O tema de hoje não diz respeito somente às questões éticas envolvendo animais não humanos, mas toda e qualquer questão ética. Por isso, penso que ele seja de fundamental importância.
É comum que algumas pessoas, principalmente em debates, apontem como razão para a sua desconsideração pelos interesses e necessidades de outros indivíduos, o fato de serem adeptos do “egoísmo ético”. Vou defender aqui que tal posição é uma contradição, e tentar explicar por que penso que falar em “egoísmo ético” é como dizer “direita do lado esquerdo” ou “lado de cima que fica embaixo”.
“Egoísmo ético” é uma expressão que soa até elegante nos discursos. “Veja, sou adepto do egoísmo ético”. O termo não é muito claro e pode (talvez propositalmente) ser confundido com outra ideia. Então, antes de tudo é importante clarificar o que se entende por “egoísmo ético”. Em primeiro lugar, o que essa posição não é: o egoísmo ético não é a ideia de que as pessoas ajudam as outras porque se sentem felizes com isso. Essa teoria é conhecida como egoísmo psicológico, e será discutida aqui em outra ocasião. “Egoísmo ético”, ao contrário, não é uma teoria psicológica (descritiva), mas uma teoria normativa. Ela não descreve nada sobre como as pessoas são; mas como elas deveriam ser. Portanto, o egoísmo ético quer dizer exatamente que cada um de nós deveria ser egoísta e desconsiderar os interesses dos outros. Assim, por exemplo, o que os defensores do egoísmo ético estão dizendo é: “Sentiu vontade de estuprar alguém (ou qualquer outro dano que alguém possa querer causar em outros) e sabe que não existem muitas possibilidades de você ser descoberto? Vá em frente; o ato é correto!”. É importante lembrarmos que a adoção do “egoísmo ético” possui essas implicações, pois normalmente elas ficam ocultas por trás da aparência inofensiva do termo. Aliás, é justamente pelo termo “egoísmo ético” só ser utilizado nos meios acadêmicos que as pessoas em geral não apresentam grandes revoltas para com essa teoria. Na linguagem que usamos no dia-a-dia, o “egoísta ético” é exatamente aquele a quem as pessoas costumam chamar de “filho da p***”, ou seja, alguém que não leva em consideração os outros. A teoria do “egoísmo ético” defende que todos nós deveríamos ser assim. Vejamos então que argumentos normalmente são apresentados em defesa disso.
A prática do egoísmo deixa a todos numa situação melhor?
Um argumento geralmente apresentado em defesa do “egoísmo ético” é apontar para o fato de que indivíduos diferentes possuem preferências diferentes com relação ao seu próprio bem. Ao tentarmos fazer bem aos outros, diria um defensor do “egoísmo ético”, provavelmente vamos errar e fazer mais mal do que bem aos outros. Além disso, esse argumento afirma que, por exemplo, prestar ajuda é se intrometer na vida privada dos outros e também uma maneira de se sentir superior por pensar que tais pessoas não são competentes o bastante para cuidarem de si próprias1.
Esse argumento não parte de um pressuposto egoísta. Sua preocupação central é o bem dos outros. Contudo, aponta curiosamente que a melhor maneira de garantirmos o bem dos outros é buscarmos apenas os nossos próprios interesses. Concordando aqui com a premissa maior do argumento (de que a preocupação central deve ser o bem dos outros), tudo o que temos de fazer para refutar tal argumento é mostrar que a premissa menor (que diz que a melhor maneira de garantir o bem dos outros é buscarmos apenas os nossos próprios interesses) é falsa.
Não é difícil notar por que é falsa:
(1) Em primeiro lugar, não somos tão estúpidos assim com relação ao que pode fazer bem ou mal aos outros. Sabemos que não chamar a ambulância quando vemos alguém atropelado na rua é causar um mal a essa pessoa. E isso não se restringe apenas às nossas omissões. Decepar uma perna saudável de alguém é causar-lhe um mal. Se fôssemos assim tão ignorantes quanto ao bem dos outros como o argumento afirma, então nossa vida seria muito diferente. Teríamos dúvida se, ao conhecermos uma pessoa, deveríamos cumprimentá-la ou decepar sua cabeça. Ou seja, mesmo que seja verdade que existam casos difíceis de saber o que as pessoas preferem que se faça a elas, existem milhões de outros casos fáceis; e o argumento já estaria anulado, pelo menos nesses casos fáceis. Nos casos difíceis, ainda haveria a alternativa de perguntar aos indivíduos (pelo menos àqueles com os quais sabemos nos comunicar) o que preferem. Assim, existem inúmeros casos onde sabemos exatamente o que fará bem e o que fará mal aos outros, tanto por parte de nossas ações quanto omissões. Assim, se os proponentes do argumento estivessem realmente preocupados com o bem dos outros, lembrariam-se dos casos fáceis e de perguntar sobre as preferências de alguém, antes de concluir que a melhor saída é o egoísmo.
(2) O segundo erro com a premissa menor do argumento é justamente só levar em conta as possibilidades de danos causados por querer fomentar os interesses dos outros, mas não os danos causados por querer fomentar o próprio interesse. Ora, é fácil perceber que a maioria dos danos que causamos no mundo não acontece devido a pretendermos ajudar os outros e termos uma concepção errada do que eles preferem. A maioria dos danos acontece justamente porque, ao buscarmos nossos interesses, a tal busca entra em conflito com o bem dos outros. E isso é verdade tanto para ações quanto omissões: um egoísta pode querer obter prazer à custa do sofrimento dos outros, mas mesmo que não tenha esse interesse mórbido, pode querer não prestar ajuda (por exemplo, no caso de alguém estar morrendo de fome) justamente porque quer cuidar do seu interesse (aparentemente inofensivo) de gastar seu dinheiro com outra coisa. Em ambos os casos, o agente causa um dano (por ação ou omissão) porque resolve buscar o seu próprio interesse mais banal e não o interesse vital dos outros. Lembrando que a teoria do egoísmo ético diria que a pessoa não tem obrigação não só de não prestar ajuda, mas também de não deixar de torturar. O argumento em análise só leva em conta o mal que podemos fazer por querer fomentar os interesses dos outros, mas não o mal que podemos fazer justamente por fomentarmos os nossos próprios interesses. Isso aponta que existem enormes probabilidades de que a premissa “se fôssemos egoístas, todos estariam numa situação melhor”, seja falsa.
(3) O terceiro problema está com afirmar que ajudar alguém é se sentir superior por pensar que o outro é incompetente para lidar com seus próprios problemas. Na grande maioria dos casos, as pessoas sabem que, se não ajudarmos alguém, não vai acontecer que o outro vai aprender a lidar com o problema e sair dessa sozinho. Pelo contrário, na maioria dos casos (principalmente envolvendo animais não humanos), o resultado é o sofrimento extremo e a morte. Então, essa afirmação em defesa do egoísmo nada mais é do que dizer, de uma forma oculta, que os outros ficariam melhor se não os ajudássemos. Basta alguém imaginar-se soterrado em algum lugar e os bombeiros os resgatando. Será que esse alguém ficaria ressentido e diria “Veja! Vocês estão me chamando de incompetente e se sentindo superiores por terem salvo a minha vida!”? Ora, isso é absurdo. Além do mais, se, como o argumento propõe, apesar do resultado ser o egoísmo, a meta central é garantir o bem dos outros, então seus proponentes deveriam lutar por dar condições aos indivíduos vulneráveis de terem mais poder para não dependerem da ajuda de outros. Mas, isso não é feito pelos defensores do egoísmo. Eles apenas querem desconsiderar os interesses dos outros e pronto. Afirmar que isso, no fundo, acaba ajudando os outros, é pura desculpa – e uma desculpa amparada numa premissa falsa.
O argumento de que o egoísmo é a única maneira de valorizar o indivíduo
Ayn Rand, uma filósofa defensora do egoísmo (e também da ideia de que o capitalismo é moralmente superior), usou o seguinte argumento: “Se formos considerar os interesses dos outros, então seremos obrigados a sacrificar nossa própria vida em prol dos outros; uma teoria que não leva em conta o valor da vida dos agentes não está correta; logo, não devemos considerar os interesses dos outros e devemos ser egoístas”2.
Um problema grave com esse argumento é que ele supõe que só existem duas opções na ética: ou consideramos somente os interesses dos outros e desconsideramos totalmente os nossos; ou consideramos somente os nossos e desconsideramos totalmente os interesses dos outros. Mas, se levamos em conta a exigência ética de tratar casos semelhantes com igual consideração, chegaríamos à conclusão de que, por exemplo, se o interesse em viver tem valor, o tem tanto em nós quanto nos outros – em quem aparece o interesse não faz diferença. Assim, não é verdade que levar os interesses dos outros em consideração implica em desconsiderar os seus próprios interesses. Portanto, esse argumento falha. Levando em conta a exigência de tratar casos semelhantes de maneira semelhante, a decisão ética implica em encontrar o meio-termo mais plausível entre os dois extremos mencionados pelo argumento. Por exemplo, o Princípio da Igual Consideração de Interesses Semelhantes, proposto por Peter Singer3, parece lidar bem com essa situação, já que sugere que interesses mais básicos e vitais (seja lá em quais seres aparecerem) devem ter prioridade sobre interesses triviais (seja lá em quais seres aparecerem).
O argumento de que o egoísmo explica a moralidade do senso comum
Na moralidade do senso comum, certas regras são básicas: não prejudicar os outros; não mentir; manter promessas; ajudar os outros, entre outras. O filósofo Thomas Hobbes4 sugeriu que todas essas regras poderiam ser explicadas a partir de um único princípio: o “egoísmo ético”. O autor apontou que descumprir as regras mencionadas acima é ruim para o próprio agente (ficará com fama de mentiroso, os outros não hesitarão em prejudicá-lo, etc.), e que o princípio do egoísmo levaria inclusive à regra de ouro (não fazer aos outros o que não gostaria que fizessem consigo). Assim, os defensores do egoísmo concluem então que o mesmo é a única razão pela qual deveríamos considerar os interesses dos outros.
Dois problemas aparecem também nesse argumento. O primeiro é que não é verdade que sempre será desvantajoso para o agente descumprir aquelas regras. Na verdade, na maioria dos casos, desde que ele tenha cuidado para não ser descoberto, será muito vantajoso. O segundo problema é o seguinte: supondo, para efeito de argumentação, que fosse sempre vantajoso par ao agente respeitar os interesses dos outros. Será essa a única razão, ou ainda, razão mais básica do por que devemos considerar os interesses dos outros? Ora, a razão mais óbvia do por que não deveríamos causar dano aos outros (seja por ação seja por omissão) é o próprio malefício do dano enquanto tal. Se o agente tirará alguma vantagem em não causar mal ou prestar ajuda, isso é um efeito secundário e irrelevante.
O presente argumento pretendia mostrar que o egoísmo é a única razão pela qual deveríamos considerar os interesses dos outros, mas, como vimos, existem razões muito mais óbvias para isso. Portanto, tal argumento também falha.
O problema principal com o “egoísmo ético”
Agora que analisamos e refutamos os três argumentos mais comuns em defesa do egoísmo, passaremos a investigar o que há de errado com ele – para além do fato de que os argumentos em sua defesa não se sustentam. Em colunas anteriores , vimos que, como a ética é uma reflexão feita por um ser racional sobre como deve decidir. Então, se casos aparentemente similares serão tratados de maneira diferente, é sempre apropriado perguntar pela diferença relevante entre os casos que justifique o tratamento diferente. Segundo entendo, a teoria do “egoísmo ético” falha justamente nesse ponto, quando a questão é sobre como tratar interesses.
Supondo que seja perguntado a um egoísta sobre como devemos considerar o interesse em não sofrer. É preciso notar logo de cara que o egoísta não se poderia dar uma reposta geral; ele primeiro perguntaria sobre o interesse de quem (dele ou de outros?) em não sofrer estamos falando. Para além dessa inconsistência, ele terá de dar duas respostas: dará uma se pensar em como a teoria geral que propõe deve lidar com cada caso, mas dará outra se pensar seriamente num caso onde estiver envolvido. Quero mostrar aqui que ambas as respostas são inconsistentes, tanto isoladamente, quanto entre si.
Se o egoísta (vamos chamá-lo de “A”) pensar num caso acontecendo em particular, e se imaginar na situação, não conseguirá dar uma resposta geral. Ele dirá, se estiver seriamente pensando que desejaria que fosse feito na situação real, que o seu interesse em não sofrer deve ser considerado. E isso vale independentemente de quem toma a decisão: ele não deseja que outros agentes desconsiderem seu interesse em não sofrer, e ele mesmo não o desconsidera. Agora, já que se trata de um egoísta, ele deve dizer que o interesse em não sofrer, quando é o interesse de outros indivíduos, não deve ser considerado. E, também, isso vale quer seja ele tomando decisão, quer sejam outros indivíduos. Mas, nós podemos perguntar ao egoísta, por que um interesse semelhante (o interesse em não sofrer) será tratado com consideração tão diferente, apenas por mudar o indivíduo que possui tal interesse? Afinal de contas, não estamos falando do mesmo interesse? Em outras, palavras, o que há de tão especial nele próprio (o egoísta “A”) que o intitula a um status especial? Suas necessidades são maiores? Ele está numa situação pior do que todos os outros indivíduos? Normalmente, não. Mas, se for, isso vale para qualquer outro que se encontre na mesma situação, não apenas para ele.
O egoísta pode responder, alegando que não compreendemos o que ele propõe. Ele não está dizendo que ele (o egoísta “A”) é mais especial. Ele está dizendo que, enquanto teoria geral, o que propõe é que cada agente (A, B, C, D, etc.) considere apenas os seus próprios interesses. O egoísmo formulado em termos mais gerais (“que cada agente faça o que for melhor para si”) ainda tem uma implicação esquisita: se alguém é um egoísta, não vai querer que os outros sigam o que propõe (“que cada um faça o que for melhor para si”) quando seus próprios interesses estiverem nas mãos das decisões dos outros. O egoísta pode responder que não há problema com isso, pois o que propõe é exatamente que os outros desconsiderem os seus próprios interesses e “que vença o mais forte!”. É claro, os egoístas gostam de falar isso apenas quando estão seguros, sabendo que ninguém os ameaçará. Se a leitora ou leitor acha que a ética não faz sentido se servir para garantir a lei-do-mais-forte, já tem aqui um forte motivo para rejeitar o egoísmo enquanto teoria ética. Mas, independentemente dessa implicação, quero apontar um problema ainda mais grave, que mostra que o egoísmo, por ser incoerente e por apresentar uma característica irrelevante como base para diferença de tratamento, não pode ser ético de maneira alguma:
Sugerir o egoísmo geral (“que cada agente faça o que for melhor para si”) não resolve o problema anterior (o problema sobre o status especial), pois podemos ainda perguntar a cada um desses agentes, o que há de tão especial em alguém, só por que é ele que está tomando a decisão? Em resumo, por que invocar a característica de ser o agente (quem está tomando a decisão), se o que estamos discutindo é o interesse em não sofrer (um interesse que é independente da questão da agência)?
Ao ser acusado de incoerência, por tratar interesses semelhantes com consideração diferente (sem apresentar uma razão relevante que explique a consideração diferente), o egoísta pretende então apontar que sua proposta pode ser formulada em termos mais gerais (não, “que todos considerem apenas os interesses de A”, mas “que cada agente considere apenas os seus próprios interesses”). Isso torna sua posição justificável? Não. Ele apenas agora não está sendo incoerente sozinho; está pedindo que todos os outros agentes tratem interesses semelhantes com consideração diferente. Está dizendo que a mesma decisão é tanto correta quanto errada, dependendo de quem será afetado por ela (se é o próprio agente ou outros indivíduos). Quando é solicitada uma razão que explique a diferença, o que se aponta é que cada agente, por ser ele que está decidindo, deve procurar o melhor para si. Mas, como vimos, essa razão não é relevante, pois estamos tratando de interesses que não dependem de agência, para existirem.
Assim, isso não apenas explica o que há de errado com o egoísmo, explica também por que devemos levar em consideração os interesses dos outros. Devemos levar porque, se alguém reconhece que um interesse é digno de ser considerado quando aparece em si, ao mesmo tempo tem que reconhecer que decisão semelhante se aplica a qualquer interesse semelhante, em quem quer que apareça o interesse – pois não há como dizer que “sou eu que estou decidindo” ou “o interesse é meu” sejam características relevantes para o que se está discutindo (como tratar certos interesses enquanto tal). O egoísmo, longe de ser uma proposta ética plausível, é o maior impedimento para a realização prática de qualquer proposta ética minimamente plausível. Além disso, é também base para vários preconceitos que são igualmente barreiras a se colocar a ética na prática: especismo, racismo, sexismo, nacionalismo, entre outros. Todos esses preconceitos, derivados do egoísmo, dividem o mundo em “aqueles que se parecem comigo” e “os que não se parecem”, e a divisão dos grupos é feita sobre características totalmente irrelevantes (espécie, raça, gênero, país de origem) para o que a ética trata (consideração de interesses, questões de justiça, etc.). Portanto, todas essas coisas são o oposto do que a ética é.
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Notas
1. Uma análise desse argumento se encontra em RACHELS, James. Os Elementos da Filosofia da Moral; 4a ed. Trad. Roberto Cavallari Filho; revisão científica José Geraldo A. B. Pocker… (et al.). Barueri: Manole, 2006, pp. 80, 81.
2. Uma análise crítica desse argumento aparece em RACHELS, Ibid, pp. 81-83.
3. Cf. SINGER, Peter. Ética Prática. 3ª ed, Trad. Jefferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
4. Cf. RACHELS, Ibid, pp. 84, 85.