Todos os verões, a trágica situação de repete: ao saírem de férias, milhares de franceses abandonam seus animais. Para lidar com a superlotação de abrigos, ONGs e associações reforçam campanhas para conscientizar a população contra os maus-tratos aos animais.
“Entre sacrificar suas férias e abandonar seu animal doméstico, as pessoas não vão refletir, não querem nem mesmo pensar em uma solução para essa questão”, afirma Jacques-Charles Fombonne, presidente da Sociedade Protetora dos Animais (SPA) da França.
A cada ano cerca de 100 mil animais são levados a abrigos na França, 60% dos casos ocorrem durante os meses de verão. O país ocupa a primeira posição na Europa no abandono de animais domésticos.
Se neste verão o recorde de abandono, registrado no ano anterior, não deve ser batido, os centros de acolhimento de animais registram superlotação desde junho. Nos albergues da SPA, há mais de 8.800 animais esperando pela adoção, um número inédito após um aumento de 7% em relação a 2021.
“Começamos o verão com os refúgios quase lotados. Isso é um verdadeiro problema, porque somos obrigados a manter esses animais em condições que não são ideais. Eles ficam em locais ainda mais apertados do que o normal”, ressalta Fombonne.
Menos adoções
Para lidar com a situação, o presidente da SPA afirma que a associação é obrigada a recrutar mais “famílias de acolhimento”, que vão cuidar dos animais por um curto período até que novas vagas se liberem nos refúgios. Segundo Fombonne, a situação é registrada após períodos particulares vividos na França.
“Embora a quantidade de animais abandonados não tenha aumentado entre esse ano e 2021, muito menos animais estão sendo adotados. Isso se deve ao desânimo com a vida em geral na França, a má situação econômica, o crescimento da inflação, a guerra na Ucrânia, a pandemia de Covid-19 que ainda não terminou. Diante de tudo isso, as pessoas não querem se engajar nessa causa e enfrentar uma obrigação a mais”, explica.
A presidente da Fundação 300 Milhões de Amigos, Reha Hutin, lembra que muitas pessoas adotaram animais durante a pandemia de Covid-19 para que servissem de companhia durante os longos meses de lockdown. Mas, com o fim do estado de emergência sanitária e das restrições para viagens, milhares de animais estão sendo levados de volta para os abrigos.
“Há poucos dias tivemos o nosso primeiro caso de cachorro abandonado deste mês. O tutor chegou ao abrigo com um vídeo do cão brincando com suas crianças no jardim de casa para mostrar como ele era dócil. Nos disse: ‘estamos saindo de férias e não podemos mais ficar com ele’. Esse homem sequer imagina o estado do animal após o abandono, apesar de todos os nossos esforços para que ele ficasse bem. É algo de cortar o coração”, conta Reha Hutin.
Segundo ela, casos como esses se repetem aos milhares a cada verão “devido à irresponsabilidade das pessoas”. “Tudo isso é a consequência da visão que alguns têm dos animais como se fossem mercadorias. Algumas pessoas tratam eles como objetos, os adquirem em um ato de consumo compulsivo, no calor do momento. Eles não sabem medir a responsabilidade que é cuidar de um animal, um ser vivo, sensível e que não pode ser descartado como um produto”, sublinha.
Por isso a fundação 300 Milhões de Amigos investe em campanhas anuais e novas estratégias para sensibilização do público. Em 2019, a instituição obteve a autorização do mítico grupo de rock britânico Queen para a utilização da música “We Are The Champions” em um vídeo que viralizou na França. As letras desta célebre canção são entoadas por personagens que abandonam animais para lembrar que o país é o que mais descarta animais na Europa.
Como resposta à justificativa de que os tutores não podem cuidar dos animais durante o verão, a 300 Milhões de Amigos criou uma plataforma especial para que os franceses encontrem soluções antecipadamente, evitando o abandono de seus animais. “Ali detalhamos todos os lugares que aceitam animais, de centros de acolhimento a praias, muitas dicas econselhos. É preciso que as pessoas tenham consciência de que quando elas têm um animal e saem de férias, elas podem levá-lo junto”, ressalta Reha Hutin.
Campanhas de sensibilização
A Sociedade Protetora dos Animais também tenta encontrar novas estratégias de sensibilização. A campanha deste ano, por exemplo, foca menos na crítica ao abandono para ressaltar nos motivos pelos quais as pessoas adotam animais. Outras iniciativas que vêm contribuindo à luta contra os maus-tratos aos animais são projetos nas escolas, conta Jacques-Charles Fombonne.
“Visitamos maternais e jardins de infância para explicar aos meninos e meninas, ainda bem pequeninhos, o que é um animal, os cuidados que devemos ter com os animais, que eles não são objetos. Eu acredito que essa iniciativa é muito eficaz. Afinal, não apenas lembramos muito do que aprendemos na nossa infância, como nos construímos em torno dessas ideias”, defende o presidente da SPA.
De fato, todo o esforço das organizações parece render frutos. Reha Hutin lembra que, há 30 anos, 400 mil animais eram abandonados por ano na França. Embora esse número ainda seja alto, 100 mil anualmente, as novas gerações parecem estar mais sensíveis à causa animal.
A legislação francesa também contribuiu para essa mudança de comportamento. Desde 2012, todos os animais precisam ser identificados com chips. Em 2021, uma nova lei passou a prever uma multa de € 45 mil e três anos de prisão a quem abandona animais em espaços públicos. No entanto, a entrega deles a abrigos ou a centros de acolhimento não é penalizada.
Beagles da Borgonha
Enquanto a questão do abandono de animais vem a tona a cada período de férias, outras iniciativas em prol do bem-estar animal são organizadas. É o caso da associação Beagles of Burgundy, fundada por Virginia Mouseler há dois anos e meio.
Grande fã desta raça de cães que vem adotando há mais de 30 anos, Virginia Mouseler contou à RFI que se surpreendeu ao ler uma matéria sobre a utilização de beagles para testes de laboratório e o destino de muitos deles, eutanasiados após os experimentos. Sensibilizada pela descoberta, ela resolveu criar um local para acolher esses animais e prepará-los para a adoção.
Desta forma, nasceu a Beagles of Burgundy e o espaço de acolhimento é sediado na Borgonha, centro-leste da França. Ao todo, o local abriga beagles que após serem utilizados para experimentos em laboratórios passam por uma fase de cuidados e adaptação antes de serem disponibilizados para suas futuras famílias.
Para salvar os cães da eutanásia, Virginia Mouseler realiza um longo e complexo processo. Primeiramente, ela contata por conta própria laboratórios e escolas veterinárias pela Europa. Ao receber uma resposta positiva, ela se encarrega de ir buscar pessoalmente os beagles nos locais, uma etapa que descreve como “um momento de enorme emoção”.
“Muitas vezes são 10, 15 horas de carro, mas para mim isso faz parte da aventura. Eu adoro fazer isso, ver os beagles desde a saída desses locais, levá-los comigo, fazer a viagem de volta. E depois começar todo o trabalho em casa antes de disponibilizá-los para adoção. Pensar que isso vai dar uma nova vida a esses pequenos seres me dá uma felicidade imensa”, conta.
Apesar da satisfação que essa missão traz à sua vida, Virginia Mouseler não esconde o grande desafio de encontrar novos lares aos cães que recolhe. “É um trabalho enorme encontrar uma boa família que tenha a paciência para cuidar desses cachorros que têm comportamento de filhotes, embora sejam adultos. A maioria deles não está acostumado com a vida junto a humanos, então eles têm muito medo, se assustam com barulhos dentro de casa ou na rua, com carros, de tudo que não fazia parte do cotidiano deles. Por isso é preciso ter muita calma e ensiná-los a ser cachorros normais, porque eles não sabem o que é isso. Até saírem desses laboratórios, eles só conheceram a vida no confinamento”, explica.
Para a adoção dos beagles da Borgonha, Virginia Mouseler realiza todo um processo de seleção, exigindo carta de motivação, entrevistas com os candidatos, visita de suas casas e uma minuciosa avaliação do espaço e tempo que os candidatos têm a oferecer aos cachorros. Após passarem por essa primeira etapa, eles são convidados a ir até a Borgonha passar um dia com o cão que pretendem adotar. “O objetivo é realmente conhecer os interessados e garantir que eles estão aptos a cuidar dos beagles”, afirma.
Virginia Mouseler acolhe cerca de dez beagles por vez no espaço dedicado ao acolhimento deles na Borgonha. Em dois anos e meio de existência da associação, ela pôde encontrar lares para 170 cães.
Fonte: G1