Com a repercussão do resgate dos beagles do Instituto Royal, a grande mídia, querendo reagrupar o seu rebanho de leitores, vem promovendo um falacioso terrorismo em defesa do uso de animais para testes e pesquisas.
“A vida dele vale tanto quanto a sua?”, perguntou uma conhecida revista.
“Ainda não dá para fazer ciência sem que eles sofram, mas cada vez mais isso é intolerável”, ponderou outra.
Ao mesmo tempo em que o debate é focado na “necessidade” desta prática, questões morais, quando são enfrentadas, o são de maneira rala e tendenciosa; o contra-ponto é sempre de proporções vergonhosas.
Nesta discussão, nos parece que um ponto muito importante a ser esclarecido é que testes e pesquisas em animais não são “necessários”; podem, no máximo, ser “úteis” em alguns poucos casos.
E não são necessários porque não há um “legítimo conflito de interesses”, de modo que dizer que “é o seu filho ou aquele beagle” é falacioso.
Ora, no caso dos testes e pesquisas, os animais foram trazidos ao mundo para serem explorados; nós os colocamos nessa situação. Como, então, considerar que há um “legítimo conflito de interesses”? A mídia questiona “seu filho ou o Beagle?” como se realmente houvesse algum dilema ético, mas na realidade não há dilema nenhum pois o resultado já está predeterminado: o animal sempre perderá. Nós criamos esse conflito.
Vejam que há uma grande diferença entre um conflito criado por nós mesmos e outro que se inicia por acaso, que é o exemplo do avião que cai no meio da floresta obrigando os seus passageiros a se alimentar de animais (ou humanos) para sobreviver. Este sim é um caso de “necessidade”, onde há um legítimo conflito de interesses.
Portanto, o pano de fundo desta discussão não é uma suposta “necessidade” de utilizar os animais para testes ou pesquisas. O pano de fundo é simplesmente o especismo, em franca violação ao princípio da igual consideração de interesses.
E o é pelo simples motivo de que ao mesmo tempo em que consideramos usar animais um “mal necessário”, não nos atrevemos a pensar o mesmo em relação a humanos.
Como bem ilustra Francione em sua recém-traduzida obra “Introdução aos Direitos Animais”, “suponha que, no nosso admirável mundo novo da engenharia genética, comecemos a produzir, em laboratório, seres humanos portadores de deficiência mental grave que depois criamos em ‘fazendas’ até que fiquem adultos, para usá-los como fonte de órgãos para transplante em humanos ‘normais”.
Não precisamos ser cientistas para saber que a probabilidade de sucesso dos diversos testes e pesquisas nestes seres humanos seria muito maior do que em animais de outras espécies, como ratos ou cachorros. E mesmo assim somos totalmente contrários a esta prática.
De fato, no dia em que for descoberta a existência de um instituto de pesquisas que reproduza humanos com grave retardo mental para testes e pesquisas científicas, a sociedade exigirá o imediato encerramento de suas atividades, e ninguém ousará dizer que o instituto deve permanecer aberto por ser “necessário”.
Da mesma forma, usar recém-nascidos órfãos, deficientes mentais, pessoas em estado vegetativo ou em coma irreversível (que a propósito têm muito menos consciência do que os animais usados), também causaria enorme repúdio à sociedade.
Portanto, por trás da grande falácia da mídia em geral, que a todo o custo tenta passar a ideia de “necessidade”, o único motivo pelo qual a sociedade admite testes em animais é o especismo:
Negamos aos animais os seus direitos mais fundamentais simplesmente por não pertencerem a nossa espécie.
Justamente por isso, temos que deixar claro que o que levamos em consideração para exigir direitos iguais para todas as pessoas, apesar de tantas diferenças, não é a capacidade intelectual e de raciocínio, nem o tom de pele, nem a origem, nem a genética, mas sim interesses muito básicos que todos compartilhamos.
Poder desfrutar da vida em liberdade, manter a integridade física e psicológica, e principalmente “não sofrer”, são interesses comuns a todos os indivíduos humanos e não humanos. Somos todos sencientes. Peter Singer, em sua obra “Libertação Animal”, pergunta qual seria a justificativa moral para tratar interesses iguais de modo distinto. E em seguida responde: interesses são interesses, não importa se o seu detentor é negro ou branco, homem ou mulher, humano ou não-humano.
Daí o dever ético de estender a nossa consideração moral aos outros animais: os interesses que levamos em conta para respeitar e proteger todos os humanos são compartilhados por eles também.
Por essa razão, a discussão sobre a eticidade dos testes e pesquisas em animais somente será frutífera se a base abolicionista for trabalhada. Restringir a discussão à existência ou não de métodos alternativos seria de certo modo o mesmo que discutir se um dia será possível criar e abater um animal sem dor, pois esse caminho sempre estará aberto a brechas e não defende de forma real os interesses dos animais.
Assim, se quisermos acelerar o fim da experimentação animal, antes disso precisaremos fazer um trabalho abolicionista de base, questionando o infundando e arbitrário antropocentrismo que nos foi transmitido desde nascença, conscientizando a sociedade que a “Libertação Humana” e a “Libertação Animal” devem caminhar juntas. O resultado virá da raiz, e não de um de seus galhos.
Finalmente, é válido dizer que sim, é possível construir uma sociedade e uma medicina que não explora e abusa de outros animais. A história tem nos mostrado incansáveis vezes que sempre encontramos um meio de resolver aquilo que em certo momento parecia impossível.
Se os laboratórios forem impedidos de testar e pesquisar como estão acostumados, os pesquisadores encontrarão outros meios, porque este sempre foi o pilar do meio científico: quebrar paradigmas e encontrar meios. Dizer que não há outro meio é negar a própria essência da pesquisa científica, pois a ciência não é tão engessada como proclamam alguns pesquisadores (e não podemos esquecer a dependência crônica por financiamentos, bolsas de estudo e nomes em publicações).
Inclusive, é nesse meio que entra a grande indústria farmacêutica, com seu lucro bilionário, intrinsecamente dependente das enfermidades humanas, capaz de qualquer tipo de manobra sórdida para manter o seu faturamento.