EnglishEspañolPortuguês

Do espírito à letra da lei, para além do xenoespecismo

3 de abril de 2015
14 min. de leitura
A-
A+

1[Nota da autora: há exatamente um ano ofereci um longo texto sobre Ovis Aries (ovelhas) e seu calvário. Para o feriado de hoje, ofereço à leitura um longuíssimo texto, para ser lido parágrafo por parágrafo, sobre um dos mais polemizados assuntos em pauta nas casas legisladoras do país. É para ser lido com calma, controlando a ira, pois o assunto é um rolo compressor de arame farpado e ninguém sai dele sem arranhões. Ciente disso, escrevi-o, mais uma vez, pelos animais].
Propor um texto de lei para assegurar direitos fundamentais aos animais não humanos é tarefa tão ou ainda mais complexa quanto a de redigir uma lei para garantir novos, ou redesenhar antigos direitos humanos. Por um lado, o texto precisa ser claro para que os interesses a serem assegurados possam ser aceitos e respeitados. Por outro lado, o espírito desse texto deve expressar o direito do sujeito de modo universal, geral, imparcial e final.
Um texto de lei que nasce violando qualquer dos quesitos acima, dificilmente obterá o respeito devido. Ao contrário, trará em seu bojo o convite à violação, ao descaso e à desobediência. Ele ensejará o sentimento de que essa lei é “apenas para inglês ver”.
É o que acontece com, praticamente com todas, as leis animalistas aprovadas em nosso país até hoje. Por lei animalista entenda-se a que se propõe a garantir algum benefício para os animais não humanos, sejam eles da fauna não manejada ou da manejada.
O primeiro obstáculo à redação de uma lei animalista genuína é os legisladores pouco conhecerem da realidade animal, além do manejo. O segundo é que o conhecimento dessa realidade está obnubilado pelas convicções religiosas tradicionais acerca do lugar que qualquer animal ocupa no âmbito moral, jurídico e político.
Nossas crenças sobre o valor da vida dos animais estão dominadas por concepções religiosas milenares. Nelas, os animais são meros objetos de propriedade (de pessoas físicas e jurídicas). Na condição de objetos, os animais para os quais se legisla, não são tidos como reais sujeitos de direitos. Pelo contrário, estão sujeitados totalmente aos direitos de seus proprietários. As leis visam, portanto, regulamentar as liberdades desses, não as daqueles.
É com esse peso da tradição moral que objetifica os animais e desqualifica-os como não pessoas que as leis chamadas de proteção animal foram feitas em nosso país. Então já se pode ver o rolo de arame farpado que é esse emaranhado de leis pretensamente animalistas. Pretensamente, porque parece que vieram para defender direitos animais, mas, de fato, foram aprovadas para reforçar a defesa do direito de produzir, confinar e matar todo ano algo da ordem de seis bilhões de indivíduos, somente no Brasil, chegando a 70 bilhões ao redor do mundo.
Quando tais leis restringem certas liberdades humanas em relação a animais ditos silvestres, elas mantêm o espírito da propriedade do Estado brasileiro sobre todos os animais que não possuem um “dono” privado.
Em meio a tantas tsunamis e marolas, formadas por interesses que vão do afetivo (animais eleitos para estima e companhia) ao mais puro lucrativo (animais criados para extração de leites, lãs, ovos, pele, couro, carnes, serviços, diversão etc.), temos ainda os de ordem religiosa.
O problema é que, de fato, não são os direitos genuínos dos animais que as leis procuram assegurar. Elas apenas regulamentam o direito dos humanos de possuírem e de destruírem “seus objetos de propriedade” animalizados.
Discute-se agora, em 2015, um Projeto de Lei na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, pelo qual o Parágrafo Único do 2º Art. da Lei 11.915/2003, criado em 2004 pela Lei 12.131, que deu caráter de excepcionalidade e legalizou a matança de animais em ritos religiosos de qualquer matriz africana, deve ser extinto.
O debate acalorado não está polarizado entre os seguidores dos ritos africanos, que matam animais e os oferecem às entidades, e os defensores de direitos fundamentais para os animais. Há argumentos contrários à matança ritual de animais que não têm nada a ver com convicções abolicionistas.
Não está fácil esse debate. No rolo compressor de arame farpado que a Lei 11.915/2003 criou, não dá para tomar partido dessa ou daquela posição, sem sair arranhado. Se defendemos os animais, somos taxados de racistas. Se defendemos a liberdade de expressão religiosa sem discriminar a matriz de origem (semita ou afro), somos taxados de incoerentes, e com razão, pois devemos defender o direito à vida dos animais, sem olhar quem perderá as regalias.
Mas a pior posição mesmo é a de quem se abarrota de carnes, ovos e laticínios, veste couro, frequenta rodeios e touradas, cavalga, visita zoos e aquários, e pede a revogação do direito de matança dos ritos afros. Maior incoerência não pode haver. Por isso, a posição vegana, mesmo sendo taxada de racista, ainda é a mais coerente. Mas, não se iludam os veganos com essa lei. A coerência não é possível manter dentro do espírito de tal lei.
A posição dos defensores abolicionistas dos animais está perfeitamente respaldada em princípios de justiça e de ética dos quais os animais jamais deveriam ter sido excluídos, mas, lamentavelmente, por conta exatamente de interesses econômicos milenares, protegidos por dogmas religiosos, o foram.
O que torna difícil tomar posição nesse rolo de arame farpado não é o fato de haver uns que querem continuar a matar animais para satisfazer demandas de entidades espirituais (que prestam favores quase sempre não espirituais aos humanos), convidados a “sacrificarem” vidas alheias para trocar esses favores pelas desditas dos aflitos.
O que dificulta o debate no caso dessa e de tantas outras leis é a incoerência do texto da lei. Ela regulamenta, portanto, limita, a liberdade de manejo e abate dos animais. Mas em momento algum atende ao direito do animal de não ser forçado a nascer, de não sofrer manejo e de não ser morto para atender interesses humanos, seja de empresários, de consumidores, ou de empresários consumidores exercendo seus sacerdócios.
E é a demanda pelos derivados dessa matança (carnes de todo tipo, laticínios, ovos, lã, couro, serviços e graças divinas) o que escraviza e mata os animais. Não é um “sistema” malvado e abstrato. É o consumo sem consciência.
Lendo o texto da Lei 11.915/2003, ao qual foi acrescido no artigo 2º um parágrafo único, eximindo os ritos afros de condenação judicial, por via da Lei 12.131, que ora se quer revogar, pode-se ver claramente que tudo o que ali está não está ali para assegurar direito algum aos animais.
O que foi redigido com aparência de defesa dos animais, o foi para regulamentar a prática de criar, escravizar e matar animais. Essa não é uma lei animalista genuína, muito menos tem ela um espírito abolicionista. Nada além disto: é uma lei reducionista com lampejos bem-estaristas para o “manejo e abate humanitários”. Os humanos são a finalidade da lei, não os animais.
Os interesses regulados pela Lei 11.915 são os interesses empresariais, interesses de proprietários de vidas com direito ao abate delas. Ninguém deve se deixar iludir, pensando ou mesmo crendo que tal lei, ou qualquer outra desse teor, defenda a vida dos animais, ao prepará-los “com bons modos” para o abate.
Se a vida de seis bilhões de animais, abatidos no Brasil para consumo humano e não humano, não está protegida por tal lei, não há como crer que a mesmíssima lei, apenas com a revogação de um de seus parágrafos, deva ser usada para proteger a vida dos animais abatidos em ritos religiosos de qualquer matriz, seja judaica, islâmica ou africana. Os abates kosher e halal, embora cobertos com véus espirituais, têm finalidade comercial como quaisquer outros.
O serviço sacrificial de animais, salvo melhor juízo, está tão imbricado em interesses comerciais, ainda que menos explícitos, quanto o estão os abates kosher e halal. Pelo menos na origem, é preciso haver alguém que cria um animal e o vende ao fiel que paga suas dívidas com as entidades, oferecendo a elas o sangue alheio.
Dado que o espírito original dessa lei é a preservação dos “bons modos” aparentes na criação e matança de animais para suprir demandas de mercado, não se pode pretender que ela seja uma lei de defesa de direitos fundamentais para os animais. Nunca foi e não é. E porque ela nunca o foi, foi possível, um ano após sua aprovação, criar uma outra lei para excetuar das penalidades também o abate de animais com matriz religiosa africana, algo que o texto havia deixado criminalizável, ao mesmo tempo em que amparava outros tipos de abate, regidos por técnicas definidas por religiões outras, como o kosher e o halal, de origem semita (judaica e islâmica).
Se os dois abates (kosher e halal) foram autorizados como “legais” no texto original da Lei 11.915, e os abates ritualizados africanos haviam permanecido criminalizáveis, não há como não pensar que o resultado de tal discriminação tenha o viés xenoespecista (racismo e especismo conjugados).
Parece se repetir aqui o que ocorre nas redes sociais. Enquanto mastigam com prazer seu sanduíche de queijo com presunto (que mata vacas, vitelos e porcos), algumas pessoas rogam pragas aos asiáticos por seguirem a tradição de lá, de comer as carnes que aprenderam a comer, de cães, gatos e macacos.
Quer dizer, no xenoespecismo, o animal que escolhemos para estima tem direitos que os outros povos têm que respeitar, mas o que escolhemos para mastigar não têm direito algum. Se todos os animais têm direito à vida, nosso sanduíche de presunto e queijo é um ato de violação de tal direito, tanto quanto o é o bife de cão, de gato ou de macaco comido pelo asiático.
Entretanto, o que mais onera os defensores dos animais nesse debate não é argumentar que ao se defender agora a revogação da Lei 12.131, (a criminalização da matança para fins rituais afro-brasileiros) não se está sendo racista e sim abolicionista.
Torna-se praticamente impossível a qualquer abolicionista animalista posicionar-se com ética e justiça a favor da revogação de um único parágrafo dentro dessa lei, deixando-a, no mais, intacta. Isso é cair, literalmente, no xenoespecismo. É trair todos os outros animais não matados em ritos afros, que tanto se pretende defender. O problema não é dos abolicionistas. É que essa lei não foi criada para defender os animais da morte.
Ao legalizar, regulamentar e lutar pela aprovação de leis que afetam os interesses dos animais, sem que os animais sejam de fato o sujeito dessa legislação, isto é, ao fazer leis para regulamentar o modo como os animais são tratados e impedir que sejam maltratados no curto e miserável período de suas vidas e na hora do transporte para a câmara de sangria, mas manter o direito de criá-los e matá-los, os defensores dos animais pisam na poça de sangue da qual esses animais não escaparam desde 2003, mesmo com tal lei em vigor.
Essas leis são reducionistas e bem-estaristas. O nascimento, a vida e a morte dos animais só contam se servirem para agregar valor à mercadoria final. O valor inerente à vida do animal não conta nessas leis que fingem protegê-los, quando protegem mesmo é o interesse de seus vendedores. O que conta é a agregação de valor à carne, ao leite, aos ovos, ao couro e à lã, produzidos com “bons modos”, ou aos serviços que prestam como escravos e reféns dos interesses humanos.
Se os abolicionistas querem, de verdade, o respeito legal à vida dos animais, hoje forçados ao nascimento dentro do sistema de criação e abate para atender demandas humanas, as leis devem ser redigidas de modo abolicionista do começo ao fim. Remendos não fazem uma boa obra.
Reduzir danos no manejo (sim, pois não há como abolir os danos, mantendo aprisionados os animais e matando-os enquanto são ainda bebês, porque sua vida abreviada é dentre todos o maior dano causado a eles) não é o que os abolicionistas veganos buscam em sua luta diária para conscientizar as pessoas sobre a tragédia dos animais criados para o abate. O que buscamos é abolir o direito humano de criar animais para a escravidão e o abate.
Regulamentar os “bons modos” da matança tayloriana de animais, levada a efeito em escala industrial fordiana, para que não choque os desavisados e não pareça ser o que de fato é, uma chacina praticada com motosserras, envernizada com a denominação “abate humanitário”, também não é a melhor forma de uma defesa abolicionista que resguarda direitos aos animais.
Defender a revogação de um parágrafo numa lei que expandiu a liberdade de matança para um novo grupo religioso, “esquecido” na redação inicial da lei, e relevar o fato de que a lei inteira já servia apenas aos interesses de mercado, tanto dos produtores de carnes, leites, ovos e lã, quanto dos produtores disso tudo sob a tenda de um ou de outro código tribal original, também não parece atitude sábia de quem luta pela abolição de todas as práticas de matança de animais.
É fácil deixar-se enganar pelas “iscas” postas nos textos dessas leis reducionistas e bem-estaristas, especialmente quando elas são revestidas de uma regulamentação do manejo e da matança com os bons modos ditados com padrões médicos e técnicos. É fácil enganar as pessoas, pois só as palavras “médicos” e “científicos” já evocam um sentimento de respeito pela autoridade máxima em questões da vida, da saúde e da morte. E daí, essas mortes todas parecem “limpas”, porque são praticadas de jaleco branco.
O que os ativistas abolicionistas não podem perder de vista é que todos esses padrões reducionistas e bem-estaristas de manejo e abate humanitário foram criados e aprovados em primeiro lugar pelos médicos e cientistas pagos pelo agronegócio ao redor do mundo, para garantir que os consumidores comprem seus produtos sem se horrorizarem com as cenas do manejo, do transporte e da câmara de sangria, e sem temor de que esses resíduos estejam carregados de patógenos. É para vender bem que esses padrões existem. Não é para respeitar os direitos dos animais.
É muito difícil manter a ética abolicionista e defender a revogação de um parágrafo que introduziu tardiamente na lei o direito de um grupo matar animais para finalidades religiosas, quando a lei inteira é apenas uma regulamentação dos bons modos na produção e matança de animais para quaisquer outras finalidades. Para ser ético é preciso manter a imparcialidade, a generalidade no raciocínio (se vale para um tipo de matança tem que valer para todos) e a finalidade. Ou é a vida e a morte do animal que importam, ou são os interesses humanos em jogo. Quando isso se contrapõe, um dos dois sofre a pena de morte. E esse não é o humano.
O princípio da universalidade obriga a razão a expandir o círculo de validade daquilo que a lei mesma diz querer respeitar. A vida de um animal abatido para fins rituais em práticas protegidas por um direito constitucional vale tanto quanto a vida de um animal abatido dentro das técnicas apreciadas por outras religiões, quanto a vida dos animais abatidos com técnicas aprovadas pelos vivissectores, quanto a vida de cada animal abatido com técnicas humanitárias em qualquer matadouro industrial.
Há matança, matança e matança. Nenhuma delas deveria ter amparo legal. E lutar para que uma seja criminalizada, mesmo que esteja assegurada pela constituição, e as outras continuem a ser permitidas, mostra bem o limite moral de quem está implicado no sistema da matança, de quem consome produtos originados dessa matança.
As matanças, aliás, nada mais mostram do que a falha ou deficiência moral (chamada kakothymía, em grego) que precisamos abolir em todos nós. A falha em compreender que não foi por mérito nosso que aqui nascemos no formato da espécie Homo sapiens sapiens, e por não termos mérito algum nisso, não temos crédito moral para tirar dos outros animais aquilo que sequer conseguimos dar a nós mesmos: a vida e a liberdade inerente ao tipo de vida que cada um nasce para expressar.
Matar animais não é um direito humano. E discriminar alguém por ser de uma raça, e não de outra, nessa matança, também não. Dois erros não fazem um acerto. E não dá para consertar essa lei que nasceu antropocêntrica e especista, transformando-a agora numa lei xenoespecista. Os animais continuam perdendo suas vidas.

Você viu?

Ir para o topo