Aí vem um calor desgraçado como esse que estava aqui em Porto Alegre, de não se conseguir respirar direito, nem dormir, nem comer, e muito menos fazer história. Eu pensava nos cavalos sobre o asfalto, sedentos e carregando os engodos sociais/letargias legais nas costas. Pensava também nos porcos em chiqueiros de teto de zinco, logo acima de suas cabeças. Eu estava adoentado, deitado em um quarto com ar-condicionado e ventilador na cara, e ainda assim a opressão externa e interna era enorme. Armava-se um temporal de alívio, mas não chovia, frustrante como um coito interrompido.
Cavalos e porcos rolando no meu suor, dores pelo corpo, remorso pela minha condição de humano. Ok, dias antes eu estava no ativismo em pleno Fórum Social Mundial, mas eu não estava logo em seguida soltando o anzol preso nas pregas anais de milhões de animais, sob aquele calor de forno de padaria. Estava no ar-condicionado, e reclamando.
De quem é a culpa?
Dos pais. De todo aquele que quer ser pai, ser mãe, e aí compra sapatinhos de tricô, aquele livro Nomes Para Seu Bebê e faz encomenda à cegonha. A culpa pelo rolo todo, de A a Z, da pecuária enrabando a Amazônia até cada cachorro sarnento sendo chutado na rua, é dos ‘pais’. Pessoal que exige colocar neste mundo mais uma pessoa, como se 6 bilhões de tranqueiras já não bastassem. Mais gente que vai querer comer bifinho, que precisa de remédios, madeira, asfalto, escola, conexão de Internet ou um canto a mais na favela.
Em O Contrato Animal, Desmond Morris deixa claro o engodo demagógico de se pensar no desenvolvimento como ‘mais empregos, mais escolas, mais estradas, mais moradias’ – e não melhores empregos para quem já habita o planeta, melhores escolas e tal.
Obviamente que de algum lugar tem que vir a matéria-prima para fornecer comida, roupa, sapato, celular etc. para toda essa gente e para seus filhos, e haja floresta para se derrubar – adeus, animais silvestres – ou incremento na extração de produtos animais, em toda sua gama de lucro fedendo a sangue e confinamento.
Parece que só tendo um filho é que muita gente se sente parte do mundo, quase um ato patriótico de construção de população, como se isso realmente fosse necessário. Se o objetivo é criar uma outra pessoa, educar, dar meios para ser um adulto, que se tenha um mínimo de pena das crianças à espera de adoção, no lugar do egoísmo frouxo e ‘boa família’ que habita corações e mentes de casaizinhos socialmente ingênuos.
O maior ato de amor, nessa farsa chamada ‘a instituição da família’, seria trazer para dentro da própria casa uma pessoa que não saiu de um útero-forno de padaria após mistura de ingredientes próprios. Que diferença faz para o sentimento? Sinto cheiro de egoísmo assando na cozinha.
E claro que os animais, Morlocks de nosso tempo, estão ardendo em um inferno mais quente para que o mercado atenda essa demanda crescente de gente, gente, gente. Mais ovos de Páscoa, mais presunto no supermercado, mais cochonilhas torradas para as bolachinhas recheadas, mais gado trazido à vida – quanta bondade… – pelos pecuaristas, mais ovo saindo do cu das galinhas para que novos humanos aproveitem, a seu bel-prazer, os confortos e as delícias oriundas do abuso dos animais.
‘Mãe, quero um cachorro’, ‘cadê meu iogurte?’ e ‘ganhei uma bola de futebol da vovó’ são frases singelas e até musicais para os ouvidos de pais patriotas felizes, mas significam um alicate apertando cada vez mais forte a prega anal de um animal – mesmo que a criança use lancheira de porquinho, camiseta de bichinho ou assista aos longas de animação estrelados por animais.
Sim, já ouvi falar que ‘vocês veganos’ ‘são contra crianças’, ‘odeiam bebês’ e demais lendas preconceituosas, mas eu apenas parei para pensar, há muitos anos, e não deixei que essa escolha fosse determinada pela pressão social, pela mídia, pelas comadres fofoqueiras – ‘quando é que vêm os herdeiros?’ – nem pela tradição, esse tacape invisível e estúpido que paira por sobre a cabeça de todos os imbecis, empurrados para um emprego, um time de futebol, um candidato e, especialmente, a uma alimentação indiferente ao sofrimento, três vezes ao dia.
Se criticamos o passado, nos indignamos com a intolerância de nossos ancestrais, consideramos absurdo o patrulhamento de vidas, culturas e recursos em épocas remotas, é preciso parar para pensar, sem se apegar às bochechas rosadas dos álbuns de fotografia da família. Ter responsabilidade social e ambiental vai significar algum esforço, senhores e senhoras que escreveram ‘ética’ a lápis em seus crachás.