitar” para não causar um dano às novas gerações humanas é limitada.
O limite da Etnomatemática d’ambrosiana é o limite da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Alguns apontamentos sobre o limite de Declaração Universal dos Direitos Humanos são feitos pela filósofa Sônia T. Felipe no artigo Alcances e Limites da Declaração dos DDHH. Felipe (2006, p. 54) diz:
Mesmos tendo passado por duas guerras dizimadoras, a Europa e os Estados Unidos da América do Norte, liderando os demais países representados na Comissão que preparou o texto da Declaração, não reconheceram o direito de ‘viver em paz, a salvo de atos de opressão, violência e terror’, em outras palavras, a salvo de atos biocidas, genocidas e ecocidas, a seres não-humanos: animais, plantas e ecossistemas.
 Na Declaração os únicos sujeitos-de-uma vida são os humanos, são os humanos que têm liberdade para usufruir da propriedade. Seu eixo é antropocêntrico e as outras espécies que habitam esse planeta são meios para fins humanos. Ela é contratualista e só trata de justiça com aqueles que podem fazer contratos.Ela não serve para alertar sobre o fato de que a natureza não pode eternamente ser apropriada pelo homem e que a vida de outras espécies tem um valor inerente.
A ética da diversidade proposta por D’Ambrosio já foi superada pelo mais polêmico recorte bioético da ética prática contemporânea chamado Ética Animal, assim como a Declaração dos Diretos Humanos. Só através da Ética Animal é que expandimos nosso círculo moral e  respeitamos o não humano pelo seu valor inerente e vulnerabilidade.

  1. 5.      Alguns modos de abordar Direitos Animais nas aulas de Matemática

O primeiro modo que posso sugerir de se abordar a temática é ao se entrar em Teorema de Pitágoras, Razão Aurea, números irracionais, entre outros, tratar antes do modo de vida pitagórico de respeito aos animais não humanos.
Pitágoras acreditava na metempsicose, ou seja, que ao morrermos poderíamos reencarnar em qualquer forma de vida animal, portanto que a alma era imortal e que nada era absolutamente novo, mas que as coisas se repetiam em ciclos. Ao considerar que as almas eram imortais e que a cada encarnação aparecem em várias formas animais, a doutrina pitagórica implicava o respeito aos animais não humanos, pois poderiam ser conhecidos em outros corpos e ao matar-se um animal estaria se cometendo crime de assassinato. Uma das práticas comuns dos membros da comunidade pitagórica era não serem enterrados com vestimentas feitas com lã e Pitágoras chegou a ser ridicularizado por impedir que batessem em um cão, dizendo que reconhecia o espírito de um amigo. Claro que um educador vegano por questões éticas aproveitaria a oportunidade para falar da senciência, do valor inerente que cada espécie não humana tem, assim como a vulnerabilidade e, consequentemente, que ao consumir produtos de origem animal estamos causando tanta dor e sofrimento aos animais não humanos assim como causaríamos em humanos ao cometer um ação violenta contra a integridade física, por exemplo. Assim, ultrapassa-se o ponto de vista místico proposto por Pitágoras e entra-se na esfera de uma reflexão ética sobre o tema.
Outro modo de tratar dos Direitos Animais é utilizando o livro da filósofa Sônia T. Felipe Galactolatria: Mau deleite para elaborar situações problemas, pois contém muitos números desde o impacto ambiental até o nutricional dos malefícios do leite. Ao elaborar uma situação problema do impacto ambiental, por exemplo, a autora, ao abordar sobre os dejetos despejados por uma vaca que produz 40 litros de leite por dia, afirma que a proporção de litro de leite para litro de dejetos seria de “1 litro de leite para 13 litros de dejetos” (FELIPE, 2012, p. 58), sendo esses dejetos uma mistura de fezes, urina e outras coisas. Poder-se-ia pedir aos alunos para perguntarem aos pais quantos litros de leite se consome por mês em casa e, utilizando a regra de três simples, calcular a quantidade de dejetos que ele e sua família são responsáveis por despejar nos nossos rios, lagos e lençóis freáticos. Este livro proporciona inúmeras atividades que poderiam ser usadas nas aulas de matemática por educadores veganos.
Acredito que esses dois modos sejam suficientes para poder exemplificar maneiras de como se inserir nas aulas de matemática a temática, mostrando assim que a matemática está sim relacionada com os direitos animais. Vale ressaltar que cabe ao professor procurar diferentes meios de como inserir a temática em cada realidade onde ocorre a ação pedagógica, pois a didática que o professor vai adotar há muito tempo deixou de ser uma receita de bolo, ou seja, ser prescritiva, para ser uma ação refletida pelo professor para poder se adequar a cada contexto sócio-cultural onde está sendo trabalhada. Isso vai desde a cidade, o bairro, a escola; até cada classe, pois de uma para a outra interação dos alunos muda muito.
NOTA: Este texto se originou da palestra proferida no VIII Seminário de Ética e Direito Animal: Direitos Animais – Direitos Humanosrealizado peloDiversitas/FFLCH-USP nos dias 06 e 07 de novembro de 2014, em São Paulo. E esta sendo publicado aqui com algumas alterações para não se repetir o que já havia se escrito nos dois primeiros artigos dessa coluna.
Agradeço a prof. Dra. Evely Vânia Libanori pela leitura e revisão do texto.
 Referências
D’AMBROSIO, Ubiratan (1986). Da realidade à ação: reflexões sobre educação e matemática. São Paulo: Summus; Campinas: Ed. da Unicamp.
____________ (1993). Etnomatemática: arte ou técnica de explicar e conhecer. São Paulo: Ática.
____________ (1996). Educação Matemática: Da teoria à prática. Campinas: Papirus.
____________ (1997). Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athena.
____________ (2009). Um enfoque transdisciplinar à educação e à historia da matemática. In: BICUDO, M.A.V; BORBA, M.C. Educação matemática: pesquisa em movimento. São Paulo: Cortez. p. 13-29.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acessado em 01 nov. 2014.
FELIPE, Sônia T. (2002). Bioética e Direitos Humanos: à luz da igual consideração de interesses (Singer) e da reciprocidade (Rawls). In: SILVA, Reinaldo P.; et al (orgs.). Bioética e direitos humanos. Florianópolis: OAB/SC Editora. p. 55-88.
___________ (2006). Alcance e limites da declaração universal dos DDHH. In: AGUIAR, Odílio A; et.al. (orgs.). Filosofia e direitos humanos. Fortaleza: Editora UFC. p. 53-96.
_______________ (2012) Galactolatria: mau deleite. São José, SC: Ed. da autora.
FREIRE, Paulo (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
_____________ (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra.
KNIJNIK, Gelsa, et.al. (2012). Etnomatemática: pesquisa em movimento. Belo Horizonte: Autêntica editora.
 
 

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