A ação terá ao menos R$ 23 milhões federais. Fogo no bioma é mais ligado a ações humanas do que ao clima
Um programa do governo quer evitar novos grandes incêndios no Pantanal, que teve um terço torrado pelas chamas em 2020. A incidência do fogo no bioma depende mais da mão humana do que do clima. Uma entidade testa modelos para recuperar a vegetação nativa do bioma na maior RPPN do país.
“O plano traz uma visão mais global, os fatos recentes, os conhecimentos técnicos e tradicionais de servidores federais e de instituições parceiras”, contou por e-mail Flávia Saltini Leite, coordenadora do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (PrevFogo) do Ibama.
Na balança da reação está a tragédia que assolou a planície alagável, há apenas três anos. As imagens de árvores e animais calcinados correram o mundo e acenderam um alerta vermelho sobre os riscos ao Pantanal se irregularidades na produção rural e a crise do clima forem desprezadas.
Este ano, órgãos federais contratarão mais brigadistas para combater incêndios e dispararam a queima preventiva de vegetação, dentro e fora de parques e outros tipos de unidades de conservação. Isso reduz as chances de que chamas fujam de controle pela associação de calor e seca extremos.
“Estamos nos preparando para evitar as cenas horrorosas que vimos nos últimos anos, com a destruição do patrimônio inestimável que é o Pantanal”, disse em audiência pública na Câmara o secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), João Capobianco.
O manejo integrado do fogo é um dos focos do plano federal para proteger um bioma rico em biodiversidade cuja área é mais de 90% privada. Apenas cerca de 5% do Pantanal estão em unidades de conservação – 6 de proteção integral e 22 de uso sustentável – e terras indígenas.
A iniciativa abraça outras pastas federais, como a dos Transportes, pesquisadores, ongs e agências de fiscalização. Técnicos e gestores estaduais serão capacitados para prevenir e combater as chamas. A queima controlada será testada até em parques estaduais ameaçados por incêndios.
Ao menos R$ 23 milhões foram garantidos no orçamento federal deste ano para o plano. Mais recursos serão injetados pelos governos nacional e dos estados se o calor e a seca se tornarem mais críticos.
No eixo de preparação, estão em implantação ao menos 80 km de aceiros e mais aeronaves e veículos serão mobilizados. Um painel cruzará informações de satélites, a localização e dados de ocorrências de incêndios, da atuação de brigadistas e bombeiros.
Na linha da prevenção, ocorrerão ações para conter o risco de incêndios desde estradas, rodovias e fazendas, amparadas por uma campanha de comunicação pública. O expertise de entidades civis será aproveitado. Também é esperada a aprovação da Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo.
Apresentada pelo governo Michel Temer, a legislação regula e propõe a troca do uso do fogo no campo, por produtores, comunidades tradicionais e indígenas. Chancelado na Câmara, o texto aguarda votação no plenário do Senado. Depois, deve ser convertido em lei pela sanção presidencial.
Vidas calcinadas
Por onde passam, as chamas descontroladas deixam um rastro de morte. Em 2020 foi assim. Estimativas publicadas na revista Scientific Reports estimaram em 17 milhões os mamíferos, répteis (foto abaixo) e aves que perderam a vida nos incêndios pantaneiros.
Mesmo espécies ágeis e grandes sofreram. Metade da população das onças-pintadas no bioma foi afetada pelo fogaréu. Além disso, 78% das áreas onde vive o felino foram atingidas pelo fogo. Os números são de artigo publicado na revista Communications Biology.
“O fogo era tido como uma ameaça de baixo risco para as onças no Pantanal. Mas, nossos resultados demonstraram a magnitude dos impactos [sobre a espécie]”, explicou em reportagem de ((o))eco Alan de Barros, primeiro-autor do estudo e doutorando em Ecologia na Universidade de São Paulo (USP)
Diante desses cenários, o plano encabeçado pelo governo federal para conter incêndios no bioma deve beneficiar não só populações e atividades humanas, mas também a conservação de animais, plantas e outras formas de vida que interagem compondo a biodiversidade do Pantanal.
“As ações voltadas à conservação do bioma buscam um equilíbrio social, ambiental e econômico pela integração de aspectos históricos, culturais, ecológicos e tecnológicos”, descreve Flávia Saltini Leite, do Ibama.
Inicialmente desenhado para 2023, o plano federal contra o fogo no Pantanal terá resultados avaliados e debatidos com estados e apoiadores até dezembro, podendo ser estendido para outros anos e regiões do país.
Arrocho climático
Investigações policiais e ambientais apontaram que os incêndios de 2020 no Pantanal foram criminosos ou provocados por pecuaristas forçando a renovação de pastagens, com fogo. Mas o cenário tem outras ameaças circundando a maior planície alagável do planeta.
Alguns efeitos práticos da crise mundial do clima são reforçados por fenômenos históricos que alteram a temperatura e a circulação das águas do Pacífico equatorial, afetando os humores do clima em grande parte do planeta.
Este ano é de transição da La Niña ao El Niño. Seus efeitos colaterais podem perdurar por 4 anos e incluem mais calor e seca na Amazônia, podendo afetar também o Pantanal. “Há riscos de aumentar as queimadas no bioma”, pondera João Capobianco, secretário-executivo do MMA.
Diante da situação dramática para conservacionistas e produtores, o governo quer decretar “emergência climática” em 1.038 municípios onde vivem 57% dos brasileiros, ou 122 milhões de pessoas. O Ministério Público Estadual mapeou 318 imóveis rurais sob risco de incêndios no Mato Grosso do Sul.
Coordenadora do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Renata Libonati avalia que as condições climáticas ampliaram desde 2019 as chances de incêndios no Pantanal. Todavia, eles ocorrem mais pela mão humana.
“Apenas 1% do fogo no bioma tem origem natural. Por isso, é preciso evitar seu descontrole. Muitas vezes isso ocorre sem intenção, mas pode criar incêndios com grandes consequências econômicas, sociais e ambientais”, avalia. O Lasa integra o plano federal contra o fogo no bioma.
Todavia, há outros fatores na balança de riscos ao Pantanal. Sua superfície com água caiu 29% nas três décadas passadas, mostrou o MapBiomas. Ainda menos intensas do que em outras regiões, as perdas de vegetação nativa avançam no bioma, inclusive dando espaço inédito à soja.
Simultaneamente, barragens e portos ligados à planejada hidrovia do rio Paraguai trarão impactos variados. “Alterar o regime natural de águas mudará a configuração da vegetação, dos alagados e do regime de fogo no Pantanal”, avisa Renata Libonati, do Lasa/UFRJ.
Juntando os cacos
Avaliações técnicas indicaram que 33% do Pantanal foi calcinado em 2020. Até então, a média anual afetada pelo fogo era de 8%. “Boa parte da área queimada naquele ano não havia queimado nas duas décadas anteriores, como florestas ao norte do bioma”, descreve Renata Libonati.
Os prejuízos das chamas sobre a ecologia pantaneira podem durar décadas, avaliaram ongs. Para acelerar a cura dessas feridas, uma entidade civil testa modelos para recuperar a vegetação natural na maior Reserva Particular do Patrimônio Natural do país, a RPPN Sesc Pantanal.
Quase 90% da área protegida queimou em 2020, ou 97 mil ha de seus 108 mil ha. Novos e menores incêndios ocorreram nos anos seguintes, sobre tabocais, matas secas e ciliares, ao longo de alagados e cursos d’água. Os 30 primeiros ha em recuperação servirão de piloto para demais áreas no bioma.
O trabalho da Fundação Pró Natureza (Funatura) deve ser finalizado este ano, após o fim das chuvas. “Teremos um aprendizado importante para a recuperação de áreas no Pantanal frente à ameaça de novos incêndios”, explica César Victor do Espírito Santo, coordenador de projeto da ong.
Comunidades mato-grossenses como de Capão do Angico, em Poconé, e de São Pedro de Joselândia, em Barão de Melgaço, participam da produção, do cultivo e do acompanhamento das mudas. As ações seguiram diretrizes federais para o manejo integrado do fogo.
Essas e outras populações foram igualmente capacitadas para implantar aceiros e compor brigadas voluntárias contra incêndios, especialmente ao longo do rio Cuiabá. Tais agentes devem fazer um primeiro combate às chamas e alertar as autoridades públicas.
O projeto igualmente abrirá poços artesianos com bombas solares em pontos remotos da reserva para reforçar a luta contra o fogo. “A falta d’água foi uma das dificuldades levantadas por bombeiros e brigadistas nas últimas tragédias, mesmo no Pantanal”, conta César Victor, da Funatura.
A empreitada de três anos receberá ao todo R$ 1 milhão, sobretudo do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF, sigla em Inglês), e tem apoio de entidades como Mulheres do Pantanal (Mupan), Wetlands International e Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas (Inau).
“O Pantanal regula as inundações e o clima, mantém fontes de alimentos e de água, abriga animais e plantas. É o berçário de inúmeras espécies de peixes de rios do Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país. Sua preservação é fundamental”, arremata César Victor.
Fonte: OECO