Por Sérgio Greif (da Redação)
Não se engane o leitor com a linha de defesa que proporei no presente texto. Vira e mexe recebemos notícias de que um ou outro matadouro em algum canto esquecido deste país emprega mão de obra infantil em sistema de escravidão. Crianças de 10 anos ou menos cumprem todas as etapas do processo de abate (recepção, manejo, atordoamento, degola, sangria, estripamento, esfola, evisceração, corte da carcaça). E fazem isso no chão do recinto, sem a utilização de equipamentos apropriados, sem aventais, botas, luvas e toda a paramentação apropriada.
Peço que o leitor não se engane porque o presente texto não tem a intenção de fazer uma crítica ao abate da forma como ele é feito hoje, para sugerir que as pessoas passem a consumir a carne apenas de abatedouros e frigoríficos conhecidos, que realizem o abate humanitário, que possuam boas práticas sanitárias e que só empreguem mão de obra adulta. Há vários textos meus que servem como crítica também a essas formas de abate (ver na ANDA o meus artigos Abate humanitário e Visita ao matadouro . A intenção desse texto é, tão somente, demonstrar para o leitor uma realidade que nem sempre está clara.
Sabe aquela propaganda que relaciona o consumo de drogas com o submundo do tráfico de armas e de drogas? Nela um rapaz de classe média adquire drogas de outro rapaz de classe média. Este, por sua vez, adquire essa droga de um traficante, que usa o dinheiro para comprar armas, que ele fornece para assaltantes, que baleiam um ente querido do primeiro rapaz de classe média. A intenção é mostrar que o consumo de drogas tem uma relação íntima com o tráfico de drogas, que por sua vez tem relação com o tráfico de armas, com o latrocínio e a bandidagem. Se formos mais fundo veremos que até a pirataria de filmes, a pornografia e a prostituição estão, de certa forma, relacionadas com essas mesmas atividades.
No que diz respeito ao consumo de carne a situação não é muito diferente. É verdade que a criação e o abate de animais não são atividades marginais, nem ilegais, e nem são considerada ilícitas. Mas, ainda assim, elas são constantemente envoltas em escândalos relacionados ao tratamento dado aos funcionários.
A notícia publicada em 8 de março de 2011 se refere a crianças trabalhando em um matadouro no Rio Grande do Norte a troco de sobras de animais abatidos. Li essa notícia com uma sensação de déjà vu. Não é uma notícia antiga? Pela data não, mas me recordo de haver assistido à notícia, anos atrás, de crianças trabalhando em matadouros a troco de gordura, tripas, entranhas e vísceras, que eram cuidadosamente raspadas do chão do estabelecimento após o abate. Fato recorrente.
Trabalho escravo e pecuária são temas interligados, isso desde a colonização do Brasil. Embora em nosso país a pecuária tenha sido praticada historicamente de maneira extensiva, fazendo uso de grande quantidade de terras, com pouca necessidade de mão de obra, produzindo para o mercado interno, com baixos rendimentos e pequena capacidade de acumulação, é fato que ela empregava grande quantidade de trabalhadores escravos.
Atualmente a pecuária brasileira é algo bastante diferente. O rebanho sofreu melhorias genéticas, há melhor controle sanitário para doenças infecciosas e os pastos são cultivados com as gramíneas de melhor rendimento. Ainda assim há coisas que permanecem inalteradas nessa atividade, que são sua relação com o trabalho escravo, com o desmatamento, com os latifúndios e, obviamente, com a exploração animal. A maior parte dessas consequências são inerentes à pecuária, não podendo dela ser desvinculadas.
Não podemos pensar a pecuária sem vinculá-la à produção de alimentos para os animais. Ainda que o boi não vá ao pasto, alimentação deve ser fornecida ao gado na forma de volumosos e grãos. Isso demanda terras cultivadas, que demandam a abertura de novos campos de cultivo, o que leva ao desmatamento. Na pecuária extensiva fazem-se necessárias grandes extensões de terra (latifúndios) para produzir relativamente pouco. Além disso, há o aspecto dos direitos animais, que são sumamente contrariados quando animais são criados para produzir bens, sejam quais bens forem. Estes são, portanto, inerentes à pecuária.
A escravidão humana não é inerente à pecuária, mas sua frequência nessa atividade é altíssima. No Brasil, a maior parte das denúncias realizadas no Ministério do Trabalho referem-se ao emprego de mão de obra escrava na pecuária. Ao contrário do gado, que produz melhor quando recebe ração melhor, água em abundância e cuidados veterinários, trabalhadores que trabalham com o manejo desse gado são negligenciados nos aspectos mais básicos de suas necessidades (alimentação, água, local adequado de moradia, condições sanitárias etc.). Essa mesma escravidão humana tem sido utilizada pelos europeus para levantar barreiras comerciais à carne brasileira sob a alegação de motivos humanitários.
Cabe aqui a ressalva, porém, de que essas denúncias não se restringem ao Brasil. A cadeia produtiva de carne tem relação com o subemprego também em outros países, como os EUA, onde imigrantes ilegais são forçados a trabalhar além do estipulado pelas leis trabalhistas, recebendo salários incompatíveis e sofrendo toda sorte de abusos.
Mas se a escravidão humana não é inerente à cadeia produtiva de carne (suponho que na Escandinávia não existam escravos), mesmo trabalhadores assalariados sofrem uma forma de abuso que é inerente à pecuária. A exposição ao sofrimento animal. Certamente uma pessoa que se sujeita a trabalhar tocando o gado com bastões de choque, que atira em sua fronte com uma pistola de ar, que suspende uma vaca ou uma galinha em um gancho e depois lhes corta o pescoço , abre sua barriga para extrair as tripas não está trabalhando em um ambiente saudável. Não é uma questão de paramentação, mas de impressão.
Uma pessoa que trabalhe nessa atividade dificilmente chega em casa e consegue ser amorosa com seus filhos, ou se vê capaz de cultivar relações normais. Com frequência essas pessoas acabam amenizando seu trabalho insalubre se afundando em vícios. Pessoas que se acostumam com o sangue jorrando do corpo de animais, ou que deixam de sentir compaixão com seus gritos de dor e desespero, frequentemente serão indiferentes ao sangue jorrando do corpo de seres humanos, serão indiferentes ao seu sofrimento.
Então quando crianças são expostas a essas formas de violência (e é exatamente isso o que se pratica em matadouros – violência), elas estão também, de certa forma, endurecendo seu coração para suas relações futuras. Podemos esperar que pessoas que lidam com a morte saibam respeitar a vida?
Entendemos que ninguém trabalhe nessas atividades por prazer, mas por necessidade. Portanto, ainda que se trate de trabalhadores assalariados, ainda há o fator da exploração humana embutida à pecuária e à cadeia produtiva da carne.