Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.
Bertolt Brecht
A cena do rio de lama de rejeito de mineração e toxicidade a avaliar, arrastando tudo que estava no seu caminho, causou profunda tristeza e lamento de todos nós. A terra literalmente vomitou aquilo que não lhe pertencia e escancarou nossa incompetência para o mundo. Enquanto assistia ao noticiário, me perguntava quanto daquela lama me pertencia e o que esse desastre humano, ambiental e animal nos diz de nosso modo de viver.
Um dos princípios-chave da ecologia são os processos cíclicos. Na natureza há produção de resíduos, entretanto o que é resíduo para um organismo é alimento para o outro. Logo não há “lixão” no mundo natural, muito menos barragem para conter rejeitos. Entre nós, ao contrário, os processos são lineares. Extraímos um bem natural, aproveitamos parte, descartamos em algum lugar o que não nos interessa. Por onde passamos, seja na praia ou em uma festa, deixamos um rastro de lixos que serão recolhidos, varridos e amontoados em algum lugar. Quanto mais consumimos mais acelerado é o processo de retirada de recursos naturais. Nesse sentido temos parte nesse rejeito.
O complexo do Paraopeba, onde estava a barragem da Mina do córrego do Feijão, era responsável por 7% da produção de minério de ferro, principal produto da Vale, que também produz minério de manganês, carvão, níquel, cobre, cobalto e ouro. Os minerais, em geral, são utilizados nas estruturas de indústrias, edifícios, aviões, cabo elétrico, celular, carro, geladeira etc. Ou seja, o conforto que demandamos e do qual não abrimos mão exige a existência de mineradoras, e, consequentemente, a produção de rejeitos. Queremos computadores e equipamentos eletrônicos de “última geração”, mesmo sabendo que ao sair da loja já estará ultrapassado? Sim! Então, onde fica a “barragem” para tanto resíduo eletrônico?
Segundo dados da United Nations Evnironmente Programme (Unep), das Nações Unidas, até 90% desse lixo são despejados de qualquer jeito no continente africano sem nenhum critério ou respeito pelas pessoas ou pela natureza, pois custa mais barato que reciclar devidamente no mundo industrializado de onde se originam. Nesse sentido, temos parte nesse rejeito.
Em nossas casas entram, junto com as compras as sacolas plásticas, embalagens inúteis, objetos mil, latas, vidros etc. Grande parte não tem relação alguma com aquilo que, de fato, iremos consumir ou mesmo precisar. O que é possível fazer? Recusar, reaproveitar, reduzir o consumo, buscar produtos a granel, fazer compostagem, participar da coleta seletiva dando, no mínimo, a destinação correta para todo o resíduo gerado. Pode-se também não fazer nada e deixar que tudo vá para o aterro “sanitário” (onde houver) e lá deixar que despejem os rejeitos. Contudo, o aterro não é eterno nem tão sanitário. Tem vida útil curta, em torno de dez anos ou mais anos, conforme a tecnologia, o volume e a localização, e soluciona apenas em parte os problemas causados pelos excessos que produzimos. Nesse sentido temos parte nesse rejeito.
Precisamos nos alimentar, entretanto um terço da produção mundial de alimentos vai para o lixo em algum momento do processo de colheita até chegar à mesa. Isso equivale a 1,3 bilhão de toneladas por ano, o suficiente para alimentar todo o continente africano, segundo relatório das Nações Unidas (2011). Comprar aquilo que não irá consumir e que irá estragar antes de ir para o lixo me faz lembrar que temos parte nesse rejeito. Se a carne faz parte da minha alimentação, é preciso considerar que a produção de um quilo consome em torno de 16 mil litros de água, segundo a Water Footprint. Esse bife foi, um dia, um boi, mamífero de proximamente 520 quilos que comeu todos os dias. Ocupou espaço e, para isso, foi preciso desmatar para abrir pasto ou plantar soja para produzir ração. Quando vivo, arrotou gás metano, produziu, segundo o Departamento de Engenharia Agrícola da Universidade Federal de Viçosa, 30 quilos de fezes e urina por dia (21 kg de fezes e 9kg de urina) e viveu por volta de 18 meses. Se o rebanho bovino brasileiro está, segundo o Censo Agropecuário 2017 – IBGE, na casa de 214,9 milhões de cabeças, isso significa que são lançadas, diariamente, 6.447 bilhões de fezes em algum lugar do Brasil, no pasto ou na área de confinamento. Se ajuntássemos todo esse volume em um só lugar, precisaríamos de 537,25 represas/dia, como aquela que se rompeu em Brumadinho, somente para conter esse rejeito. Nesse sentido, é da nossa alçada, naquilo que servimos o nosso prato todos os dias, não fazer parte desse rejeito.
A tragédia de Brumadinho chega em um momento crítico para o meio ambiente quando, lamentavelmente, ouvimos ameaças de ampliar o desmatamento para monoculturas até na Amazônia; do Brasil sair do Acordo de Paris; de aprofundar a submissão da política ambiental às políticas da Agricultura; da indicação de nomes da bancada do Agronegócio para setores estratégicos em relação à preservação do meio ambiente; da abertura das reservas naturais e indígenas em favor da agricultura e da mineração; críticas às normas ambientais consideradas rigorosas demais e o fim das multas ao setor agrícola. A morte dos rios já denúncia este caminho suicida. A sensação beira ao desespero como ao ver um carro desgovernado na contramão da avenida. Em nome de todos e de tudo aquilo que deixou de existir em Brumadinho, pessoas, animais, árvores, rio e histórias, possamos despertar para ouvir os gemidos da natureza e nos colocarmos com urgência em sua defesa.