Recentemente, o professor de direito da Rutgers School of Law, de Newark, New Jersey, Gary Francione, uma das referências na luta pelo abolicionismo animal, publicou um artigo intitulado “A ‘humanely’ killed animal is still killed – and that’s wrong”, em que explica por que é errado matar um animal independente do tratamento dado a ele. Francione parte do princípio de que a sabedoria convencional ocidental sobre ética animal diz que matar um animal não é o problema, mas sim fazê-lo sofrer.
Ou seja, no mundo em que vivemos defende-se a crença de que se tratarmos “bem” um animal e depois o matarmos de forma “humana” está tudo bem, já que o nosso único suposto erro seria fazê-lo sofrer. Essa consideração é um equívoco em essência, já que além de ignorarmos em algum nível o sofrimento visível, também ignoramos a subjetividade do sofrer, já que aos olhos da sociedade ocidental o sofrimento animal só é reconhecido caso sua manifestação de dor seja excruciante, ou seja, bastante desconfortável aos olhos humanos.
“Se alguém causar sofrimento a um cão ou gato, será criticado. Mas cães e gatos indesejados são rotineiramente ‘colocados para dormir’, mortos em abrigos onde aplicam injeção intravenosa de pentobarbital de sódio, e a maioria das pessoas não se opõe enquanto o processo é administrado adequadamente por uma pessoa treinada”, critica Gary Francione. Ele relata que antes do século 19 os animais eram considerados coisas. Portanto, se prejudicássemos “uma vaca do vizinho”, por exemplo, a nossa obrigação não era com o animal, mas sim com o “dono”.
Ou seja, o prejuízo causado à vaca, o que aquilo representava a ela como ser senciente era completamente ignorado. “Não significa que negássemos que fossem sensíveis, ou subjetivamente conscientes, e tivessem interesse em não experimentar dor, sofrimento ou angústia. Mas acreditávamos que poderíamos ignorar esses interesses porque os animais eram nossos inferiores. Poderíamos raciocinar; eles não poderiam. Poderíamos usar a comunicação simbólica; eles não poderiam”, enfatiza no artigo “A ‘humanely’ killed animal is still killed – and that’s wrong”.
A mudança formal em relação a essa crença, como bem observada por Francione, surgiu no século 19 com a elaboração da teoria do bem-estar, que propôs uma mudança de paradigma. O advogado e filósofo Jeremy Bentham sugeriu uma formal rejeição à ideia de que os animais são coisas, defendendo a ideia de que os animais não humanos têm valores morais.
Em 1789, Bentham argumentou que embora um cavalo ou cachorro adulto seja mais racional e tenha mais aptidão para se comunicar do que uma criança humana, não é isso que devemos ponderar: “A questão não é: eles podem raciocinar? Ou então, eles podem falar? Mas, eles podem sofrer?”
Segundo o professor Francione, Bentham sabia que os animais eram cognitivamente diferentes dos humanos, porém, isso não significava que o sofrimento deles não era moralmente importante. Para o advogado e filósofo do século 19, ignorar o sofrimento dos animais com base em suas espécies era tão injustificável quanto a escravidão baseada na cor da pele. Contudo, Bentham que, assim como John Stuart Mill, foi uma das primeiras e principais referências do utilitarismo, não defendia a libertação animal. Não se posicionava contra o uso de animais.
“Ele sustentou que era moralmente aceitável usar e matar animais para propósitos humanos desde que os tratássemos bem. De acordo com Bentham, os animais vivem no presente e não estão cientes do que perdem quando tiramos suas vidas”, relata Gary Francione, acrescentando que o filósofo utilitarista via o abate como um bem que os seres humanos faziam aos animais, desde que o processo fosse relativamente indolor.
Em sua defesa, Jeremy Bentham dizia que a morte dos animais por mão humanas era e sempre poderia ser mais rápida, logo menos dolorosa, do que aquela que os aguardava no curso inevitável da natureza. “Em outras palavras, [na ótica de Bentham], a vaca não se importa que nós a matemos e a comemos. Ela se preocupa apenas com a forma como a tratamos e matamos, e seu único interesse é não sofrer”, informa o professor Francione, citando o posicionamento de Jeremy Bentham.
Essa crença de Bentham é partilhada até hoje por muitas pessoas que não veem nada de errado na morte de um animal reduzido a alimento, desde que o seu fim seja supostamente indolor. Na década de 1970, a teoria utilitarista de Jeremy Bentham foi endossada pelo filósofo australiano Peter Singer, que inclusive reproduz no seu clássico “Animal Liberation”, de 1975, algumas crenças pré-formuladas por Bentham.
“Acreditamos que essa visão está errada. Dizer que um ser senciente não é prejudicado pela morte é definitivamente estranho. Senciência não é uma característica que evolui para servir como um fim em si. Em vez disso, é uma característica que permite aos seres que a possuem identificarem situações prejudiciais e que ameaçam a sobrevivência”, frisa Gary Francione.
Não é novidade para ninguém que animais preferem permanecer vivos, o que prova que o anseio pela continuidade da existência também é uma prerrogativa não humana. Sendo assim, não é coerente ou justo afirmarmos que um animal não é prejudicado quando sua morte é um meio para satisfazer o paladar ou para obtenção de lucro, por exemplo. O professor Francione acredita que dizer que os animais não têm interesse em viver seria o mesmo que dizer que uma pessoa com olhos não tem interesse em enxergar.
“Os animais em armadilhas mastigam suas patas ou membros, assim infligindo um grande sofrimento sobre si mesmos, e fazem isso para continuarem vivendo”, exemplifica. Sob a perspectiva utilitarista, e analisando situação análoga, Peter Singer diz que embora um animal possa lutar contra uma ameaça à sua vida, isso não significa que ele tenha a continuidade mental necessária para desenvolver um senso de si mesmo. Francione discorda:
“Mesmo que os animais vivam no ‘presente eterno’ que Bentham e Singer pensam que eles habitam, isso não significa que eles não são conscientes de si mesmos ou que não têm interesse em continuarem existindo. Os animais ainda estarão conscientes de si mesmos em cada instante de tempo e terão interesse em perpetuar essa consciência. Seres humanos que têm uma forma particular de amnésia podem ser incapazes de se recordarem de lembranças ou de articularem ideias sobre o futuro, mas isso não significa que eles não sejam autoconscientes, que não tenham senso de si mesmos em cada momento, ou que a cessação dessa consciência não seja prejudicial.”
De acordo com o professor Gary Francione é horar de repensarmos a nossa relação com os animais para além do tratamento “humanitário”. Se testemunharmos e analisarmos a morte de um ser não humano como uma questão moral, isso pode nos levar naturalmente à conclusão de que independente do propósito a morte de animais reduzidos a alimentos ou fontes de produtos não é moralmente justificável. “Levando em conta que os animais são considerados propriedades e geralmente protegemos os seus interesses na medida em que isso nos interessa economicamente, é uma ilusão pensar que o tratamento ‘humanitário’ é um padrão alcançável em todos os casos. Então, se pesarmos os interesses dos animais com seriedade, realmente não poderemos evitar de pensar sobre a moralidade do uso para além das considerações de tratamento.”