Há algumas décadas, ativistas do movimento animalista têm chamado a atenção das pessoas para o fato de que o especismo está associado também a outras formas de discriminação: sexismo, racismo, heterossexismo e assim por diante. Essas ativistas também são feministas, ou seja, são ecofeministas. Ainda que haja uma pluralidade de propostas ecofeministas, podemos afirmar que, em comum, há o comprometimento com a abolição de todas as formas de discriminação, na medida em que todos os “ismos” têm a mesma matriz moral e cognitiva. Logo, ao se filiar a uma proposta ecofeminista, uma das consequências é o comprometimento com a abolição de todos esses “ismos”.
Como conciliamos uma agenda de defesa de todos os direitos? Temos o desafio de fazer isso na teoria e na prática. Precisamos de um referencial teórico que nos mostre o limite moral das práticas que ocorrem em nossa sociedade, que tenham argumentos coerentes, consistentes e capazes de convencer as pessoas e fazê-las tomar a decisão de agir moralmente. Por outro lado, precisamos também colocar todos esses argumentos em prática, sem que a defesa de um direito se sobreponha ao outro.
Além desse desafio teórico, de tanto analisar quanto propor teorias, precisamos colocá-las em prática. Nesse movimento, corremos o enorme risco de termos nossas incoerências apontadas. Afinal, como ousamos ser abolicionistas em um sistema especista? Em uma sociedade estruturada a partir dos sistemas de dominação, é difícil não ser, em alguma medida, beneficiadas por ele.
Na prática, muitas vezes precisamos também escolher quais causas serão nossa prioridade. Contudo, é importante lembrar que essa escolha é pessoal e reflete nossos interesses e o que nós julgamos que merece nosso tempo de ativismo. Isso não significa que uma causa seja mais importante do que outra. Se adotássemos o viés utilitarista, poderíamos afirmar que, por dia, morrem mais animais do que humanos e, portanto, eles merecem mais nossa atenção. Entretanto, esse argumento perde de vista o indivíduo. O que poderia nos fazer acreditar que a violência contra animais é mais urgente do que a violência contra a mulher, por exemplo? Do ponto de vista da expressão, poderíamos considerar que os animais não podem empreender sozinhos sua própria libertação, mas as mulheres em situação de violência também não conseguem exercer plenamente sua autonomia, sendo justamente essa uma das razões pelas quais muitas não conseguem sair do círculo de violência.
Nesse sentido, a filosofia ecofeminista nos ajuda a compreender que não deve haver hierarquia entre humanos e outros que não humanos. Humanos, animais e natureza não podem estar apartados. A experiência nos mostra que essa tricotomia só tem gerado violência e exploração. A defesa dos direitos humanos não pode manter a exploração da natureza e dos animais, sob pena de ser antropocêntrica e especista; o ambientalismo não pode perder de vista o indivíduo, humano ou não-humano, sob pena de ser fascista ou especista. Nessa lógica, o que seria da defesa dos animais que se restringe a eles?
É preciso lembrar que nem todas as pessoas consideram moralmente os animais, a natureza ou mesmo outros humanos, mesmo que elas conheçam os argumentos em favor de tal considerabilidade. É o que ocorre, por exemplo, quando uma pessoa “concorda” que é errado matar um animal para comê-lo (independentemente do argumento com o qual supostamente concorda), mas afirma que não quer deixar de comer carne, por mera deliberação. Na Antiguidade, Aristóteles já dizia que conhecer a ética não significa necessariamente ser ético; é preciso vivê-la.
Para desmantelar todos os “ismos” de dominação, precisamos de “ismos” de libertação, como o feminismo, o animalismo ou o ecofeminismo animalista, por exemplo. Isso significa não perder de vista que existem diferentes argumentos, sendo que todos podem (e devem) ser abolicionistas. Afinal, há muitos céticos que não aceitam quaisquer razões para considerar moralmente a natureza, os animais e/ou os humanos, que simplesmente não aceitam qualquer argumento racional.
Aliás, a ética sensível ao cuidado, da filósofa ecofeminista Karen J. Warren, propõe que outros valores, como o cuidado, também são importantes. Se uma pessoa adere ao veganismo pelo princípio da igual consideração de interesses semelhantes e outra pela compaixão pelos animais, temos permissão para dizer que uma ou outra não é vegana pelo motivo certo? A filosofia ecofeminista critica os dualismos cartesianos que mantêm a lógica da dominação. Se queremos superar as dicotomias (homem/mulher, branco/negro, cultura/natureza, humano/não-humano), também precisamos nos afastar dos argumentos que de alguma forma perpetuam essas divisões.
1- Sônia T. Felipe explica que a tricotomia moral se refere a “três modelos éticos aparentemente irreconciliáveis: um para a defesa dos direitos humanos, um para a defesa do bem-estar animal, e, um terceiro, para a preservação ambiental”. FELIPE, Sônia T. Por uma questão de justiça ambiental: Perspectivas críticas à teoria de John Rawls. Ethic@. v. 5, n. 3, jul. 2006, p. 5-31.