A agressão cometida por uma treinadora contra o cavalo Saint Boy e a morte induzida de Jet Set, um cavalo que perdeu a vida após sofrer uma lesão durante uma competição, ocorridas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, não foram suficientes para convencer a União Internacional de Pentatlo Moderno (UIPM) a por fim à exploração animal nessas competições.
Nesta semana, a UIPM divulgou um comunicado para anunciar que está formando um grupo de trabalho para revisar a etapa equestre da modalidade de Pentatlo Moderno e que as ações do grupo terão como foco a análise de possíveis alterações no código de ética da instituição para fortalecer a proteção e o bem-estar dos cavalos. A prova realizada nos Jogos Olímpicos também deve ser revista. Nada disso, no entanto, livrará os cavalos de serem forçados a competir e do risco de acidentes.
Saint Boy, o cavalo agredido pela treinadora Kim Raisner, foi golpeado com um soco após se recusar a saltar obstáculos enquanto era guiado pela competidora Annika Schleu. O mesmo animal já havia se recusado a participar das provas ao ser montado pela amazona Gulnaz Gubaydullina. O comportamento de Saint Boy expõe o que é dito por ativistas há décadas: cavalos não se sentem confortáveis em competições, pois não escolheram participar delas. Os humanos têm a opção de participar ou não de uma olimpíada e, com isso, decidir incluir em suas vidas treinamentos exaustivos e rígidos. Os cavalos não podem fazer essa escolha, mas são forçados a isso.
A recusa de Saint Boy em participar das provas mostra o quão antinatural é o ambiente da competição e tudo que dele faz parte: os apetrechos usados no cavalo – muitos, aliás, que o machucam ou ao menos geram incômodo -, o peso do competidor sobre a coluna do animal, o barulho, entre outras questões que fazem da competição algo completamente avesso ao habitat do cavalo e que a tornam cruel, especista e antiética.
Esses fatores, no entanto, não são considerados pelos interessados em manter as provas equestres para lucrar e garantir entretenimento humano. Por conta disso, são prometidas medidas que visam beneficiar “o bem-estar animal” de maneira superficial, já que a única forma de promover bem-estar aos cavalos explorados pelo hipismo é libertá-los dessa modalidade.
De acordo com a UIPM, as ações previstas incluem um Painel Disciplinar para rever os fatos ocorridos na prova feminina em Tóquio, na qual Saint Boy foi agredido. A instituição disse ainda que entrou em contato com os tutores do cavalo e que ele está com “boa saúde, embora cansado da competição”, o que revela outro fator negativo da exploração animal, que os condena a estresse e cansaço para atender a demandas humanas. No momento, Saint Boy está na cidade de Shiga, no Japão, na propriedade onde mora.
Presidente da entidade, Klaus Schormann afirmou que a “UIPM continua totalmente comprometida com a equitação como parte integrante do Pentatlo Moderno com base na visão do Barão Pierre de Coubertin”, que criou os Jogos Olímpicos.
Realmente interessados no bem-estar animal e comprometidos em defender os cavalos enquanto sujeitos de direito, ativistas discordam da ideia de apenas revisar as regras das competições e apontam para a necessidade de por fim ao hipismo. Para a ONG internacional People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), todas as competições equestres devem ser removidas dos Jogos Olímpicos.
A entidade faz essa recomendação com base não só na exploração imposta aos cavalos – que são forçados a participar de competições das quais não participariam por conta própria e por meio das quais não se beneficiam de nenhuma forma -, mas também nos acidentes e casos de maus-tratos registrados em provas equestres.
Apenas neste ano, vários acontecimentos ruins envolvendo cavalos foram registrados nos Jogos Olímpicos. Além da recusa de Saint Boy em participar da prova feminina e da agressão sofrida por ele em seguida, o cavalo suíço Jet Set saiu mancando da competição e teve sua vida ceifada. Por ter sido condenado à exploração para entretenimento humano, Jet Set foi forçado a saltar de obstáculos que não só lhe lesionaram, fazendo-o sentir dor, como também acabaram com as chances do animal viver livre e feliz. Aos 14 anos de idade, o cavalo foi submetido ao procedimento de morte induzida, o que não teria ocorrido se ele estivesse protegido em uma fazenda, longe de competições e de qualquer tipo de exploração e maus-tratos.
Além desses dois casos, foi registrada ainda a queda do cavalo Caleansiena, montado pela brasileira Ieda Guimarães, que também caiu no chão após o animal titubear no momento do salto e se chocar contra um obstáculo. Por ter a pele sensível, o cavalo certamente sentiu dor no momento em que bateu com as patas no obstáculo e, em seguida, no chão.
O sofrimento dos cavalos explorados pelo hipismo
A crueldade do hipismo foi exposta em um estudo realizado por Alexander Nevzorov, ex-cavaleiro e fundador da escola de equitação Nevzorov Haute Ecole. Conforme exposto nas redes sociais do ativista vegano Rafael Tortella, Nevzorov abandonou o hipismo em 2008 “após uma série de estudos que fez junto com Lydia Nevzorov que demonstraram o sofrimento dos cavalos nas atividades equestres”.
A publicação do ativista, embasada no estudo de Lydia e Alexander, revelou que em frente às câmeras, nas competições, “as rédeas curtas e a pressão do bridão mantêm a postura não natural de flexão do pescoço” do cavalo, que caminha com a cabeça abaixada para compor a cena padronizada do hipismo e entreter o público. O que muitos fãs dessa modalidade cruel não sabem, no entanto, é que por detrás das câmeras os cavalos costumam ter o pescoço amarrado à boca – como expõe a imagem acima – com uma corda que os mantêm curvados de maneira dolorosa e desconfortável.
“O bridão (ou freio) aperta a língua, bate no céu da boca, nos dentes e na gengiva justo nas terminações do nervo trigêmeo. O cavalo para/obedece porque está com muita dor. A língua presa pelo bridão dificulta a deglutição da saliva e a garganta seca. O aparelho digestório é estimulado a secretar suco gástrico sempre que há algo na boca. O resultado é uma espuma branca na boca durante as competições ou treinos”, relata a publicação de Tordella ao expor uma foto do focinho de um cavalo com a boca repleta de espuma.
“A epiderme do cavalo é mais fina e tem mais terminações nervosas que a humana. Portanto, é mais sensível à dor. Esporas e chicotes causam lesões, dor e sofrimento”, explica o ativista, que disponibiliza em rede social as fontes do estudo que embasaram sua publicação.
Rafael Tordella aborda também os problemas de coluna sofridos por cavalos em decorrência da montaria praticada por pessoas que sobem nas costas desses animais muitas vezes acreditando, de maneira equivocada, que o peso de um único ser humano não é capaz de causar dor e adoecer um cavalo. “A anatomia do cavalo não foi projetada pela natureza para suportar o peso de um ser humano sobre sua coluna”, diz o ativista ao publicar imagens de uma termografia da coluna de cavalos explorados em provas de salto e em adestramentos. Nas imagens (confira acima) são vistas áreas roxas, vermelhas e laranjas que “indicam inflamação crônica no dorso do animal, decorrente do trauma gerado pela montaria”.
Além disso, lesões, quedas, fraturas e ataques cardíacos também são comuns no hipismo. “Muitas vezes, os animais sofrem lesões fatais durante as competições ou nos treinamentos. Quando sobrevivem, mas a performance é prejudicada, é muito comum matarem o animal, pois geram mais custos do que resultados”, expõe o ativista.
O sofrimento animal, no entanto, não se restringe aos treinamentos e às provas cruéis, mas também ao sistema que existe por trás do hipismo e que é responsável por mantê-lo. “Há um mercado valioso de sêmen e ventre. Animais de ‘boa genética’ são como máquinas de reprodução, sempre envolvendo abusos sexuais. A coleta do sêmen pode ser por masturbação manual, monta em manequim [foto de número 1 abaixo] ou em fêmea (amarrada), e uma ‘vagina artificial’”, expõe a publicação do ativista.
No caso da inseminação artificial, o procedimento é realizado “introduzindo o braço e uma mangueira na vagina da fêmea presa e indefesa”. E mesmo quando há monta – ou seja, um cavalo sobe sobre uma égua para ocorrer a reprodução – a fêmea é amarrada e “não pode escolher a hora ou se aceita o parceiro”. Esse mercado de reprodução de éguas e cavalos também leva à “separação precoce de potros e mães para venda”. Além de serem objetificados e tratados como mercadorias, esses animais são submetidos a intenso sofrimento emocional ao serem separados.
Ex-cavaleiro, ex-treinador e ex-domador, David Castro, autor do livro “El Silencio de los Caballos” acredita que “nenhuma atividade que obrigamos o cavalo a fazer constitui parte de sua natureza”. “Nenhum cavalo permite que um ser humano monte nas suas costas sem que seja violentado física e psiquicamente. A embocadura é um instrumento criado para gerar dor na boca do cavalo. Essa é sua função. Durante a execução das atividades equestres, temos de entender que o cavalo sempre é conduzido pela dor”, asseverou Castro.
O ex-cavaleiro Alexander Nevzorov também defende que o hipismo é uma prática cruel, tendo passado a se dedicar a expor a realidade dessa modalidade tão bem conhecida por ele, que a praticou por anos no passado. “O cavalo, para sua infelicidade, evoluiu de tal modo que ele pode disfarçar qualquer dor, exceto a mais insuportável, até o fim, sem demonstrá-la de modo algum. Na natureza selvagem, o cavalo que demonstra dor, fraqueza ou uma enfermidade, ao mesmo tempo se condena a ser devorado, ou a ser rebaixado na escala hierárquica do seu rebanho”, pontuou Nevzorov.