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Filósofo Peter Singer fala sobre nossos deveres perante os animais não humanos

28 de novembro de 2013
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Foto: DivulgaçãoCom a publicação de Libertação Animal (1975), do filósofo Peter Singer, teve início um amplo debate, tanto na filosofia quanto nas sociedades em geral, sobre uma questão até então relegada a segundo plano: “quais os nossos deveres perante aos animais não humanos?”. De lá para cá, atitudes cuja moralidade até então era muito raramente questionada, mais notadamente o uso de animais não humanos para a alimentação e experimentos, passaram então a ser objeto de ampla discussão.

A argumentação de Singer parte da premissa de que aquilo que torna os humanos dignos de igual consideração não são capacidades tais como a posse da razão ou linguagem, mas a possibilidade de serem prejudicados devido à violação de seus interesses (mais notadamente, o interesse em não sofrer). Uma condição necessária e suficiente para um indivíduo ser capaz de ter interesses é que seja senciente (capaz de ter sensações como a dor e prazer, por exemplo). Singer defende que uma condição suficiente para aliviar um sofrimento é o próprio valor negativo do sofrimento. Reconhecemos esse ponto, por exemplo, no caso dos humanos que não são possuidores de razão ou linguagem.

Peter Singer esteve no Brasil em agosto de 2013, para ministrar várias palestras. Nesta entrevista, concedida com exclusividade ao colunista da ANDA, Luciano Cunha, ele explica que não há justificativa moral, portanto, para negar dar igual consideração a interesses similares quando aparecem em membros de outras espécies.

ANDA – Primeiramente gostaria de agradecê-lo por me proporcionar as minhas primeiras reflexões sobre o especismo, que vieram com a leitura de sua obra Libertação Animal. Esse conceito (especismo) possui um papel central nas suas obras no campo da ética animal. Se tivesse que explicar para alguém que nunca ouviu falar do conceito de especismo, como o definiria?

Peter Singer – A ideia é melhor entendida por analogia com conceitos mais familiares como racismo e sexismo. Assim como os racistas possuem uma atitude tendenciosa ou preconceito contra aqueles que não são membros de sua raça, e se recusam a dar igual consideração aos seus interesses, os especistas são preconceituosos contra membros de outras espécies – nesse caso, os animais não humanos – e se recusam a dar igual consideração aos seus interesses.

ANDA –  A maioria das pessoas que entende o conceito de especismo está de acordo que, por exemplo, as granjas industriais e usos de animais em outros setores são práticas especistas. No seu entender, existiriam outras manifestações de especismo ainda invisíveis para a maioria? Poderia citar algum exemplo?

Peter Singer – Eu não estou realmente certo do que você tem em mente aqui, já que você mencionou não apenas as granjas industriais, mas também o uso de animais em “outros setores”, que é um termo muito amplo. O exemplo mais proeminente de especismo, que é certamente ainda invisível para a maioria das pessoas, é o fato de que nós usamos os animais como comida, tratando-se como meras coisas para produzir carne, leite ou ovos para nós, e não como seres com interesses e com vidas próprias para viver.

ANDA –  Outro elemento bastante recorrente em sua obra, principalmente quando aborda a questão da eutanásia, é a crítica à relevância moral da distinção entre atos e omissões. Levando esse mesmo raciocínio para as questões éticas envolvendo animais não humanos, o senhor acredita que existiriam deveres positivos perante aos animais e não apenas o dever de se abster de prejudicá-los?

Peter Singer – Sim, nós temos deveres de socorrer os animais também. Se nós vemos um animal em perigo e nós podemos ajudar, nós deveríamos, por exemplo, libertá-lo de sua armadilha. Às vezes – por exemplo se encontramos um animal que está tão severamente ferido que não sobreviverá – isso significará que é correto matá-lo rapidamente com vistas a terminar com o seu sofrimento.

ANDA –  O senhor é um adepto do utilitarismo, e o distingue em dois níveis: crítico e intuitivo. Pelo que entendo, no primeiro se avalia as consequências de cada ato isolado (utilitarismo de ato) e, no segundo, as consequências gerais (utilitarismo de regras). Mesmo que, de um ponto de vista utilitarista no nível crítico, é possível existir justificativa para alguns raros casos de usos de animais, não haveriam maiores chances de existirem melhores consequências a longo prazo (devido a isso fomentar a consideração moral pelos seres sencientes) se adotássemos uma regra geral de abolir por completo (através de proibição legal, por exemplo) o uso de animais? Em outras palavras, existem razões utilitaristas para se defender o abolicionismo da exploração animal?

Peter Singer – Sim, existem, mas, como conseguiremos alcançar o fim da exploração animal? Não há nenhum sinal, em país algum, de que a maioria da população está pronta para apoiar tal resultado desejável. Logo, o melhor que nós podemos fazer é defender reformas mais limitadoras que reduzirão o sofrimento dos animais e também serão trampolins para a meta a longo prazo que você mencionou.

ANDA – A maior parte da discussão dentro da ética animal tem se centrado nos danos que os animais sofrem decorrentes das práticas de exploração. Contudo, um número crescente de autores como Yew Kwang Ng, Oscar Horta, Jeff McMahan e David Pearce, por exemplo, têm apontado para o fato de que, na natureza, devido aos próprios mecanismos dos processos naturais (e não, devido às práticas humanas), prevalece em alto grau o sofrimento nos seres sencientes. A maior parte dos animais nasce apenas para morrer de inanição e esse número é altíssimo, mesmo comparando com o número de animais a sofrer somando-se todos os usos decorrentes da exploração. Esses autores defendem que, para o ser senciente que está a sofrer, não faz diferença se o dano vem de práticas humanas ou dos mecanismos da natureza e que, então, temos razões para levar a sério esses danos. A preocupação desses autores não é tentar uma redução ao absurdo da proposta da libertação animal, como tentou por exemplo, Callicott. Ao invés, eles estão realmente preocupados com o dano sobre os seres sencientes que vivem na natureza. É com essa mesma preocupação que faço essa pergunta: não deveríamos prestar mais atenção nessa questão? Já há algumas maneiras de ajudar aos animais na natureza, como acontece quando alguns animais selvagens são resgatados em desastres naturais, ou são vacinados contra doenças como a raiva (mesmo se isso se faz por um interesse antropocêntrico). Poderia-se investigar para ajudar mais os animais na natureza. O que o senhor pensa?

Peter Singer – Estou aberto para investigar essa questão, mas não estou convencido da verdade da alegação pessimista de que as vidas dos animais silvestres contém uma preponderância de sofrimento. Essa alegação é, é claro, independente da questão sobre se nós deveríamos interferir na natureza para reduzir qualquer sofrimento que ocorra lá. Podem existir casos nos quais isso é uma opção viável e desejável, mas dados os problemas – tanto empíricos quanto normativos – que isso levanta, parece mais sensato tentar reduzir a imensa quantidade de sofrimento que os humanos infligem sobre os animais, especialmente sobre os 64 bilhões de animais terrestres e talvez os quase um trilhão de peixes e outros animais marinhos que matamos para comer a cada ano.

ANDA –  Recentemente o senhor publicou um artigo comentando sobre a invenção da carne in vitro. Gostaria de saber quais as suas esperanças, em termos de diminuição do consumo de animais, a carne in vitro representa. Acredita que as chances são grandes por si só, ou isso dependerá do nível de propagação da consideração pelos seres sencientes?

Peter Singer – Existem boas razões comerciais para produzir substitutos para a carne que são mais saudáveis e menos dispendiosos do que a carne, então eu não acredito que as chances de sucesso dependam da propagação da consideração pelos seres sencientes. Eu não estou certo sobre se o esforço para tornar a carne in vitro economicamente competitiva terá sucesso, mas eu penso que ao longo da próxima década veremos mais e melhores substitutos para a carne (e ovos). (Nós já temos excelentes substitutos para o leite, apesar de que em sua maioria ainda são um pouco mais caros do que o leite de vaca).

ANDA –  Por fim, eu gostaria de agradecê-lo por aceitar responder a essas questões e deixar o espaço para, se desejar, acrescentar algo que queira falar.

Peter Singer – Eu vou apenas acrescentar que durante a minha visita recente à Porto Alegre e São Paulo foi animador conhecer muitas pessoas maravilhosas que estão trabalhando pelos animais. O Brasil é agora um grande produtor de animais, e é muito importante que haja um movimento animalista forte que possa alcançar melhoras nas vidas dos animais que produz.

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