O ambiente de ensino é uma escola pública no interior de um Estado do sudeste brasileiro; o público é adolescente, com idade de catorze a dezoito anos; o tema da aula é o conceito de especismo, termo criado por Richard Ryder, e o “princípio da igualdade na consideração de interesses semelhantes” desenvolvido por Peter Singer.
Chama demasiadamente a atenção como uma ideia (como a suposta superioridade do ser humano sobre os não humanos) depois de muito divulgada, por séculos, torna-se um habitus, uma disposição incorporada. Como desconstruir essa ideia – o especismo – e abolir sua materialização, o costume de consumir tudo que é oriundo do uso dos animais não humanos?
A explicação sobre o que é especismo é clara. O conceito está bem definido em analogia com o racismo e o sexismo. Os alunos acompanham o raciocínio de Ryder e de Singer. Toda argumentação apresentada para mostrar a incoerência de um pensamento e ação racistas e igualmente a prática sexista, é aceita e apoiada. No entanto, quando o ser discriminado é de outra espécie, aí toda lógica, todo argumento por mais bem embasado que esteja parece se dissolver.
Os alunos recorrem a frases como, “estamos [humanos] no topo da cadeia alimentar”, “somos animais racionais e os outros animais são irracionais, agem por instinto”, “precisamos da carne por causa da proteína”, “somo seres sociais, desenvolvemos cultura”, “é um absurdo comparar humanos com os animais, nós temos alma, eles não”, “Deus criou os animais para nos servir, está na bíblia”, entre muitas outras. Para desconstruir cada frase o educador vegano precisa basicamente ser uma enciclopédia ambulante, ter um conhecimento razoável de biologia, historia, teologia, nutrição, filosofia, sociologia, etologia, zoologia e o que mais puder ler, mas essa não é a questão.
A questão é o peso do ensino antropocêntrico especista passado dia-a-dia nas escolas. Os alunos não aceitam a lógica que desmonta a ideologia e a prática especistas recorrendo aos conhecimentos adquiridos nas aulas de ciências, historia, português, matemática, artes, educação física… Da pré-escola ao ensino médio, são muitos anos ouvindo falácias legitimadoras da naturalização de uma cultura biocida. Como o educador vegano desconstruiria a razão instrumental que guia e inspira as ciências ensinadas nas escolas? Usando a razão crítica, a lógica, um apuradíssimo e radical raciocínio ético.
No entanto, os anos de experiência em sala de aula, de ação direta pedagógica no combate ao especismo já demonstrou que a razão tem seu limite, seja a que alimenta o uso dos animais não humanos, seja a que os defende numa abordagem vegana abolicionista. Para qualquer educador vegano bem nutrido filosoficamente, a desconstrução da razão antropocêntrico especista é algo fácil de fazer. Mas e quando o uso dos animais não esta centrado em argumentos, mas em costumes, em habitus? O que fazer quando um aluno diz: “professor, entendo perfeitamente o que o sr. disse. Concordo com tudo o que foi dito. Realmente não é justo o que se faz com os animais, mas eu gosto de beber leite com chocolate”?
É possível argumentar contra o “eu gosto”? A razão crítica tem o poder de desconstruir a razão instrumental, mas teria ela eficácia diante do “eu gosto”? Aparentemente catorze, dezesseis ou dezoito anos é muito pouco tempo para alguém se apegar tanto a prazeres gastronômicos e de entretenimento a ponto de dizer com excessiva convicção “eu sei que é injusto, que não é ético, mas eu gosto de comer, eu gosto de assistir… e não vou parar, é gostoso”. Como reeducar aqueles que foram educados a colocar os prazeres individuais supérfluos acima do direito a vida e a liberdade de outros indivíduos?
Será que além da desconstrução da razão, a educação vegana terá que também desconstruir sentimentos?