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GRANDE PASSO

Ciência está mais perto de abandonar testes em animais

Nova tecnologia que usa órgãos humanos em miniatura construídos em laboratório é um passo na direção de melhores tratamentos e o fim de uma prática controversa

18 de agosto de 2022
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Alex Blyth achava que sua empresa tinha uma estratégia genial para reinventar o tratamento do câncer. Ao examinar a imunidade dos poucos sortudos que não tinham histórico familiar da doença, a Lift Biosciences descobriu um tratamento potencial para destruir tumores em todos os outros. Então, a terapia celular teve um problema: não funcionou quando foi testada em camundongos.

A má notícia veio quando Blyth estava prestes a assinar uma rodada de captação de fundos de mais de 20 milhões de libras (R$ 124 milhões) para sua empresa de biotecnologia sediada em Cambridge, na Grã-Bretanha. Os investidores ficaram abalados com os dados negativos do estudo pré-clínico e, de repente, ele só conseguiu levantar 5 milhões de libras, com uma avaliação mais baixa.

Mas a cientista-chefe da Lift, Oxana Polyakova, recorreu a uma nova tecnologia que replica um tumor humano em miniatura em uma placa de laboratório: um tumoroide. Quando usada no tumoroide, a droga “destruiu totalmente” o câncer, diz Blyth, a ponto de o paciente estar em remissão completa.

Cientista durante fase de testes da vacina contra a Covid-19 em macacos no Centro Nacional de Pesquisas em Primatas da Tailândia, na Universidade Chulalongkorn, antes dos testes em humanos – Mladen Antonov – 23.mai.20/AFP

“Isso mostrou que tínhamos algo que realmente funcionava. Os investidores ficaram entusiasmados: eles tinham acabado de entrar na rodada mais baixa”, diz ele. “Eu não estava tão emocionado.”

Blyth se sentiu obrigado a confiar na maneira tradicional de testar uma droga em animais para convencer os reguladores a deixá-lo iniciar um teste em humanos da terapia inovadora. Mas os glóbulos brancos dos camundongos consumiram a terapia, então ela não teve a chance de funcionar, enquanto a terapia podia sinalizar para os glóbulos brancos humanos para não tocá-la. “O camundongo não reconhece essa linguagem humana”, diz ele.

Os experimentos com animais têm sido a única maneira permissível de testar se um medicamento é seguro e eficaz antes de fornecê-lo a pessoas na fase de testes clínicos. Mas sua confiabilidade irregular é demonstrada pela baixa taxa de produtividade da indústria: muitos medicamentos eficazes em camundongos não funcionam bem em humanos e vice-versa. No câncer, as estatísticas são especialmente duras: estudos mostraram que os tumoroides são cerca de 80% preditivos da eficácia de um medicamento, superando em muito a taxa média de precisão de 8% em modelos animais.

À medida que os cientistas aprendem melhor como a biologia humana funciona, eles começam a entender a falta de confiabilidade dos modelos animais. A busca por alternativas se acelerou porque terapias inovadoras, baseadas em genes e células humanas ou mesmo personalizadas para pacientes, podem não funcionar em animais.

Um rato em uma caixa de plástico no laboratório da Universidade de Zurique, na Suíça – Arnd Wiegmann – 7.fev.22/Reuters

Embora não existam números confiáveis para a maior parte do mundo sobre testes e experimentos em animais, as estimativas sugerem que o total global é de mais de 100 milhões, com poucas mudanças nos últimos anos, diz Kerry Postlethwaite, diretora de assuntos regulatórios do grupo de pressão Cruelty Free International.

Os países europeus publicam estatísticas detalhadas e, no Reino Unido, os pesquisadores realizaram 3,06 milhões de procedimentos em animais em 2021, um aumento de 6% em relação a 2020, embora bem abaixo do pico de 4,14 milhões alcançado em 2015.

Acadêmicos e empresas farmacêuticas esperam que a tecnologia baseada em células humanas os ajude a eliminar ratos e macacos de seus laboratórios.

MARCO CIENTÍFICO

O termo genérico para o novo campo é sistemas microfisiológicos (MPS na sigla em inglês), que inclui tumoroides, organoides e órgãos-em-chip.

Os organoides são cultivados a partir de células-tronco para criar tecido 3D em uma placa que se assemelha a órgãos humanos em miniatura; os organoides do coração batem como os reais, por exemplo. Órgãos-em-chip são blocos de plástico equipados de células-tronco e um circuito que simula a mecânica de um órgão.

“Precisamos nos afastar dos animais de maneira sistemática”, diz Salim Abdool Karim, principal especialista em doenças infecciosas da África do Sul. “Isso envolve os reguladores receberem dados que mostrem que os sistemas biológicos não animais nos darão informações compatíveis, se não melhores.”

Nathalie Brandenburg cofundou a startup suíça Sun Bioscience em 2016 para criar versões padrão de organoides, o que torna mais fácil confiar que os resultados sejam comparáveis e convencer cientistas e reguladores a usá-los. “Quando começamos, tínhamos que dizer às pessoas o que eram organoides”, diz ela, referindo-se ao estágio inicial de sua jornada de pesquisa.

“Precisamos nos afastar dos animais de maneira sistemática. Isso envolve os reguladores receberem dados que mostrem que os sistemas biológicos não animais nos darão informações compatíveis, se não melhores”.

Salim Abdool Karim

Principal especialista em doenças infecciosas da África do Sul

Nos últimos dois anos, e principalmente quando os cientistas saíram dos bloqueios da pandemia, quando muitos tiveram tempo de ler sobre essa tecnologia, a demanda de grandes empresas farmacêuticas pelos produtos da Sun disparou, diz ela.

As empresas estão cada vez mais interessadas em reduzir sua dependência de animais por razões éticas, diz Arron Tolley, executivo-chefe do Aptamer Group, que cria anticorpos artificiais para uso em diagnósticos e medicamentos.

“As pessoas estão se tornando mais responsáveis, do ponto de vista da governança corporativa, e procurando remover os testes em animais”, diz ele.

Usar animais maiores, como macacos, é particularmente problemático, acrescenta Tolley. “Quanto maiores e mais bonitos eles são, mais as pessoas têm consciência do impacto.”

Doenças raras são um terreno especialmente fértil para modelos baseados em tecidos humanos, diz James Hickman, cientista-chefe da Hesperos, empresa de órgãos-em-chip com sede na Flórida. “Existem 7 mil doenças raras, e apenas 400 estão sendo pesquisadas ativamente porque não há modelos animais”, diz Hickman. “Não estamos falando apenas de substituir animais ou reduzir os animais, esses sistemas preenchem um vazio onde não existem modelos animais.”

Sua empresa ajudou recentemente o grupo farmacêutico francês Sanofi a receber a aprovação da Agência de Alimentos e Drogas (FDA na sigla em inglês) dos EUA para um ensaio clínico para estender a aprovação de um medicamento existente a uma nova doença –uma condição autoimune rara, polineuropatia desmielinizante inflamatória crônica, ou PDIC– apenas com base em dados de órgão-em-chip. A PDIC causa fraqueza muscular que prejudica o caminhar e o funcionamento das mãos.

James Hickman, cientista-chefe da Hesperos, empresa de órgãos-em-chip com sede na Flórida (EUA) – Divulgação/Hesperos

A Hesperos fez um chip de tecido com dois tipos de células derivadas de células-tronco de pacientes, neurônios motores e células de Schwann, que representam as características funcionais da PDIC. Quando o medicamento de anticorpos da Sanofi foi aplicado ao chip, ele restaurou a função neuronal, permitindo que um ensaio clínico prosseguisse.

“Um marco importante foi alcançado”, diz Thomas Hartung, chefe do Centro de Alternativas para Testes em Animais da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. “O primeiro medicamento entrou em ensaios clínicos com base apenas em dados produzidos a partir de órgãos-em-chip.”

A indústria é atraída pelo potencial de cortar gastos desperdiçados em P&D. Mark Treherne, cientista pesquisador e executivo de biotecnologia, diz que dentro de cinco anos as tecnologias poderão ter um enorme impacto na produtividade, permitindo que a indústria teste muito mais drogas em potencial e “separe o joio do trigo”.

“Ao permitir testes biológicos reais muito mais cedo no processo de descoberta de medicamentos, poderemos chegar a uma posição em que, em vez de anular 90% da P&D, poderemos anular 50%, o que seria transformador para a lucratividade inicialmente e, posteriormente, o custo das terapias”, diz ele.

“SANTO GRAAL”

Stefan Platz, vice-presidente sênior de farmacologia clínica e ciências de segurança da AstraZeneca, diz que nos últimos quatro ou cinco anos a crescente capacidade dos cientistas de interpretar genomas humanos e dados profundos sobre áreas como proteínas levantou mais dúvidas sobre o quanto as pessoas se assemelham aos animais nos quais testamos.

“Agora entendemos com todas essas informações em humanos que muitas vezes o modelo animal não é farmacologicamente relevante”, diz ele, o que significa que ele não mostra que medicamentos vão funcionar nas pessoas.

A AstraZeneca está usando organoides simples, como agora um para medula óssea, e trabalhando em projetos de longo prazo para desenvolver organoides mais complexos. Estes serão usados para prever a segurança de uma droga no cérebro ou nos rins, ou para criar um modelo do sistema imunológico.

Mas os organoides não estão prontos para representar redes neurais complexas, diz Maria Leptin, bióloga que lidera o Conselho Europeu de Pesquisa. “Você não pode estudar a função do cérebro e suas interconexões, mesmo que possa cultivar organoides cerebrais”, diz ela. “Levará muito tempo até que questões que exigem interações ou percepção de órgãos possam ser estudadas dessa maneira.”

O grupo farmacêutico alemão Merck decidiu em 2020 eliminar gradualmente os testes em animais, embora não tenha estabelecido um prazo para a conclusão. Todas as equipes que desenvolvem novos medicamentos devem apresentar alternativas aos experimentos com animais sempre que possível, e a empresa já está fazendo uso limitado de organoides, tumoroides e órgãos em chips, além de tecidos animais e humanos, para testar o efeito das substâncias em cartilagem.

Para começar a modelar sistemas humanos mais extensos, a Merck está colaborando com a start-up israelense Quris, que experimenta uma tecnologia de IA preditiva chamada “pacientes em um chip”.

As empresas “estão simulando o paciente, não apenas os principais órgãos em um chip”, diz Danny Bar-Zohar, chefe global de P&D de saúde da Merck. Isto permite que avaliem “qual será o impacto dessa pequena molécula depois de ser metabolizada no fígado e de atravessar a barreira hematoencefálica e entrar no cérebro”.

O método também pode permitir que a Merck teste interações entre dezenas de drogas antes de administrar um novo composto a humanos. “Esse é realmente o Santo Graal”, diz ele.

Minicérebros criados em laboratório vistos em microscópio. Os organoides têm entre 3 e 5 mm – Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino

A farmacêutica suíça Roche também está investindo pesado em novas ferramentas para reduzir a dependência de testes em animais. Em longo prazo, a Roche espera criar um modelo da doença de Alzheimer e todos os principais tipos de células envolvidas na regulação imunológica do câncer.

Matthias Lutolf, diretor científico do Instituto de Bioengenharia Translacional da Roche, alerta que os animais permanecerão centrais por algum tempo. “Ainda estamos trabalhando muito para imitar a complexidade e a função em nível de órgão. Então você adiciona as outras camadas do organismo —vários órgãos que interagem como o eixo intestino-cérebro”, diz ele. “Este será o esforço de todo o campo em longo prazo.”

QUESTÃO DE SEGURANÇA

A razão mais importante para testar medicamentos em animais é garantir que sejam seguros —e serão necessários muitos dados para convencer os reguladores a usar a tecnologia humana.

“É importante perceber que levará mais tempo para termos segurança do que eficácia, mas estamos nesse caminho”, diz Hickman, da Hesperos. “O último teste a ser feito é a toxicidade sistêmica [que mede os efeitos tóxicos em todo o corpo]. Agora, o FDA exige um modelo animal pequeno e dois modelos animais grandes para segurança. O que estamos tentando fazer é substituir um dos modelos animais grandes por um desses sistemas.”

Mas o campo da toxicologia também está mudando. Quando Platz começou a trabalhar, no final da década de 1990, os toxicologistas faziam cálculos básicos sobre o ajuste do peso corporal, a exposição à droga e o rastreamento de alterações nos órgãos. Agora, as discussões estão focadas no nível de cada molécula, como ela se distribui no corpo e se ela pode se ligar a lugares onde não é desejada.

Isso cria mais dados para novos algoritmos que procuram razões pelas quais um medicamento pode não funcionar. Ao usar modelagem e inteligência artificial, a AstraZeneca reduziu drasticamente sua taxa de falhas no primeiro estágio de testes em humanos. Em 2011, 30% dos medicamentos falharam na fase 1 por motivos de segurança, mas nos últimos sete anos nenhum falhou.

A empresa Hesperos combina tecidos humanos para criar o que ficou conhecido como órgãos-em-chip, que faz parte dos sistemas microfisiológicos – Divulgação/Hesperos

Apenas alguns dos organoides mais avançados foram usados em testes de segurança —e depois em circunstâncias restritas. A AstraZeneca fez mais progressos na replicação da medula óssea no laboratório, validando-a com dados humanos e animais.

Por exemplo, quando os pesquisadores estavam testando um potencial novo medicamento contra o câncer em combinação com um tratamento existente para leucemia, eles queriam entender se a administração de ambos juntos causaria efeitos colaterais problemáticos. Testes em organoides da medula óssea mostraram que eles precisavam dar as drogas com uma semana de intervalo. Isso acelerou o processo em muitos meses –e permitiu o uso de menos animais.

Os reguladores estão aprendendo mais sobre como os organoides funcionam e como compará-los com suas alternativas animais. A FDA conseguiu usar seus próprios laboratórios para explorar as tecnologias internamente, com a ajuda dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, que trabalham há dez anos em chips de tecido.

O regulador dos EUA está tão comprometido com o avanço do campo que seus funcionários representaram cerca de um décimo dos participantes da primeira Cúpula Mundial sobre Sistemas Microfisiológicos, realizada no final de maio em Nova Orleans, segundo Hartung, um dos organizadores.

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