A matemática, como disciplina escolar, há muito tempo vem sendo tratada como politicamente neutra, onde só se trabalha fórmulas e exercícios de fixação. Outro dia, em uma reunião na escola onde faço iniciação à docência, a coordenadora pedagógica, após ter falado sobre o projeto interdisciplinar, disse para os professores de matemática tentarem encaixar nas suas aulas, uma coisa simples: trabalhar história em quadrinhos. E frisou que sabe que é difícil para os professores da matéria trabalhar um tema conjuntamente com as outras disciplinas. Daí vem à dúvida: se é difícil para os professores de matemática trabalhar história em quadrinhos, como trabalhar direitos animais?
Na segunda metade do século XX o professor Dr. Ubiratan D’Ambrosio criou um programa de pesquisa, em oposição à visão tradicionalista da Matemática, chamado Etnomatemática que vai além de uma “matemática étnica”, para ele: “[…] etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais”(D’AMBROSIO, 1993, p. 5). A partir do momento que o autor admitiu que a Matemática, como ciência, não é neutra, e serve a interesses políticos, por estar intimamente ligada com o avanço científico e tecnológico de um país, a matemática como disciplina escolar perde completamente sua falsa neutralidade. A capacidade matemática do homem tem servido como uma das principais justificativas para a “superioridade” sobre os outros animais. “A matemática é o auge da racionalidade humana e da dominação da natureza”, assim pensa o especista. Esse pensamento fica bem claro no começo da matéria especial da revista Veja, de agosto desse ano, sobre o brasileiro premiado com a Medalha Fields: “A matemática é a linguagem que a natureza usa para expressar seus segredos aos seres humanos e, assim, se deixar dominar por nosso intelecto. Embora alguns símios demonstrem habilidades básicas com números, reconhecendo conceitos como muito e pouco, o pensamento matemático é tão e somente humano quanto a linguagem […]”. Como o especismo faz o ser humano ser tão prepotente, demora anos e anos para entender um processo natural, para modelar e transformar em linguagem matemática e acredita que por causa disso somos especiais e que conseguimos dominar a natureza. Em oposição a essa ideia da dominação da natureza através da matemática, na palestra da cientista Margaret Wertheim intitulada “The Beautiful math of coral”, ela critica o fato dos matemáticos demorarem dezenove séculos para admitirem que formas geométricas não-euclidianas, como as da alface e dos corais, existem.
Percebe-se então que a matemática está intimamente ligada com o abuso que o ser humano comete sobre as outras espécies animais e os ecossistemas naturais, logo cabe ao educador matemático vegano abolicionista, fazer o contraponto e deixar o estado cômodo de dar uma aula de matemática resumida a passar definições e resolver exercícios do livro didático, um exemplo disso seria abordar um Pitágoras apresentado no texto inaugural dessa coluna. Além disso, esse tipo de metodologia tradicional de ensino de matemática na educação básica já vem sendo questionada há muito tempo e as avaliações nacionais (como: o Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) e Sistema Mineiro de Avaliação da Educação Pública (SIMAVE), entre outros) e as internacionais (como: O Programme for International Student Assessment – Pisa) vêm mostrando que nossos jovens não sabem nem o básico do que lhes foi ensinado ao concluir o ensino médio.
A matemática não é uma disciplina desvinculada de um contexto, não é neutra e como disse Paulo Freire: “É impossível, na verdade, a neutralidade da educação. E é impossível, não porque professoras e professores ‘baderneiros’ e ‘subversivos’ o determinem. A educação não vira política por causa da decisão desde ou daquele educador. Ela é política.” (FREIRE, 1996, p.110).
Primeiro veio o mundo, depois o homem inventou a matemática para entender o que acontece nele. O educador matemático vegano precisa mostrar ao seu aluno que sua disciplina não é o centro do universo, sendo assim os seres humanos não são o centro do universo e que devemos respeitar os animais não-humanos e os ecossistemas naturais, abandonando essa visão instrumentalista da natureza. A Etnomatemática é uma abertura para trabalhar a temática, e questionar essa visão. No seu livro Transdisciplinaridade, D’Ambrosio diz que precisamos buscar uma nova ética, uma que respeite a diversidade, mas essa nova ética que ele propõe que apenas pensa em “respeitar” para não causar um dano às novas gerações humanas já foi superada. Superada pelo mais polêmico recorte bioético da ética prática contemporânea chamado Ética Animal, pois só através dele é que expandimos nosso círculo moral e respeitamos o não-humano pelo seu valor inerente e vulnerabilidade.
Referência bibliográfica
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Arte ou técnica de explicar e conhecer. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1993.
_____________________. Transdisciplinaridade. São Paulo: Palas Athenas, 1997.
DENIS, Leon. Contraponto – parte II – a missão. Disponível em: <https://www.anda.jor.br/02/12/2011/contraponto-%E2%80%93-parte-ii-%E2%80%93-a-missao>. Acessado em: 12/10/2014.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996
WEINBERG, Monica. Um brasileiro no topo do mundo. Veja, São Paulo, ano 47, n. 34, 20 de agosto de 2014, p. 98-104.